Portugal continua a ser um dos países com maior consumo de peixe per capita do mundo, logo a seguir à Islândia e ao Japão. Mas importa cerca de 60 por cento de todo o pescado que chega às suas mesas. Faz sentido? O que falta fazer para alterar este contexto de dependência?

A questão serviu de mote para o painel convidado discutir o cenário das pescas e da aquicultura, no segundo dia da II Grande Conferência “Blue Economy – The Salt of the Earth”, organizada pelo Jornal da Economia do Mar, que decorreu no Estoril, nos dias 9 e 10 de Novembro.

Questionado sobre o panorama futuro, após o término do quadro comunitário para o sector, o Secretário de Estado das Pescas, José Apolinário, começa por ressalvar que o Programa Mar 2020 cumpre o regulamento do Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos e da Pesca – que está sobretudo centrado na aquicultura, nas actividades de eficiência da pesca, na transformação e comercialização, na congelação e no apoio à política marítima integrada.

Respondendo às críticas de que o programa não satisfaz os anseios dos pescadores e dos armadores, salienta: “O problema não é do programa é do regulamento”. José Apolinário esclarece que o Mar 2020 foi criado “na lógica da sobrepesca” do quadro europeu, com as componentes sociais associadas. Por outro lado, o regulamento comunitário “está mais centrado no ajustamento do que na modernização, o que não significa que não haja oportunidades a explorar”, sublinha.

“A criatividade é poder olhar para o programa e tirar o máximo partido do regulamento”; sugere o secretário de Estado, ao adiantar que na revisão prevista para 2018, poderá ser alargado o âmbito das matérias.

Recorde-se, que o programa operacional Mar 2020, que irá apoiar o sector da pesca e aquicultura nos próximos quatro anos, só abriu a primeira fase de candidaturas no último mês de Junho. Estão previstos cerca de 508 milhões de euros de dotação financeira total, sendo 151 milhões destinados a promover “uma pesca ambientalmente sustentável” e 79 milhões para uma “aquicultura ambientalmente sustentável”.

As estatísticas revelam que Portugal consome cerca de 57 quilos por ano per capita de peixe, quando o consumo mundial é, em média, cerca de 17 quilos por ano per capita. Mas o secretário de Estado tem a percepção de que estes números estão desactualizados e que os portugueses estão a consumir menos peixe. Segundo o governante, os estudos de distribuição alimentar apontam para uma redução na ordem dos 5 por cento em cada ano. “Há uma tendência para a diminuição dos hábitos de consumo junto dos jovens, por isso há a necessidade de valorizar algumas espécies e novas formas de apresentação”, defende.

“O grande desafio da fileira é valorizar os produtos e as espécies da pesca do ponto de vista do seu consumo”, como por exemplo, “saber o que se pode fazer com o carapau que tem quotas enormes e é vendido a preços muito baixos, ou com a cavala”, acrescenta ao recordar que “a tendência é para desperdício zero”.

Em relação à negociação das quotas e às pressões que podem ser colocadas a Bruxelas, José Apolinário defende que a pesca tem de ter sustentabilidade, ”já que as quotas atribuídas à frota portuguesa correspondem àquilo que são as possibilidade da actividade, como por exemplo, conhecer o estado do recurso”.

No mesmo painel, outro dos participantes, o Administrador da Testa & Cunhas, Miguel Cunha, faz questão de desmistificar alguns dogmas. Refere que na actividade que representa (peixe fresco, marisco e bivalves), a mão-de-obra menos qualificada “não tira menos de mil euros por mês” e conhece mestres que “chegam a ganhar oito mil euros por mês”. Confessa que “fica doente” quando os encaram “como uns coitadinhos ou quando falam de sobrepesca de forma generalizada, sabendo que as associações têm feito enormes esforços com vista à sustentabilidade dos recursos”.

Miguel Cunha aproveita para criticar a Comissão Europeia (CE), que acusa de “falta de coragem em penalizar e apontar quem pratica a sobrepesca” e utiliza mal as suas artes, “tentando passar a mensagem de que a actividade pesqueira não é sustentável”.

Sobre a dimensão da frota, adianta que os números reais são bem inferiores aos avançados em 2004. O administrador da Testa & Cunhas assegura que hoje existem cerca de 4000 mil embarcações. Números de 2014 apontavam para mais de 8100.

Miguel Cunha desconhece uma actividade económica tão fiscalizada como a que representa e que possui cerca de 70 embarcações. “ As regras impostas por Bruxelas têm de ser discutidas, pois não podemos aceitar a filosofia discriminatória de apoios”, lamenta ao reforçar que o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) e a tutela do sector “são as armas” que têm “para combater em Bruxelas” de formar a obter poder negocial.

O armador da Testa & Cunhas, que se dedica à pesca e aquicultura offshore, recorda ainda a “redução drástica” da frota portuguesa. “Na década de 60 e 70 tivemos uma frota três vezes maior que a actual, fizemos ajustes, comportámo-nos excepcionalmente perante as regras impostas pela CE, e a paga que temos hoje é um programa operacional rigorosamente igual aos restantes países que não cumpriram as máximas europeias”, acusa.

O administrador da empresa que tem até 2042 a concessão offshore de 395 hectares na costa algarvia, para a produção de ostra, vieira, mas sobretudo mexilhão, conclui: “Tudo aquilo que nós produtores de aquicultura e pescadores necessitamos é adequar as ferramentas regulamentares ao mar e àquilo que pretendemos dele, porque até a legislação sobre o registo de embarcações, por exemplo, é obsoleta”

“É necessário criar condições para investidores e operadores, é necessário estaleiros, infraestruturas, embarcações e portos com condições para as receber”, sintetiza.

A intervenção do Director da Estação Piloto de Piscicultura de Olhão (EPPO), Pedro Pousão, foi marcada pela perspectiva do caminho a percorrer. A nível mundial, a aquicultura cresceu brutalmente, refere. E, neste momento, produz praticamente o mesmo que a pesca, com a Ásia a produzir a grande maioria, mais de 80 por cento. Na União Europeia tem havido uma estagnação, sendo a sua produção praticamente igual à da Noruega. “Portugal produz 10 mil toneladas numa Europa com produção na ordem de um milhão e 200 mil toneladas”, sublinha.

Ao afirmar que a Europa importa quase 80 por cento daquilo que consome, e importa de países emergentes, Pedro Pousão defende: “Para enfrentarmos esta dependência, devemos valorizar a produção tradicional em terra e em mar aberto; utilizar energias alternativas; recuperar os ecossistemas costeiros partindo de produções intensivas”. Para o também investigador do IPMA, “há um enorme campo aberto” para a indústria da aquicultura que tem como objectivo alcançar 35 mil toneladas até 2023. Na sua opinião, este objectivo é modesto, já que o ideal “deveria ser 200 mil toneladas para nos tornarmos exportadores e alcançar a rentabilidade necessária à sobrevivência”.

Combater o preconceito

Neste segundo dia do evento, dedicado à vertente “Prático-Empresarial”, o painel tentou ainda responder à pergunta colocada pelo moderador Jorge Alves: Existe, ou não, um preconceito quanto aos produtos de aquicultura?

Para António Vieira da Associação Portuguesa de Aquicultores (APA), o preconceito existe e começa pelos próprios empregados da restauração “que aconselham os clientes a não comer os produtos de aquicultura”. Como vende peixe em qualquer restaurante do país, “desde o Guincho até aos melhores de Lisboa”, diz sentir-se à vontade para destacar as qualidades das espécies de aquicultura: “o peixe é morto no gelo, depois de dois dias em jejum, e assim consegue manter a sua frescura durante uma semana”.

Para combater o preconceito, o representante da APA, sugere campanhas de informação e a introdução de testes cegos, que levem os consumidores a perceber as diferenças entre o pescado de aquicultura e do mar.

Já o armador da Testa & Cunhas, que é pescador e aquicultor, recusa elevar as qualidades de um sector em detrimento de outro. “Os dois produtos pesqueiros são bons desde que tenham qualidade”, refere. Lembra que os estigmas resultam de situações como as que ocorreram há 20 anos, com o peixe em fim de linha vindo da Grécia. Depois de ter passado por Itália e Espanha, chegava às cadeias de supermercado ao preço de dois e três euros. Segundo António Cunha, o mesmo acontece hoje com o mexilhão que vem de Espanha, e os consumidores ficam muito surpreendidos quando provam o bivalve produzido em Portugal”.

Ainda reforçando as “guerras” que tem com os regulamentos comunitários, António Cunha contesta a forma como é inscrita a designação de origem. “ Um peixe capturado no Atlântico Nordeste pode ter sido capturado acima de São Tomé e Príncipe ou na Noruega”, assim como “um peixe capturado em África pode chegar com seis e sete dias de viagem e é equiparado ao nosso em termos de informação de origem”.

“O Consumidor tem de saber aquilo que compra e estaria disposto a dar mais trinta por cento em relação ao que está tabelado, se soubesse que foi pescado no dia anterior”, acrescenta.

Na óptica de Pedro Pousão, a aquicultura enfrenta um problema de especulação. “Enquanto não se combater a especulação e a ASAE não inspecionar as praças e os restaurantes do País não se vai revolver a situação”, defende.

Já para o secretário de Estado, o preconceito será vencido com “o aumento da exigência sobre rastreabilidade, informação ao consumidor e etiquetagem”.

José Apolinário aproveita para concluir: “hoje, quem quiser investir na aquicultura, tendencialmente tem um quadro legal mais simplificado, tem fontes de financiamento e espaços para o seu desenvolvimento, e as situações concretas de algumas tensões no offshore não podem afectar o objectivo estratégico que é desenvolver e aumentar a resposta do sector”.



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