Duas preocupações sobressaíram no discurso de responsáveis por empresas de transporte marítimo durante a II Grande Conferência do Jornal da Economia do Mar: o excesso de navios face à procura e as normas recentemente aprovadas pela Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla inglesa) sobre o teor de enxofre admitido nos combustíveis marítimos e os sistemas de tratamento das águas de lastro a bordo de navios.
Excesso de navios
Num painel moderado por Jorge d’Almeida, engenheiro naval e ex-administrador da PSA, a CEO da Portline, Cristina Alves, reconheceu que “há muitos navios no mar” e que “a procura não cobre a oferta”. Como o mercado actual quase só paga os custos das operações, os armadores tendem a reduzir os encargos com os navios, incluindo “na manutenção, nas reparações e no pessoal a bordo”, refere a empresária.
A consequência é óbvia: redução da segurança, da qualidade e da eficiência do serviço. “O que se traduz em problemas técnicos variados, que conduzem a problemas operacionais”, admitiu Cristina Alves. Por outro lado, um mercado débil e fortemente concorrencial gera desvalorização dos navios.
“Assistimos a situações em que os armadores devem aos Bancos e a fundos de investimento mais do que o valor dos seus activos, que são as suas frotas”, referiu a empresária, cuja opinião foi partilhada por outro membro do painel, Alex Panagopulos, presidente da Arista Shipping, que afirmou que “existe a visão de que os armadores são todos ricos, mas isso é falso, pois sangramos todos, devemos mais do que temos”.
Uma das causas do problema, segundo Cristina Alves, foi a construção de navios em excesso entre 2011 e 2015, graças às facilidades de crédito concedidas pelas instituições financeiras. Hoje, há novos investidores que aproveitam a redução de preços de navios, “gente que não pertence ao sector e só quer lucros rápidos”, e que os adquire aos Bancos e outras entidades financeiras, refere outro elemento do painel, Lorenz-Meyer, presidente da European International Shipowners’ Association of Portugal (EISAP).
De acordo com Lorenz-Meyer, “a falência de alguns armadores não fará desparecer os navios”, pelo que defende mais reciclagem. Só dessa forma é que diminuirá significativamente o número de navios no mercado. Entretanto, vamos assistir a mais concentrações no transporte marítimo, “com milhares de armadores” que fornecem navios às grandes alianças de transporte marítimo, o que representa maiores vantagens para as instituições financeiras, considera o mesmo responsável.
Novas regras
As regras sobre os sistemas de tratamento das águas de lastro, que entrarão em vigor a partir de Setembro de 2017, vão mudar o transporte marítimo, tal como as normas sobre o teor de enxofre nos combustíveis dos navios. Mas, além do custo da instalação dos sistemas, existe a questão dos modelos a instalar, que não estão regulamentados nem aprovados. O que gera alguma apreensão e perturbação no sector.
A este propósito, Cristina Alves recordou que instalar um sistema de tratamento de águas de lastro num navio capesize, com 150 mil a 200 mil toneladas de porte bruto (dwt), “custa cerca de 1,5 a 2 milhões de dólares” e que num navio supramax, de 50 mil a 60 mil toneladas de porte bruto, “esse custo é de 700 mil a um milhão de dólares”. Em qualquer dos casos, considerou a empresária, “os fretes não pagam isto”. Sem falar no tempo de paragem dos navios.
Outra regra que preocupa os armadores é a obrigatoriedade imposta pela IMO de utilizar combustíveis marinhos com um teor de enxofre não superior a 0,5% a partir de 2020, ou seja, daqui a três anos, um prazo que tem merecido contestação. Quer pela proximidade, que obriga o sector a um ajustamento rápido, quer pela incerteza quanto à disponibilidade de combustível necessário a essa transformação.
Face ao timing estabelecido pela IMO, a CEO da Portline entende que restam três caminhos aos armadores. Um será utilizar os combustíveis de baixo teor de enxofre, “mas se todos o fizerem, haverá suficiente para os abastecer”? Cristina Alves duvida. Outro será manter o combustível normal e usar scrubbers (dispositivos purificadores de gases) nos navios, “mas um scrubber custa um milhão de euros”, refere. O terceiro será utilizar o gás natural liquefeito (GNL), que “é essencialmente metano, 25 vezes mais perigoso do que o C02” e tem o problema do slip (metano que não é queimado na combustão do GNL).
Alex Panagopulos considerou que o GNL “é o combustível do futuro, mas não agora”. Entende que actualmente é difícil ajustarem-se os navios, “mas não impossível”. Depende da idade dos navios. E esta solução custa menos do que a dos scrubbers ou dos conversores catalíticos. Mesmo com o slip de metano, “que é de 15%”, o GNL implicará “uma redução de emissões da ordem dos 20% a 25%”, referiu. O enxofre será reduzido em 99%, o óxido de azoto em 95% e as partículas tóxicas a quase zero.
O armador esclareceu que o transporte marítimo consome diariamente 5 milhões de barris de combustível. A mudança de combustível exigida implicará uma solução que hoje não existe no volume necessário. As refinarias terão que o produzir e isso envolverá uma mistura de gasóleo marítimo e diesel em quantidades adequadas, “o que custará quatro a cinco vezes mais do que os combustíveis pesados (HFO, ou heavy fuel oils), segundo as petrolíferas”, referiu o armador.
“E quem suportará esse custo, senão quem usa o transporte marítimo?”, questionou Alex Panagopulos. “E quem recorre ao transporte marítimo, senão o comércio global, que é, em 90%, feito por mar?”, voltou a questionar o armador, que concluiu que “o GNL deve ter metade do custo do combustível de baixo teor de enxofre, mesmo que este seja quatro a cinco vezes mais caro do que os combustíveis pesados”.
Isabel Moura Ramos, Directora da Shortsea Portugal, também presente no painel, considerou que “depois da crise, será certamente mais atractivo converter os navios para GNL”. Por agora, subsiste também o problema do abastecimento. “Existe suficiente GNL no mercado, mas tem que ser levado para os portos”, uma questão que, no entanto, Isabel Moura Ramos entendeu que será oportunamente ultrapassada.
Alex Panagopulos aproveitou para recordar que a sua empresa lidera um projecto de promove a utilização de GNL nos navios, que também envolve o American Bureau of Shipping (sociedade classificadora), a Delta Marine (ligada ao design de navios), a GTT (fabricante de sistemas de contenção e armazenamento de gás) e a Wartsilla (fabricante de motores). Trata-se do Projecto Forward, que visa desenvolver um cargueiro de granéis sólidos a GNL. De acordo com a Arista Shipping, é o primeiro do seu tipo a cumprir os requisitos ambientais internacionais, sem scrubbers ou conversores catalíticos, mais simples e mais eficiente nos custos em 40%.
Estrangeiros querem cluster do mar em Portugal
Isabel Moura Ramos levantou duas questões, que correspondem a outros tantos desafios. Por um lado, reclamou, como tem vindo a fazer noutros fóruns, a criação de um mercado único europeu para o transporte marítimo, à semelhança do que já existe para o sector rodoviário. Sem isso, “o transporte marítimo não estará no mesmo level playing field”, ou seja, não funcionará de acordo com as mesmas regras de outros operadores de transportes.
A Directora da Shortsea Portugal também colocou a questão de saber se os portos estão preparados para os navios cada vez maiores que estão a chegar ao mercado, incluindo no transporte marítimo de curta distância (short sea shipping) e para a consolidação no sector do transporte marítimo, com alianças entre os principais operadores mundiais. Um conjunto de desafios aos quais o sector também terá que responder, tal como o do excesso de oferta de navios e o dos novos combustíveis.
Neste contexto, que papel para Portugal? Com uma tradição marítima inegável, uma localização invejável, boas estradas, um nível de vida competitivo, um clima ameno e uma população acolhedora, o país tem tudo para ser uma referência no transporte marítimo. E está inserido numa cultura que diz mais aos principais operadores ocidentais do que o Extremo Oriente ou mesmo o Mediterrâneo Oriental. Pelo menos, na opinião de Alex Panagopulos e Lorenz-Meyer, um armador grego e outro alemão com negócios de transporte marítimo em Portugal.
Todavia, o país tarda em tornar-se nessa referência, ou seja, em ter um cluster do mar, que significa muito mais do que apenas transporte marítimo. Com ele convivem a construção e reparação naval, a consultoria (jurídica e outras) e os fornecedores de equipamentos e materiais. Para não falar na restauração e hotelaria que lhes possam estar associadas.
Lorenz-Meyer referiu que “por cada emprego no shipping, há 3,6 empregos criados noutras indústrias que trabalham indirectamente com o sector e na Alemanha essa proporção é de 9,8, o que faz do shipping um grande multiplicador”. Já Alex Panagopulos recordou que “na Grécia existem 165 mil pessoas no shipping, o qual contribui com 50 mil milhões de euros para a economia”. E deu o exemplo de Singapura, que, “em 15 anos, tornou-se num cluster marítimo, no qual trabalham 150 ml pessoas”. Mesmo já sendo um porto, bem situado e tendo operado tal transformação, “é um local caro para viver e tem uma cultura diferente da nossa”, referiu o armador grego.
A resposta, segundo os armadores, está na criação de condições atractivas para o sector, como um quadro legal favorável. A introdução da tonnage tax é um passo nesse sentido. “Eu tenho promovido a indústria marítima em Portugal”, referiu Alex Panagopulos, acrescentando que Portugal devia ter cerca de 250 empresas de transporte marítimo, quando tem nove, ocupar 150 mil trabalhadores no sector e falar melhor de si próprio.
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