Energia, ambiente, cruzeiros, náutica de recreio e concessões na linha da frente.

Os portos de Lisboa e Setúbal terão que ser capazes de alimentar plataformas logísticas na sua proximidade e a transferência modal, ter uma organização baseada nas novas tecnologias (como fazem outros portos do país) e garantir uma acessibilidade marítima adequada (especialmente no caso de Setúbal), considerou Lídia Sequeira, presidente da Administração dos Portos de Lisboa (APL) e da Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS), numa intervenção num painel sobre Portos durante a II Grande Conferência do Jornal da Economia do Mar.

O cumprimento destes objectivos será um desafio importante para estes portos, pois “não acompanharam a evolução tecnológica de outros portos nacionais”, referiu a mesma responsável. No caso de Lisboa, o efeito dessa inércia foi um período de dez anos em que não registou crescimento. Por seu lado, o porto de Setúbal foi o que menos cresceu entre aqueles que apresentaram evolução positiva.

Lídia Sequeira nota que estes portos exigem uma mudança de paradigma, tese reforçada pelo facto de ambos se localizarem na região de polarização de Lisboa, onde residem mais de quatro milhões de pessoas, é gerada mais de 50% da riqueza nacional e trabalha cerca de 43% da mão-de-obra nacional.

A presidente da APL e APSS defendeu que portos “situados dentro de cidades ou centros urbanos de grande dimensão, como Lisboa ou Setúbal, têm que apostar decisivamente na multimodalidade”. E apresentou o caso de Lisboa. “Um porto com um estuário como o do Tejo, que tem uma zona de logística importante que ficou abandonada, como Castanheira do Ribatejo, deve apostar na multimodalidade e no transporte marítimo associado ao transporte em barcaças”.

A mesma responsável recordou que esta é uma realidade de que se fala com frequência e que agora parece ter interessados. “Existe o desenvolvimento de um cais de barcaças em Castanheira do Ribatejo e há um investidor associado à Liscont que propõe desenvolver esse tipo de transporte de carga contentorizada”, esclareceu.

Relativamente a Setúbal, considerou importante sublinhar que a administração portuária, em parceria com a Infra-estruturas de Portugal, está disponível para investir na electrificação de feixes de linhas para a rede principal ferroviária, para que a ferrovia possa ser, em Setúbal, aquilo que Sines é hoje como centro de transporte ferroviário do porto para os centros de produção e distribuição.

O porto de Sines tem sido um exemplo da aposta na inovação de que fala a presidente da APL e da APSS. José Luís Cacho, presidente da Administração dos Portos de Sines e do Algarve (APS), presente no mesmo painel, referiu que nesses portos tem sido seguida “uma estratégia de inovação e utilização de ferramentas tecnológicas na criação de valor”. E admite que essas infra-estruturas “estão na vanguarda europeia nessa matéria”.

Já João Braga da Cruz, presidente da Administração dos Portos de Aveiro e da Figueira da Foz (APA), igualmente neste painel, salientou que no caso do porto de Aveiro existe uma conjugação da infra-estrutura com um ecossistema “que abrange áreas atípicas face ao transporte marítimo, sem no entanto abdicar desta área”. João Braga da Cruz referia-se à envolvência da ria de Aveiro e da Universidade de Aveiro. “A conjugação destes factores permite-nos estar presentes na economia do mar, designadamente, na aquacultura”, referiu o mesmo responsável.

 

O papel da náutica de recreio

O futuro dos portos, nomeadamente, no caso dos de Lisboa e Setúbal, também passa pelo modo como se processa a sua integração no meio urbano envolvente. Uma das actividades habitualmente associada aos portos e cuja tutela tem sido alvo de debate é a náutica de recreio. Nesse ponto, Lídia Sequeira considerou que “do ponto de vista da administração portuária, a náutica de recreio é importante porque a administração portuária tem que se integrar nos tecidos urbanos”. “Muito se tem feito nesse domínio e as marinas têm feito muito pelo tecido urbano”, referiu a presidente da APL e APSS.

Apesar disso, esta responsável considerou que “para as administrações portuárias, a náutica de recreio não é uma fonte de receitas, antes uma fonte de despesa sem retorno”, pois a receita gerada por esta actividade está associada ao tecido urbano e não aos portos. Nesta posição foi secundada por Alexandra Mendonça, presidente da Administração dos Portos da Região Autónoma da Madeira (APRAM), também no painel, que referiu que “marinas e náutica de recreio não são locomotivas das administrações portuárias”.

Embora tivesse admitido que “deve ser analisada a passagem da tutela das marinas para os municípios”, Lídia Sequeira preferiu não fazer comentários sobre a matéria, adiantando que “em breve serão tomadas medidas em que essas questões estarão integradas”. No entanto, esclareceu que “o papel da segurança, acompanhamento e gestão do que se faz dentro de água, esse, tem que ser assegurado pela administração portuária”. Neste contexto, somente a componente terrestre deverá ter geometria variável e “ser integrada num plano mais vasto de gestão”, explicou Lídia Sequeira.

Alexandra Mendonça admitiu que a APRAM tem no Funchal uma marina da década de 80, concessionada, cuja área molhada carece de obras (existe uma área seca, destinada à restauração). Existe ainda uma nova marina (só área molhada), afectada pelos temporais de 2010 e que foi alvo de uma intervenção na zona de lazer. No entanto, a mesma responsável admitiu que existe um projecto a longo prazo para corrigir uma situação de forte exposição resultante dessa intervenção. Sobre a marina de Porto Santo, referiu que “funciona bem”.

 

Os portos e os cruzeiros

Na relação dos portos com o meio urbano, também é relevante a actividade de cruzeiros. Em Portugal, os dois grandes destinos de cruzeiro são Lisboa e Funchal, “o que não é de admirar”, referiu Lídia Sequeira, recordando que “Lisboa está na moda” e elogiando o caso do Funchal que, “não tendo destinos como Sintra ou Fátima, tem rivalizado com Lisboa nos últimos anos” relativamente à supremacia na chegada de navios. Mas admitiu que Lisboa pode disputar o estatuto de principal destino de cruzeiros na Europa a Barcelona e “tem a obrigação de superar o Funchal nessa matéria”.

Para esta responsável, os próximos dois anos serão importantes como momentos de viragem nesta matéria. “Vamos semear os próximos dois anos em Lisboa com dois acontecimentos importantes: a inauguração do novo terminal de cruzeiros, no primeiro semestre de 2017, e a candidatura do porto de Lisboa ao Sea Trade Cruise”, a principal feira mundial de turismo de cruzeiros, em 2018. Lídia Sequeira admitiu que existe contestação à localização do novo terminal de cruzeiros de Lisboa, em Santa Apolónia, mas defendeu a solução.

Sobre Setúbal, sustentou que “não tem condições para ser uma grande cidade de cruzeiros”, principalmente por causa da concorrência de Lisboa. Mas admitiu que a cidade “tem condições para outras actividades de lazer e recreio, como os mega iates, até porque Setúbal tem uma bacia fantástica”.

Por seu lado, Alexandra Mendonça recorda o longo historial e a posição privilegiada da Madeira. “Houve uma relação entre o local e a evolução do turismo de cruzeiros”, referiu, adiantando que a APRAM trabalha com a Associação de Portos de Portugal, todos no mesmo sentido, formando parcerias e criando incentivos”. A presidente da APRAM salientou que “cada vez mais é preciso ter a noção de que o turista tem que ter comodidade e que os terminais devem ser funcionais”. Mas nem essa consciência evitou que a Madeira perdesse 12 escalas este ano, “porque um navio foi posicionado em Cuba”, sem esquecer que “os chineses estão a realizar mais cruzeiros para o seu mercado”.

De facto, o mercado de cruzeiros está em expansão, o que torna cada novo desafio mais exigente. Hugo Metelo Diogo, moderador do painel, chamou a atenção para um estudo da Med Cruise, de acordo com o qual a adaptação das infra-estruturas ao fenómeno da gigantização do transporte de passageiros e a preparação dos portos para gestão dos fluxos de informação e do tráfego de pessoas que entram e saem dos portos são dois dos principais desafios da indústria de cruzeiros.

E um relatório recente da Cruise Lines International Association (CLIA) refere que em 2017 o sector lançará 26 novos navios, correspondentes a um investimento de 4,2 mil milhões de euros (dados de navios sob encomenda em Dezembro de 2016). Ali se diz também que na próxima década, o sector fará investimentos de 37,3 mil milhões de euros em 93 novos navios.

Estes dados, a que Hugo Metelo Diogo acrescentou o facto de o turismo de cruzeiros representar 80 mil milhões de euros por ano e a instabilidade de destinos até aqui pacíficos, representam oportunidades que Portugal pode aproveitar para se valorizar ainda mais como destino turístico e captar uma parcela dos 46 milhões de turistas que chegam à Europa todos os anos.

No entanto, o moderador apontou o desajustamento das marinas portuguesas perante o tipo de procura actual, com navios maiores, o que pode colocar em risco a captação desse mercado. E “é um sector que está sob a tutela dos portos”, referiu Hugo Metelo Diogo.

 

A energia, o ambiente e os portos

Com 10% da população mundial, mas 20% do consumo de energia global, e portos maioritariamente situados junto a grandes concentrações populacionais, a Europa tem nas zonas portuárias portas de entrada das comodities de energia. E de acordo com um estudo da European Sea Ports Organization (ESPO) referido por Hugo Metelo Diogo, 25% dos portos europeus têm mais de 50% do seu tráfego ligado a estas comodities. Além disso, 38% das autoridades portuárias europeias já são facilitadoras da produção de energias renováveis em porto e 41% estão a disponibilizar terrenos para o efeito.

Este fenómeno de associação dos portos à produção energética significa uma mudança de paradigma, quer para os portos, quer para as produtoras de energia. José Luís Cacho entende mesmo que os portos são parte da questão energética da actualidade. “Assistimos a mudanças que vão ser rápidas”, referiu na conferência.

“Para Portugal, o gás natural liquefeito, ou GNL, pode ser uma oportunidade”, referiu, acrescentando que a central térmica da EDP dentro do porto de Sines talvez seja reconvertida. “A EDP talvez esteja a pensar nisso”, referiu o presidente da APS. “É que em Sines existem depósitos de reserva de gás natural e Sines pode ser um ponto importante numa estratégia europeia de uma rede de pipelines que distribuem gás natural por toda a Europa”, refere o mesmo responsável.

Embora não possa prever o futuro, José Luís Cacho admite que em 10 anos a realidade será diferente da actual. “Fala-se na reconversão dos navios para o GNL e na adaptação dos portos a essa realidade, e nós temos que ter capacidade de responder a isso, pelo que estamos atentos e a acompanhar este processo”, referiu o presidente da APS.

O porto de Aveiro é outro porto nacional associado a um cluster energético, no caso, a produção de energia eólica, uma renovável. Uma fábrica de pás eólicas e uma indústria metalomecânica desenvolveram-se nesta zona. E o porto de Aveiro está a ser uma porta de saída de uma indústria que exporta para o Japão, costa ocidental do Canadá, Mar do Norte, entre outros destinos. João Braga da Cruz reconhece que “o porto de Aveiro está integrado na cadeia logística da produção de energia eólica”.

Esta ligação do porto de Aveiro às energias renováveis reflecte uma tradição desta infra-estrutura de sensibilidade para com as questões ambientais, que não se estranha face à sua localização, “porque o ecossistema em que se insere é delicado”, refere o presidente da APA. “E qualquer alteração que possamos produzir no meio marinho pode ter efeitos no conjunto da Ria de Aveiro”, esclareceu. Por isso, a APA tem mantido uma estreita relação com a Universidade de Aveiro, com a qual tem estudado a hidrodinâmica daquele ecossistema. ”Tentamos intervir no porto sem causar impactos no resto da lagoa”, referiu.

João Braga da Cruz recordou que a APA também tem sido solicitada por causa da erosão costeira. Conjuntamente com a Agência Portuguesa do Ambiente, a APA fará uma intervenção de deposição de dois milhões de metros cúbicos de areia num spot a sul do porto de Aveiro, “que depois entrarão no trânsito litoral e irão reequilibrar toda a costa a sul do porto”, referiu João Braga da Cruz, admitindo que a sua administração vai um pouco mais além do que é a missão principal do porto. E esta é apenas uma das medidas deste género que envolve a APA.

Lídia Sequeira encara com entusiasmo a aposta nas energias renováveis. “Devemos ser consistentes numa tendência continuada para reduzir as emissões de CO2 no abastecimento dos navios e na distribuição das mercadorias junto dos centros de consumo e das indústrias para os portos”, referiu. Mas reconheceu que, na generalidade dos portos nacionais, “é impossível replicar o modelo de Sines, até porque é um modelo extremamente caro para ser implementado em cada um dos portos nacionais”.

 

As concessões

Questionado sobre o tema dos prazos das concessões, o presidente da APS referiu que “é um não assunto porque depende da estratégia que o Estado quiser seguir, ou seja, depende do tipo de investimento público que o Estado quiser fazer nos portos”, acrescentando que “se o Estado não quiser fazer grandes investimentos, há que aumentar os prazos para que os privados possam investir”. Porque nesse caso, precisam de mais tempo para ter retorno desse investimento.

No caso do porto de Sines, “o processo está a avançar” e o tema está a ser tratado dentro do modelo que temos hoje, que é diferente do que existia há quatro anos. ”Tenho dúvidas de que seja o melhor modelo, mas é aquele com que estamos a trabalhar”, referiu José Luís Cacho.

Lídia Sequeira considerou que “os processos de renegociação das concessões são processos de apelo ao investimento privado, mediante contrapartidas, dando tempo de concessão que remunere o investimento”. A presidente da APL e APSS acredita que os privados querem uma solução com taxas internas de rentabilidade aceitáveis para ambas as partes, na qual ambas as partes sejam ganhadoras.

João Braga da Cruz reconheceu que o porto de Aveiro “não é especialista em concessões”. Existe uma concessão “que é pacífica, situada no cais mais condicionado do porto de Aveiro”, referiu. “Estamos a tratar desse contrato, que não é problemático nem estruturante para o desenvolvimento do porto”, referiu, antes de fazer uma pequena provocação, afirmando que “o porto de Aveiro é acusado de ser um fora da lei, mas não é”.

Alexandra Mendonça recordou que os portos da Madeira têm uma licença, não uma concessão, mas que o Governo Regional tem intenção de alterar o modelo. “Decorrem estudos para avançar para a concessão, sendo certo que a questão da contrapartida é fundamental e é o que não existe na Madeira, que tem um sistema peculiar”, referiu aquela responsável. “E depende do que o Governo da República pensa sobre isso”, concluiu.



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