
I
Venho nesta matutina
Serena e tépida luz.
Tenho por fundo o largo azul
Nuvens altas luminosas
Mar e alvo casario,
Junto embarcações, fusos ondulantes
Ígneos, aprumados, femininos,
Rangendo madeira e corda
Não esperando nem alcançando querem
Mudança que venha e recebam
Senão esta finita e serena
Brisa suave, sossegada e temperada.
II
Plantio pluma e fauna
Diversa crina animada,
Peixe de prata vibrante
Rápida espada cintilante,
Fresco odor líquido
Sonoro, alvo e salgado
E azul múltiplo e arfante
Que onda dobra à luz,
Rouco ribomba, brama, silva,
E rebenta sobre renda que brilha.
III
Vário e colorido modo
De azuis, cinzas e branco,
O sonoro grito salino
Que rápida asa cruza
O círculo em volta
Do fuso constante
A voz do marulho.
Na luz mexida abundante
Amplitude sob amplitude
No dorso mar em vela
Do touro forte enorme.
Um zéfiro esquivo, teso e bravo
No sol facundo e robusto
Dobra a onda curva de linha alva.
Desenho nítido e alado
A vela soprada erguida
Abre espuma e zumbido
Força, medida e governo.
IV
Verde-mar antigo
Constante enorme e rijo,
Dorso amplo, salgado
Vais por força c’o vento
Da banda sul e oriente
Que ‘inda ao Tempo resiste.
Ampla vista e lembrança
Segura antiga e nascida
Aqui agora em céu corrida
Pela nuvem nimbo e alta branca
Em ondas prata, verde e alva.
Agora salta à vista a terreal costa
Sempre primeiro brumosa
Que asas que também ostenta.
Co’ a barca inteira de maresia
Acabada tenho esta travessia,
Do célebre atlântico centro
Ao ulisseo ou Olissipo porto.
V
O tremor do fundo estala
E sobe o vagalhão bravo
Que no ar estoira a rebramar
Ao alto poderoso rugindo.
Em resposta o céu irado
Movimento lhe combate,
De força menaçando,
Desce contra tamanho arrojo
Espuma contra raio
Da nuvem, iluminada, desprendido.
E nave corta tempestade
C’o medo, arte e sorte.
VI
Imenso líquido corpo
Eleva tremendo fragor
Com ingente sopro
Ameaça grita e’stremece
Ao penedo co’a garra
Recua iroso ruidoso e suspira
Sempre co’a mesma guerra voltando
Em seu limite extenso durando
Mas cessa enfim a refrega
Quand’a luz abre escura cinza
Num acordar que do céu sai
Sem que pecado ressinta
Da guerra passada e fera
A liquidez suave agora
Imagina já a praia total…
Contudo, eis o detrito mortal
Corda alga e concha no areal.
VII
A barca corta afiada
A ventania viva e colhida
O cerúleo mar movente
Este mutável agitado
Mas contínuo incessante.
Ressurge tempo acerto
De rumo e prumo procurado
Em governo atento
Neste atlante alento.
Em desigual movimento
A barca d’oiro avisada
Cavalga rápida e raia.
Eis de lá e d’aquém o além
Virá’inda nova chegada
N’àgua arada e cavada
Que Vénus propícia
Bem ensina e cria.
VIII
Da costa apartando
A proa ergue venturosa
Onde embarca boa a’sperança.
Mas natureza assim termina
E medos vistos carregando
O mar incerto já ferve.
O coração em vaso pequeno
Em mal, perigo e’abismo
Veste igual bruma.
A quilha e geometria abstrata
Apenas essas retêm forma
Pois a linha do horizonte
Desapareceu por natural vontade
E rente encerra o’spaço,
Em névoa e ondas que antecipam A verde animação d’alva ‘spuma. Diferente eu e natureza elaAgora só vaga e pena
Na ruidosa curva marítima.
Em ventos geme o massame
A cordoalha retraio e largo,
Recolho o velame do tridente
De Neptuno inutilmente alheio
Que prevalece gravemente.
Neste seu e meu trabalho
E‘stico tremendo o Tremendo,
Seu bramido na cerração não esconde,
A voz assim de oceano, navio e vento.
Passa em vôo o pensamento
Que procura animoso
Com temor e ledo Memento
O saber para arte condizer.
O íntimo alento do vaporoso ’spírito
Que ânsia habita e liberdade,
Vai contra a forma vaga fugitiva
E rompe a forte ond’embravecida
No salgado e selvagem reino passando.
Muita vez assim jogando, volvido
Torna depois o gigante serenando
A manso e sem pri’go,
Brando dizendo assoprando
Nomes de imortais digno.
IX
Dedicado a Renato Epifânio
Zéfiro d’Oeste fecunda,
Como diz o antigo grego,
A égua lusitana
Criando o corcel mais presto.
Também nele retorna
P’lo líquido sonante
Crespo e subido oceano
Nunca ’sgotando possança
Em íntima lusa aliança.
Quem manobra a travessia
Quando fúrias nele provoca
Uma constante ressurge:
Lá além, céu e s’trelas não passa,
E permanece a sagaz bolina.
Mas natural motivo não termina,
Dionísio de dispersa companhia,
Poém está aqui o velho porto
Meu bendito conforto
Onde canta clara sempre nova
E’o presente ‘scrito comprova.
X
Dedicado ao João Luís Ferreira
Peleja viva e constante
No diverso p’rigo iminente
Sobre esperança imanente
Permite humano intento.
Mas encima deste promontório,
Vejo das ondas sua refrega,
Nesta sempre mais segura
Firmeza rocha de pedra.
Ao longe um navio
Sulca tanta elemental pujança,
…Quão pouco contr’ele monta
Vontade, crença e’sperança
Neste mar sem outro caminho
Senão, para o tempo, a mudança.
XI
Ao Elísio Vaz e Gala
«O ponto cental do quadrado»
Com a Musa ausente
A Musa e’xtravagante
Não a recuso nunca, que é tão ditosa,
Pois sem o fuso dela navegante
Não obtenho sopro da Formosa dela
A vela Secunda do Estai,
Latina, que agora não diz nem sente nem ousa e vai.
Mas a Genoa, maior, é de nosso destino
No qual o todos e Dionísio deus é submetido.
Pergunto então precisamente
Se há na mente um confinante
Para que sempre encontre
A Musa, deste possuído
Em desejo procurando intenso,
O ponto cental do quadrado ou círculo,
O pomo mais brilhante,
A ver se enconto sentido
Desde a remota página,
Oculta na garganta do antigo,
Qu’atravessa noite e dia
Em seu marulho contínuo,
E com Amor e sangue vínculo
Em sede tão contínua servida,
Que escuta e diz, o presente, a ida, a vida
E a memora no’spelho d’outrora.
A lusíada língua faz juntar,
Que anciã é e sempre brota ramo,
Em tanto fazer, desfazer e deliberar
Gerada p’lo Fi d’antanho
Rocha e altura de toda geometria.
E por essas palavras desenterrada
Caminho p’ra Era mais’amiga,
No vasto mundo que está em toda parte
Qu’o aquoso envolve,
Além dos pilares d’Hércules arrogante
Das portas de Gades além.
Astúcia e crus cortam o golfo,
E’ao oceano tecem ’inda sua quilha
Por entr’ondas para intacta ilha
Onde existe um fogo
De humor pereçoso e galego
Rápido vivo s’espanta
E águas volume acrescenta.
Depois, para cá e para lá,
Como terá dito Himilco dos navios,
«lentos e lentos rastejam»
Entre monstros, que os há, pois aí nadam,
Mas pensar lusíada com céu duro ou incorrupto
Foi severo e demoveu esse apuro.
Não falarei além sem a Musa dedicada,
Dos segredos d’água e fogo,
Que agora pacífica é repousada.
Mas olhando, e só, a selva d’água torvelina,
Fico em visão terrível que m’embebe:
O curvo recife não recebe
A alva desfeita e dobrada
Que é sem porto ou protetora.
XII
(Com a Musa ausente)
Somente só nesta angústia
Que m’atravessa e coibe,
Habito desde infância
Desde que lembrança alcança,
Junto com’a praia que apenas respira
E na volta retraída e’nspira,
Antes mesmo da dor em fonte dissipada
Tomo ora a semelhar
A mesma ânsia à alma similar,
Brotando este dizer difuso.
Novamente, no mesmo excerto musical
Repetidamente envolvido,
A esta praia, e depois no interno pélago,
Ao redor do fundo colorido
’Inda pelo sol penetrando o diverso,
Brandamente então na flora que dardeja
Com peixes passeando variegados
Na água c’o astro luminoso.
Então distanciando-me do rochoso,
Suspreende-me por baixo um abismo negro
Que se abre como golfada num outro mundo todo.
Sustento o’assombramento desse ignoto
Álgido em minha criatura, agora suspensa de tetro.
Mas em breve o mar será agitado…
Penso e convoco forças,
O salpico está saltando acima das vagas,
E na curva do ilhéu reentro.
Sobe sem o segredo
Que guardara do abismo,
O ar esquivo e arisco
Que de toda a parte se remoinha
E o vagalhão urra contra a rocha.
Nesse reino de Plutão abissal,
Transmutei d’antiga ansiedade o temor
Nessa extensão deshumana e espantosa.
A remos, num bote, me fui a terra
Antes que a correnteza possante
E o movimento do ar deslocado para norte
Me impedisse tal intento.
Assim ao ilhéu fui nadando até sua enseada
E remando depois com ímpeto, ágil, dado
Para a praia breve mas segura
De Vila Franca assim chamada.
Na fluência das rajadas frequentes,
Coberta de cerração cinzenta, as nuvens pesando
E na correnteza que mais corre
Os remos requeriam forças mais intensas
Pois se enfrentava e confrontavam os Elementos
E vogava apenas, demasiado para Oeste deslizando,
Onde os rochedos estalavam voz em seu palato
Com o mar contr’eles rugindo troante.
Chovendo copioso pel’a grossa nuvem.
Três vezes corrigi a rota,
Mas a custo e receio apontei o bote
Chegando à praia linda almejada
Salgada d’espuma e toda coberta de sargaço
Em cores de romã e púrpura.
Do passeio entre flora e fauna
E passando a visão impensada e mais profunda
Aí onde o próprio Saturno não se aventura
Tenho hoje a praia por sagrada.
Ofegante, alagado, de força humana degradado
Subi o bote c’os remos longe do rebentar
Encapelado, potente e irado.
Continua mais fera
Águas fervendo c’o penhasco medonho
E a rocha berra contrapondo.
Como pude, chamado pelo vent’oeste
Se vejo seu perímetro tomar
Tão contrário c’a aurora?
Situado do lado em que o sol se esconde
Na região chamada Poente,
Que apenas existente em minha mente
Pois é lá que nomes e lugares nascem.
Hei-de voltar ao abismo em calmaria
E considerá-lo gravemente
Pois nosso encontro foi demasiado breve,
Quero sondá-lo em mim a ver se lhe falo
Quero ouvi-lo a ver se o falar entendo.
