A Ode Marítima é um dos poemas mais extraordinárias de toda literatura Portuguesa. Todavia,, nem sempre devidamente atendido...

«Que eco levanta hoje a ideia

de um espaço e de um tempo qualitativos?»

Com António Telmo, Ed.Zéfiro, 2017, p.199

«Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?

Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,

Real, visível como cais, cais realmente,

O Cais Absoluto»

Álvaro de Campos, Ode Marítima

            A experiência que o autor evidencia de sua presença e memória, por metáforas e por sobreposição de imagens, desencadeiam um mundo e caminho sensível,  ficcional e simbólico, que se tornará nosso se caminharmos com o autor sob o tema viagem. O Poeta e leitores convolam-se, transformam-se qualitativamente, e conformam-se por aperceção expressionista a um País (1), assumindo subjetivamente a história marítima longa e recente. Somos, assim, incarnados pela dicção poética, primeiro com um vagar que procura no horizonte, depois, em ansiedades e paradoxos.            Apresentam-se-nos sem cessar quadros, diz-se aqui este ser um poema tão pictórico como soprado em temas musicais, por onde a inteligibilidade fragmentada com o sensorial em hiperestesia, isto é, excessivamente aberto e com senso simbólico em cada impressão, mostrando-se presente sobretudo nas dificuldades da Viagem. E nisto, pela sobreposição e cosedura dos planos que se sucedem, cria-se uma imagética que muda vertiginosamente. Facto é a textualidade ser multicêntrica, pois contém arcos semânticos traçados sob mais de um centro, e, por isto, instável a textualidade, promove as expectativas de leitura correspondentes: A reflexão do autor em distorções semânticas como sua visão que discorre em quadros fundindo imaginação poética com memória História, que, quanto ao seu movimento nos guia por muitos sem caminhos e sem sentidos. Porém, nos nexos, paradoxos e pesquisas de sentido na Ode Marítima, o que se questiona são as raízes e coordenadas fundamentais de conhecimento pessoal e nacional, numa mesma voz poética, no espaço físico e no espaço qualitativo dos símbolos onde situam-se tudo o que ocorre por viagem, mar, cais de partida e chegada.

            Viagem é aqui o tema central e a delimitação desta indagação e reflexão investigando-se na Ode Marítima, tema que considero o axial desta Ode, as revitalizações e intensidades emocionais, de quem toma parte ativa e passiva, tanto o leitor quanto o poeta, tanto  suscitadas por exaltações e melancolias. No presente e na distância temporal do passado e futuro, convoca-se a palavra para realizar no aqui e agora um modo, que se revelará de difícil ou impossível alternativa, arrancada da memória Histórica e não cabendo no presente aparente,mas onde está, contudo, oculto apesar dos luzimentos de modernidade.

            Na solidão do «cais deserto», e depois no ímpeto do acontecimento vital que pulsa e se evidencia à consciência, descreve-se o primeiro quadro: Um horizonte indefinido a ser e a chegar, embarcações móveis na paisagem fixa. Um paquete vem entrando, vindo ao longe. Atrás de si, uma manhã abrindo-se no cais onde estamos. Segundo quadro: Está desperta a vida marítima no cais onde permanecem autor e leitor. Erguem-se velas, avançam rebocadores, surgem as barcas que estavam em abrigo junto ao porto, e os «paquetes que entram de manhã na barra», mostrando visível, o «mistério alegre e triste de quem chega e parte», o enigma do chegar e do partir, que está entre dois pólos, mas que o movimento das circunstâncias marcando  a delimitação, «partida», «viagem» e «chegada». Nesta delimitação da viagem, a passagem de um a outro locus é considerado no enigmático todo da existência humana, de toda a humanidade potencial ou atual. Este passar, do partir e do chegar, abre-se, saberemos depois, para uma viagem com retorno, mas inserida no amplexo da existência que o envolve passada e presente, com começo conhecido e objetivo  desconhecido. Será um retorno até ao recomeço, e, literalmente, até ao começo do poema, que ainda se nos adianta para reflexões nesse retorno. Porém, acerca deste assunto refletir-se-á adiante.

            Será esta uma Viagem com retorno, como o que tende para um fim mas enquanto decorre é isto de modo não ciente, não houve caminho, não foi como ato humano deliberado de iniciativa própria, mas sim num processo humano de intuição, de associação e dissociação, de indagação do viver recorrendo tanto à memória Histórica como ao inquieto e impetuoso «volante da imaginação».

            Nesse cais em que se divaga mas presente, todavia, e repetimos a benefício da leitura deste tema – a viagem -, sua e nossa presença está-nos perante e adentro do País, qual baleia de Jonas, coletivamente considerado em sua história, e atualidade como acontecimento vivo. Neste estar só no cais surge outro cais, o pretérito cais de outras séries culturais, outros modos e variados, mas de uma mesma humanidade. As épocas coletivas, acolhidas como ocorrência viva nele autor e em nós, olhamos  e vemos, e para sempre se transformou o ver pelo que será a sua e nossa Viagem. Assim giram dois grandes círculos em convívio, o Mesmo e o Outro, que se intercetam perfazendo uma esfera (2), um deles volvendo marítimo o pretérito e o outro o seu atual presencial (3). No largar o navio, do cais vamos sendo em nós como o que «em mim quem eu fui…», mas, emocionalmente  também «recordação duma outra pessoa/[de outras épocas] Que fosse misteriosamente minha [e nossa]». Esta irrupção corresponde também ao incarnado modo do havido histórico e do a ver em aberto

            Este poema é uma Ode, um cântico para assuntos da esperança, que transmite e faz comungar da viagem, a Ode em nós, mas sem ainda conhecer sequer a rota sequer a distância. Estamos pois à margem do espaço e tempo vulgares, qualitativo espaço e tempo simbólicos, apenas poder-se-á proceder expectantes e em ativo humano trajeto. Primeiro não ter a prestar contas ou justificações, nem de créditos a haver, nem desejo de fortuna, num alcançar sabe-se lá o quê, mas sem nada a possuir, sendo obrigados pelo próprio imaginário na procura de sentido, com súbitas «volta de volante», pela memória e imaginação, vendo-se pois na necessidade de ter fatalmente de pretender e falhar, de saber e não ter, apenas a necessidade de dignar-se a considerar tudo o que advém à memória como na imaginação, pesquisando autodidata uma viagem e, afinal, ocupando o mesmo «locus», e, sem mestre que auxilie o passo ou devidas passagens.

            Ao sol do nascer o cais, material, visível, cais de facto, e, no mesmo o acontecimento do «O Cais Absoluto», quanto pode ser tal noção «fora do Espaço e do Tempo». Traz ao cais o arquétipo Cais. E esse cais de pedra, já «sobre água verdadeira» é, portanto, símbolo, sobretudo em «certos momentos» de «sentimento-raiz», e, sem que nada se altere, se lhe revelará diverso do normativo e do necessário modo quotidiano. É deste «Grande Cais» de onde agora precisamente partiremos, desse grande cais arcano, mas…, de que porto e em que águas partimos? Uma interrogação exteriorizada e completamente respondida, pela assimilação perfeitamente confusa entre o cais material e o simbólico. A Partida desse Cais simbólico não referencia qualquer ponto de chegada, não tem bilhete o seu passageiro, nem o autor nem o leitor, de sua ida ou volta. Vai a sua partida transcendida da normatividade, mas, também em movimento sensitivos, auditivos e visuais que situam-nos: Desabrocha as quotidianas «manhãs num ruído de guindastes/ E chegadas de comboios de mercadorias, (…) sob a nuvem negra e ocasional e leve /Do fundo das chaminés das fábricas próximas». A viagem-passagem que o autor nos transporta, guiando num plano existencial qualitativo, numa subjetivada existência sempre inserida no presente ou memória, oscilando do destino passado ao futuro em prolongamento, sem qualquer espécie de alucinação que entreveja algum definido espaço físico ou simbolizado.

            A viagem, aqui tema central, conscientemente recolhida da Ode Marítima, sendouma das metáforas mais altas da própria laboração artística, esteticização que da elaboração transfiguradora, neste caso, é evidente que se trata de passagem ou «ponte entre qualquer cais e O Cais».

            O cais aí perante desde as primeiras palavras seguidas da observador de um vapor que chega de longe, é o cenário com a vozearia e outros ruídos dele próprios, de onde toda a tenção almeja. A passagem será, pois, nossa procura compulsiva, irreprimível, de sentido e de transcendência, e, mesmo que eventualmente inscientes disto, realizada por inquietação e necessária atividade prática, labor de, para e na viagem vital, neste caso, especificamente marítima, com suas próprias referências e objetivações humanas, no imediato do labor, na distância intermédia do comércio e indústrias, ou na viagem pela interrogação final do existir humano. O «Arcano Cais», símbolo e sentido último do que é de sua vida ciente da interrogação filosófica, esse Cais é um êxtase fora de «horas». Efémero e duradouro, porque este  Cais é o que na tradição marítima portuguesa, resistiu e resiste à passagem do tempo (4).

            A Ode Marítima, por aperceção em nós do dito, prepara-nos para uma alteridade. Deste cais de que se liga simbolicamente ao Cais de onde acontece a Viagem, sabe-se de antemão que nesse navio há sempre «alteração a bordo!» e convivente continuamente na «ebriedade do Diverso!» e, por auto-reflexão auxiliada pelos pontos de observação, nas chamdas contínuas à aperceção de si como leitor e referente a que tudo se remete, não é por ser demasiado populado por ocorrências imaginárias ou memórias desconexas, é a Viagem a situada e simbólica vida que reside na «Alma eterna dos navegadores e das navegações!», dos da Viagem a empreender, almas em transformação e transformadoras, das navegações constituídas para uma nova visão.

            Pintam-se então de seguida os «Cascos refletidos devagar nas águas,/ Quando o navio larga do porto», cascos de navios que flutuam como cascos de cavalos por águas marítimas, agora já com a «alma da vida», e no «partir como voz», em que, vivendo o momento vibram por «águas eternas», dispostos a «Acordar» para outro dia. A transformação metafórica dos cascos dos navios (4) na barca da «alma» e por «voz», vive já o plano de «águas eternas», de re-nascimento em batismo pela Língua.

            Em plena viagem, eis as praias já «longínquas, os cais vistos de longe», e, depois, mais tarde, nas chegadas, «as praias próximas, os cais vistos de perto» no «mistério de cada ida e de cada chegada (…) na dolorosa instabilidade e incompreensibilidade / Deste impossível universo»: variado e turvado de símbolos, de diversidade que exige e nega,  que absurdamente, ou seja, impensável como impenetrável é, sem razoabilidade que alcance o sentido do «que as nossas almas derramaram…» imaginária e preteritamente, sobre as extensões longínquas de si para si ou em si, mas longe também análogo pela distância extensa e temporal, um universo movendo-se no «crescer nítido dos portos com as suas casas e a sua gente (…) [quando o] navio que se aproxima», vivendo entre mundos, o tanto o arcano e o sensitivo, em misteriosa e ainda desconhecida Viagem pelo apenas diverso, de porto em porto, de momento em passagem.

            O Chegar sempre em «frescura das manhãs», e o Partir…. sempre na «palidez das manhãs», Partir no «medo ancestral de se afastar»… onde as entranhas se «arrepanham», com um «receio ancestral à Chegada e ao Novo». É uma Angústia passar, chegar e não chegar, «perturbação de afeições», e…, «a que pátria? (…) vou?». O navegarmos é aqui pela passagem nesta Língua, mas, para que porto ou cais tal não está definido. Perante esse imenso desconhecido fica  «grande vácuo dentro de nós», a «oca saciedade de minutos marítimos», «ansiedade vaga», vaga e lenta ondulação que «adoece em nós». Não é pois, esta Ode, uma celebração de nosso imaginário marítimo, antes manifesta a voz implícita de toda o modo mar, «dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias perigosas», das cadeias de ferro em carne e o escorbuto.      O cenário e Viagem que o poema desenrola, ora descritiva ora narrativamente, também significando-se entre «coisas modernas e úteis», canta languidamente aquilo que a modernidade condena ao desaparecimento e o modo de seu anacronismo ingénuo. Note-se que aquele «vapor ao longe é um barco de vela perto./ [Assim como] Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.”. Inconciliável o fenómeno observado e o seu sentimento íntimo pois coloca-se entre pretérito e presente, conhecido e a mais conhecer, no leitor como no Poeta guiando-nos: “Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,/ E [enquanto] dentro de mim um volante começa a girar (…).” O volante íntimo, ativado pela observação do fenómeno, é o “volante vivo da minha [e nossa] imaginação”, actante que renova memórias, memórias nítidas, ou míticas, iniciáticas (5), que constituem um caminhar ciente da procura de Arcanos, por um tempo e consciência  do qualitativo que as circunstâncias não oprimem. Todavia, o «delírio das coisas marítimas» sensíveis, desorienta, uma observação desencadeia uma introspeção e um muitas vezes labiríntica, pois estão estes delírios do Longe são «libertos do peso do Actual…». Enquanto inscientes pensamos pelo «volante vivo», mas tão contrário ao não viajado… em  «brandura de acções, / (…) medo inato das cadeias, / (…) pacífica vida, / A (…) vida sentada, estática, regrada e revista!”. Ao contraŕio do viajante quotidiano, … eu, diz o Poeta e nós nele, estamos já em pleno mar, qualitativo, um mar, no mar a «pôr no mar, ao vento, às vagas, / A minha vida!»

«Parte [e] torna-te»!

Ode Marítima

            O «paladar» da Viagem, salgado «de espuma arremessada pelos ventos», atravessa tudo o que sucedeu e sucede. Começa, agora, uma temporalidade sombria e terrível, que fustiga águas e as carnes. Aqui neste mar alto entre correntes grossas que se alvoroçam, desce-se a um tempo já infernal… por «ser ciclónico e atlântico», e, com «nervos postos como enxárcias» (6), como cordas estendidas e tensas. E a «Lira», essa, está apenas «nas mãos dos ventos!»… por mim soa com braveza soprada, por mim ciclónico, atlântico, perigosamente confluente nas grossas correntes em que os mares se entrechocam.

            Neste passo trata-se de uma descida , abrupta, inversamente proporcional ao da normalidade e da bonança dos acomodados navegadores que deixámos no cais. Guia-nos aqui um aspeto terrível do real, enquanto quer levar-nos «prà Morte/[Numa] alma a transbordar (…),/ Ébria a cair das coisas marítimas»… seja na braveza natural, no sal, nas tormentas e assobio dos ventos. Dirige-nos, ainda agora ao fundo, o «Fado dos mares cheios de perigos,/Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!»: aspetos como o dos navios ao fundo, o sangue nos mares, a visão de fragmentos de corpos decepados, num mistério escuro e seguro, em que se vê a susto a escuridão, onde (não sabemos já se apenas imaginariamente) sangue se projeta, escuridão que enche a noite, impercetível à vista, mas vista distintamente na distância do observado. Campo de mortos é o nosso fundo. O ilegível abstruso-incompreensível desta passagem escura passando com os mortos, náufragos, piratas e suas vítimas, tudo isto… inscrito na vida humana, nunca completamente descritível, mas imperfeita, remoto facto e presente, espectro e vitalidade além dos limites visíveis que dizemos geralmente humana, o facto ausentado porque se esconde e se mantém no escuro para não se ver. Há notícias de nós que estão obscuras, sem uma Viagem por nossa história, pessoal e coletiva, para chegar a algum conhecimento de quem somos. Escuridão será também tornar do ofício do mal em aceitação redentora, numa mística visão de contrários que permite piratas e vítimas. Descobre-nos assim coletiva e pessoalmente com espelhos quadros expressionistas intensíssimos, o próprio do horror contado e pintado, e, redentor ao mesmo tempo, algo que só divino sustém providencial e oculto.

            Os que não viajam por estes mares, andando «sempre agarrado às saias da civilização!», não podem lampejar estes modos que nem o desejo e a inteligência não podem ou sabem abranger. Escondemo-los pois, que não queremos que caiba o irracional com o transcendente, não nos é cómodo; portanto, melhor será como vulgarmente acontece, imaginar fulgores controlados. Todavia, surgirão os irracionais desentendimentos pelos poros e gestos, por injustiças nossas em nossos atos vulgares, precisamente pela repressão a si do que não pode deixar de conviver connosco, na história nossa e na História. Serão, então, os piratas em sua crueldade apresentados em cenário de escuridão ensanguentada, cenários tão intensos, ignorando-se ocultos em nossa humanidade moderna, pois trata-se da demasiada realidade que na Viagem se apresenta e que o Poeta percorre connosco, enquanto como ele  vítima enquanto como ele cruel, em galeria de quadros tão espetaculares quanto horrendos, e manifesta o mito em si mesmo oculto sem decifração: o inocente em sua passividade redentora e o cruel que não pode deixar de figurar também. Mostrando em esgar esses quadros grandiosos como espantosos, para que não fique a Viagem pela vida humana em modo turístico, pois sendo assim não será ciente sem as alterosas ondulações marítima e suas grossas correntes violentas e discordantes, sem o gigante mar e sem as profundezas noturnas. Essa galeria nítida impressiona tal, que uma vez lida não se esquecerá. Musical, o poema nesta secção é violento, apenas sopros e  percussões. E, desse «fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos» são parte da Viagem e necessariamente. Basta para tanto que os refira como apresentações de humana compulsividade incognoscível, e «para os navegadores ouvirem e não repetirem!», pois tentariam somente «uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas», uma tentativa absurda de orquestração no nosso sangue de balbúrdias irracionais.

            Em «velocidade desmedida, pavorosa» a máquina febril «de visões transbordantes» torna-se outra vez à «consciência, volante», e está então «apenas um nevoento círculo assobiando no ar», ao ar similar no círculo horizonte, «Estático, quebrado, dissidente cobarde». Já não poderá voltar aos doces costumes inocentemente, a «um fardo de rendas!» e a outro cais apenas imaginário. Afinal,  somos moços apenas «— todos nós o somos — do humanitarismo moderno!», que não admite o irracional, e se afoga esquecendo as compulsões contraditórias, se divinas se humanas. A época presente nesta Viagem, quer perder a visão dessas loucuras de «ser gente com violência e audácia» e quer deixar «a alma como uma galinha presa por uma perna!»…Nestas considerações dizendo, sentiu demais, extenuado viveu um paradoxo humano mental e sentimental sem remédio.

            Esta Viagem é através do mar de todas as nossas épocas marítimas e históricas. Ecoará de quando em quando «o vasto grito antiquíssimo»: «Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó — yy… / Schooner [Escuna] ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó — yy……», «grito eterno e nocturno, o sopro fundo e confuso: Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô — yyy ……/ Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô — — yyy…… / Schooner ah-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô — — yy………», exibindo a vida marítima em igual grito de reconhecimento e chamamento, neste caso entrecuzando-se um grito marinheiro para uma escuna, e mesmo entre língua estrangeira, será sempre um grito que congrega a vida de mar.

            Agora já no cais vai decrescendo sempre «sensivelmente a velocidade do volante» de sua e nossa  imaginação. Até um vácuo deserto vem ocupar o excesso que se viveu: O mar noturno em nós, o lugar que «Sabe dos longes» como quem fecha os olhos, e renasce de seu silêncio. Descendo entretanto em nós o «Húmido e sombrio marulho humano», o orvalho sobre a excitação, «o frescor nocturno no (…) oceano interior!». E, no «enorme mistério humaníssimo das ondas nocturnas./ A lua sobe no horizonte/E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim.». Ressurge o passado descritivo, e longamente descritivo, como nós o faríamos se percorremos toda nossa vida por memória. Mas, um outro apontamento axial nesta Viagem-passagem, como na distância das lembranças o presente nunca será ou poderá voltar a ser seu passado. Eis nisto uma outra tragédia irreparável disto: «Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,/ E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!/ Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha./ Pensar isto faz frio, faz fome duma coisa que se não pode obter.» A recordação não nos prende no passado ou sequer a poderemos reabitar plenamente, como sucede na história de tudo quanto se pode dizer histórias. Este passado não trata apenas de mentalmente coincidir com a ideia que o tempo foge irremediavelmente, na frase célebre de Horácio, além disso… é considerada a possibilidade de que pelo passado vimos a ser outros, pelo convívio com o passado e em passagem com ele, cujo tempo não é nem redondo nem linear, mas decorre na vida que então se revela na sua observação, e, assim, se transmuta para consciencial a outro nível, ao nível de maior auto-consciência a si, de seus  percalços não por acidente mas por molde, por suas tendências.

            A Viagem é agora retorno. E retorna a uma «manhã» de sol, ao «marulho leve das águas do rio de encontro aos cais…». À vista, as velas da foz do rio e os montes em «azul japonês» além nas casas de Almada. Na Viagem de volta ao cais da partida, aquele paquete que entrava, ao início do poema, continua ainda ao longe. A abrangência histórica delimita a época presente. O transtorno e a febrilidade humanas permanecem, porém apenas ocultas pela engrenagem das máquinas regulares e pelos sonhos proporcionados. A sua maior previsibilidade tomou a maior parte do humano. O cenário, neste cais de retorno, está todo «bem arranjado», «corre tudo como se fosse por leis naturais,/ Nenhuma coisa esbarrando com outra!». Este dia de retorno é agora uma jornada de trabalho, com tudo a movimentar-se regularmente. A normalidade pertence e é requisitada, para uma imaginação «higiénica, forte, prática» que se ocupe então com as coisas úteis e modernas. Considere-se a gente a bordo dos navios…, seu orgulho de viver numa época onde é tão fácil a mistura das raças, onde é fácil transporem-se os espaços e realizar um grande número de sonhos limpos, «regulares, modernos como um escritório com guichets».

            Não desapareceu do olhar interior e do sentir o passado, mas ocultou-se perante o dado. Não desapareceu da poesia e da memória o que houve e há, que nos deu a ver, primeiro por bombordo na noite e por estibordo à chegada diurna. Passamos pois agora às imagens sensíveis à vista. Se nada perde poesia é porque o navio da Viagem será, é em nós leitores onde será ir e voltar. Neste poema-Viagem o longe permanecerá, é percurso com distância, onde sempre outro longe se apresentará, seja por retorno a um transmutado ver, seja por horizonte continuadamente sem fim, como o escuro cerrado, que, em nós e de nós tudo desponta: Assim não o expediente e o livro de ponto, não as interessantes construções de sintaxe, não para todo o dito que capitula ao que quer que seja.

            Ao navegarmos juntos na mistura das gentes, todos somos transitórios duma pátria incerta mas marítima,  que desloca-se sobre as águas. Mas, esta moderna vida «flutuante, diversa» educa-se numa humanidade pobre de tempo histórico, nem cronológico ou sequer biográfico, não há pois o tempo qualitativo de humano-viajante em si. O País que é o próprio espaço humano, onde nada é alheio, enquanto sabe o que sabe e sabe que sempre haverá a pensar, nesta época em que parece estar tudo prescrito em faturas e escritórios, enfim, na objetiva e externa mundanidade, a soberania partilhada vem muito mais à vista, já mortiça e resignada nisto.

            Aquietados e conformes às coisas modernas que andam no mar, contudo, o poema demonstra que sempre se recupera de memória a Viagem, inserindo-se no que continua a ser o «velho mar», «o homérico», o de «Ulisses!», com o «olhar humanitário dos faróis na distância da noite». Nesta «hora real e nua», exausto na praia como Ulisses, antes de ainda ser reconhecido, somente primeiro pelo seu velho cão e, depois, pela velha ama que lhe lavará os pés e lhe descobrirá uma cicatriz de meninice. Este é o homem que só àquela sua terra pertence e, contra a possibilidade, lhe foi devolvida como ele do mar a ela. Providencial Viagem marítima com retorno, tão certa quanto incidental.

            Noutro aspeto Providencial, à semelhança de outra história, ao final das aventuras de Gulliver (7), este é recolhido por portugueses em mares longínquos, onde junto de quem o autor de peripécias (8) encontrou sua humanidade. Consideremos as referências de Jonathan Swift no desfecho de seus incidentes, e pleno de acolhimento e calor onde se exibem aspetos paradigmáticos humanos que jamais encontrara: «Um dos marinheiros, em Português, mandou-me subir, e perguntou quem eu era (9). (…) Os bons Portugueses ficaram igualmente espantados com a minha singular vestimenta, e a dicção estranha das minhas palavras, que, no entanto, eles entenderam muito bem. Falaram-me com grande humanidade, e disseram: tinham a certeza que o capitão me levaria grátis para Lisboa, onde eu poderia voltar para o meu país (…). [O nome do Capitão] era Pedro de Mendez (10), uma pessoa muito cortês e generosa. (…) Em dez dias, Dom Pedro, a quem eu tinha dado conta de alguns dos meus assuntos privados, impôs-me como uma questão de honra e consciência ‘que eu deveria voltar para o meu país natal, e morar com minha esposa e filhos’. Ele disse-me, ‘havia um navio Inglês no porto pronto para sair, e ele iria fornecer-me todas as coisas necessárias.’ Seria fastidioso repetir seus argumentos e minhas contradições. Ele disse, ‘era completamente impossível encontrar uma ilha tão solitária como eu desejava para viver, mas eu poderia ser senhor em minha própria casa, e passar o meu tempo de forma tão reclusa quanto  quisesse.’ Acedi (…). Saí de Lisboa no dia 24 de novembro (…). Dom Pedro acompanhou-me até ao navio, e me emprestou vinte libras. Despediu-se gentilmente de mim, e abraçou-me na despedida (…).».      Embarcou de Lisboa, mas «no corpo deste outro navio/(…) um «tramp-steamer inglês» (11), que poderia ser francês, acrescenta o Poeta. «Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto… (…) Vai-te de dentro do meu coração». E ficamos em nossa tristeza, na cidade ao sol, que, afinal, foi e poderá ser epicentro de todas as Viagens siderais. Que homem é este sem reconhecimento? Que País é este? Agora, apenas, um «silêncio comovido».

Notas

1) Expressionismo: movimento artístico surgido no início do século XX, contemporâneo desta Ode de Fernando Pessoa (c. 1915), privilegiando a forma subjetiva da aparência apercebida, conduzindo a que o valor dominante resida na intensidade da apreensão e sua expressão dramática em detrimento de algum equilíbrio formal.

2) Platão, Timeu.

3) A eidética é a representação nítida de um objeto, diferindo da alucinação, permite um permanecer textual sob signo, sinal, sema (uma das unidades mínimas de significação, traço fonológico distintivo de referenciação), ícone, imagem e conceito, prolonga-se na Língua, assim conservando o modo existencial no qual  se incide.

4) Se nos ressoar imaginariamente, por associação homónima, os cascos dos navios para cascos de cavalo, eis um um cavalgar sobre as águas, relembrando a vinda num tempo qualitativo, aqui de tipologia sebastianista própria à cultura portuguesa. Note-se, que este viajar, andando ou cavalgando sobre as águas, é símbolo de intemporalidade em diversas culturas e religiosidades.

5) Iniciáticas enquanto determinarão experiências próprias de uma atividade que é Viagem, desde as primeiras noções fenoménicas, que logo se constituem em símbolo e arte, um modo de saber humano, e que, pelo seu processo entra a comunidade dos leitores.

(6) Cabos que servem para içar, aguentar e manobrar as velas de um navio.

(7) Mudanças imprevistas, incidentes.

(8) Jonathan Swift, Viagens de Gulliver, 1726.

(9) “Selon vous, a-t-il existé une langue mondiale avant le français? Cést-a-dire une langue par laquelle on pouvait se faire comprendre un peu partout en Afrique, en Asie et en Amérique, et pas seulement dans quelques colonies?” Eh bien, personne nést arrivé au portugais; quelques-uns ontmentioné l’éspagnol; peut-être ma définition de “langue employée dans la plus grande parie du monde” a-t-elle confondu mes interlocuteurs. Et quand même, comme je vous le montrerai, vous avons des preuves que le portugais – et non l’espagnol – a été la langue de communication par excelence aussi bien aux Antilles que sur les côtes de la Chine par exemple – la “língua franca portugaise”, comme l’appelait dans la 1re moitié du XVIIIe siècle le voyageur allemand Otto Mentzel, pour l’opposer à la língua franca méditerranéenne. Mentzel avait passé une huitaine d’anées au Cap, probablement de 1733 à 1741; c´etait le grand adversaire de Peter Kolbe, son compatriote et un autre témoin important. Mais il sont d’accord sur l’ubiquité du portugais dans la colonie du Cap et aux Indes Orientales. [Na continuação deste estudo, os exemplos citados provam a presença do português nos lugares mais remotos e distantes do globo, língua de comunicação mesmo entre os vários estrangeiros em tão longínquas e dispersas regiões.] M. F. Valkhoff in «L’importance du portugais comme langue mondiale avant le français», Miscelânea Luso-Africana, Colectânea de Estudos Coligidos, JICU, Lisboa, 1975, p.74-75 e sgs.

(10) Dom Pedro de Mendez é uma personagem que desempenha função decisiva e  simbólica. Ele trata Gulliver com paciência e ternura oferecendo-lhe as melhores roupas para substituir os farrapos. Depois deste lhe relatar suas andanças, e lhe acolher em viajem e em sua casa em Lisboa, Dom Pedro de Mendez mostra o mesmo tipo de generosidade e compreensão que o mestre Houyhnhnm de Gulliver lhe mostrara a ele anteriormente (um de uma raça de cavalos dotados de razão, que governam os Yahoos, uma raça de criaturas brutas e degradadas com forma humana). Gulliver, escapando de seus próprios delírios, pôde ver a razoabilidade e a gentileza de Houyhnhnm no comportamento de Dom Pedro. Este é assim a pedra de toque através da qual constatamos que Gulliver se vê já como um observador de uma realidade sem delírios privados.

(11) Navio a vapor de aluguer sem carreira regular.



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