Beira mar é o título do quarto livro da monumental obra memorialista de Pedro Nava, notável escritor mineiro, publicado em 1978, e o quarto de uma série de seis volumes, a que há que acrescentar um sétimo deixado inacabado.

Beira mar é o título do quarto livro da monumental obra memorialista de Pedro Nava, notável escritor mineiro, publicado em 1978, e o quarto de uma série de seis volumes, a que há que acrescentar um sétimo deixado inacabado.

A obra tem para a cultura brasileira o mesmo valor que Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, retratando grande parte do século vinte brasileiro, como À la recherche du temps perdu fez ao século dezanove francês.

Por um conjunto de circunstâncias que se colocaram ao ordenamento do espaço do Brasil, quase desde 1500, e à qual corresponderam decisões políticas, administrativas e geográficas pouco razoáveis, ambas (circunstâncias e decisões) complexas e por vezes entediantes – e por isso fora do formato que pretendemos para este artigo – tanto das autoridades portuguesas como brasileiras, acabaram por privar o Estado de Minas Gerais do contato com o mar.

Aquilo a que hoje corresponde a configuração de Minas Gerais, dentro de uma ou outra unidade territorial, sempre foi de excecional importância para a formação e desenvolvimento do país, bastando recordar que foi das suas minas de ouro e diamantes que saiu a fortuna que fez de Portugal provavelmente o país mais rico do mundo ao tempo do Senhor D. João V, e que já enquanto independente e republicano, suportou a estrutura politica do pais até 1930, através da associação de Minas Gerais com S.Paulo, na célebre união da República café com leite.

Era o tempo do Brasil agrário – o qual a revolução getulista de trinta procurou substituir, ou pelo menos atenuar, através da industrialização – em que do planalto paulista cafeicultor vinha o café, e das serrarias mineiras pecuaristas, o leite.

Curiosamente, já com a industrialização, de Minas Gerais sairia o ferro para a indústria transformadora de S.Paulo, e desta nova associação, um dos maiores suportes da economia brasileira.

Mineirismo, mineirice, mineiridade. A qualidade de ser mineiro tem vindo a ser identificada, analisada e definida.

Do resultado desta última, parece sobressair a prudência, associada ao conservadorismo e ao individualismo.

Tudo caraterísticas que não podem ser encontradas em Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, que em abril de 1746, durante a Inconfidência Mineira, ofereceu a sua vida em prol da primeira tentativa de independência do Brasil.

Um dos processos mais sedutores de ultrapassar um problema, deixando-o por resolver, como seja por exemplo uma definição, e que é de sobremaneira utilizado pelos ingleses, é substituí-lo por uma frase de espírito, e passar ao problema seguinte.   

A adotá-lo, então a minha definição preferida de mineiridade é a arte de descalçar as meias sem tirar os sapatos.

Minas Gerais, está indissoluvelmente associada à arte universal, através daquilo que é comummente conhecido como o barroco mineiro.

Uma Roma que se muda para os seus domínios no novo mundo, acossada pela Reforma Protestante no velho, e que se fixa nos trópicos montanhosos rentes aos céus, nos Andes e no relevo mineiro.

Com alguma expressão na música, o barroco mineiro sobressai sobretudo na arquitetura, na pintura e na escultura. Ou seja, nas suas igrejas.

E abrange desde o ascetismo dramático das figuras esculpidas em pedra sabão pelo Aleijadinho, até à decoração do interior dos templos, com destaque para a talha dourada faiscante e para o mundo feérico pintado nos tetos.

Como estas igrejas, ao contrário do que pode ser encontrado em Praga, na Baviera, ou em Espanha, não são grandes, a primeira impressão que se tem quando se entra na Igreja do Carmo, do Rosário, Matriz, S.Francisco, e outras, reforça em nós o recato de falar baixo, se estivermos acompanhados, ou pensar baixo, se estivermos sozinhos.

Espalhadas pelos vales e elevações em redor, em lugarejos dispersos como Mariana, Sabará, Ouro Preto, S.João del Rey, Diamantina, que ainda hoje são parcas em gente, a segunda impressão, é a de que o pintor colocou no teto toda a população disponível da localidade.

Minas Gerais, comunicava com o Rio de Janeiro, e daqui com o mundo, através das Estradas Reais, caminhos (estradas, trilhas, picadas) de construção e manutenção, régia, pelo poder central ou pelos seus representantes locais.

Uma vez abertas e a funcionar, eram os únicos caminhos autorizados – e pagos – e quem não os percorresse, podia-se dizer (literalmente) que andava por maus caminhos.

Os caminhos das Minas Gerais, a partir do século XVII, chegando alguns mesmo aos inícios do XX, eram o aproveitamento das primitivas trilhas indígenas, que estrategicamente implantadas, permitiam unir o interior do Brasil, e da sua rede, alargada e melhorada, surgiram as Estradas reais.

A Estrada Real do Rio de Janeiro, era uma dessas redes, e assentava sobretudo em dois caminhos: o velho e o novo.

O Caminho Velho, promovia o contato da produção mineira de Ouro Preto (antiga Vila Rica) com Paraty, no litoral fluminense, através de cerca de 1200 quilómetros, percorridos sensivelmente em 100 dias.

De Paraty, o ouro era embarcado para o Rio de Janeiro, e daqui para Lisboa.

Para facilitar esta logística, em 1707, foi aberto o Caminho Novo, que ia encontrar o Velho em Ouro Branco, e depois através de um transporte multi-modal, que incluía a rede fluvial, alcançava o Rio de Janeiro, inutilizando o transbordo em Paraty. Mais tarde, melhorado e ampliado, este caminho permitiu igualmente escoar a produção cafeieira do Vale do Paraíba, e portanto, do terceiro ciclo de riqueza do Brasil, depois do açucar de Pernambuco e Bahia, e depois do ouro de Minas. Agora era o café de Minas, Rio de Janeiro e S.Paulo, sobretudo deste último.

É toda uma Minas Geraes, ou apenas Geraes, onde o som dos sinos ecoa por um azul arciprestal, num horizonte enrugado, a mover-se rumo ao rumor do mar.

Já com António Carlos (Tom) Jobim, sucedeu algo ao contrário.

Carioquíssimo, nascido à sombra da mata da Tijuca, muito cedo se transferiu para o seu reino encantado de Ipanema, onde escreveu das músicas mais bonitas sobre o mar, de Garota de Ipanema até Wave.

Porém, pouco a pouco foi fazendo o caminho da sua estrada real, mas agora do areal da praia para as terras onduladas das Minas, cobertas de espinhos e ipês, onde voa o urubu.

Esta viagem termina no cume imenso de Águas de Março, (…é um Belo Horizonte…) de 1974, e foi particularmente inspirada na obra de dois grandes escritores mineiros, que mais do que seus contemporâneos, eram seus vizinhos, e logo dois dos maiores vultos de sempre da cultura brasileira. Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa.

Carlos morava em Copacabana, e João, no Arpoador, naquele território fronteiriço entre Copacabana e Ipanema.

Guimarães Rosa, barroco mestiço, saiu da sua Cordisburgo – que não fica nos Alpes bávaros, mas mineiros – para viver na Europa, na sua qualidade de diplomata, até se fixar no Rio de Janeiro, na chefia da Divisão de fronteiras do Itamaraty. No Rio, nas noites sem estrelas do seu apartamento da Rua Francisco Otaviano, escreveu pela madrugada fora, a sagarana (do radical germânico saga, mais o sufixo tupi rana, parecido com) de um território mágico, inventado e desenhado pela sua pessoa, o Grande Sertão, Veredas.

Às oito línguas estrangeiras que falava e escrevia, mais o português pátrio, Rosa juntava uma língua criada por si, parte a partir das estórias ouvidas – e nunca escritas – às caravanas de vaqueiros que pernoitavam nas vendas de secos & molhados, vestidos de vaca da cabeça aos pés.

Diferente, Carlos Drummond de Andrade, clássico puro, poeta de rara sensibilidade, contenção e erudição, depois de descer da sua Itabira ferrosa alaranjada, instalou-se em Copacabana, para pinçar entre livros e dicionários, as palavras com que compôs a grande pergunta mítica: e agora José?.

A sua última morada foi na rua Conselheiro Lafaiete, onde em 1982, o Jornal do Brasil, pretendeu homenageá-lo com um caderno cultural – os extraordinários cadernos culturais do JB – e o poeta e o repórter/fotógrafo, saíram pela Avenida Atlântica à procura de uma fotografia definitiva.

Encontraram-na num dos bancos do calçadão, conforme pode ser atualmente observada numa estátua em ferro colocada no local.

Mas não sem antes Drummond ter protestado:

Como você ousa posicionar um mineiro de costas para a praia?

Mas para entender, e melhor explicar, o que é Minas, nada melhor do que um não mineiro, como o grande Rubem Braga, de Cachoeiro de Itapemirim.

Numa crónica deliciosa de 1954, publicada na Revista Manchete, e atualmente disponível no magnifico acervo do Instituto Moreira Salles, intitulada simplesmente Os mineiros – à qual mais simplesmente ainda, alguém acrescentou à mão “Os mineiros no Rio” – fixou para a posteridade o que é ser mineiro, utilizando para isso uma conversa entre eles.

O mais que eles falam é segredo mineiro; suspeita-se de que debaixo do maior sigilo comentam pessoas de Pernambuco, do Rio Grande do Sul e outros países estranhos e certamente bárbaros; tramam ocupar novos territórios capixabas e sonham com um porto de mar – pois assim são os mineiros.



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