Mesmo sem mar, todos os vinte e três de março, a Bolívia comemora o seu Dia do Mar.

O mar foi perdido para o Chile numa guerra (1879-1883) andina, mas com grandes batalhas no mar, disputada por recursos minerais, nomeadamente nitratos como o guano e salitre. Cinquenta anos depois a Bolívia tentou recuperar o mar, não já o seu, mas um pedaço do Atlântico, e à custa do Paraguai, utilizando o emaranhado dos rios amazónicos e do complexo do Paraná/Prata, na Guerra do Chaco (1932–1935), e uma vez mais por causa de recursos minerais, desta vez o petróleo.

Mas o discurso do presidente Luis Arce Catacora, para além das referências à mítica fronteira do mar, perdida, mas não deixada de sonhar, informou ao povo boliviano a descoberta de mais 2 milhões de toneladas de lítio, em Uyuni, Copaisa e Pastos Grandes, o que somados às reservas já conhecidas, faz da Bolívia um parceiro importante no assunto do Lítio à escala mundial, com as suas reservas de cerca de 23 milhões de toneladas.

Este pequeno e muito digno, país andino, que sedeia a capital mais alta do mundo, La Paz, alcandorada em 3 625 metros de altitude, teve desde sempre uma relação particular com os assuntos mineiros, e que vem desde a formação da América do Sul espanhola, com a prata de Potosi, até à atualidade, com o assunto do lítio, passando pelo recente império do estanho, e o poderio da família Patiño, com ligações sólidas a Portugal.

A exploração da prata de Potosi, logo em 1545, possibilitou a criação da riqueza, que permitiu custear a partir de Madrid, a colonização do continente que lhe cabia desde o Tratado de Tordesilhas.

Curiosamente, a exploração quase industrial dos imensos filões de prata, apenas foi possível pela descoberta de um outro metal necessário à refinação da prata, como seja o mercúrio, encontrado em abundância em 1563, em Huancavelica, no Peru.

Assim, mais do que o ouro, foi a exploração da prata, e o produto da sua venda nos mercados europeus – mesmo que da parte que sobrou dos ataques da marinha inglesa, constituída por oficias, cavalheiros e corsários – que possibilitou o estabelecimento de vida espanhola no outro lado do Atlântico e do Pacífico.

Vida dedicada, pelo menos no princípio, a produzir e vender quase exclusivamente prata e ouro, para exportação.

Portugal, fez algo semelhante no Brasil, primeiro sem sucesso com o pau-brasil, mas depois com imenso sucesso, com a cana do açúcar.

Potosi, era um território nuclear ao Vice Reinado do Peru, mas que na sequência do processo de reorganização dos vice-reinados espanhóis ocorrida ao longo do século XVIII acabou incorporado no Vice-Reino do Prata, porque apesar da sua relativa excentricidade geográfica (perto do atual Peru e afastado da atual Argentina) permitia constituir um todo coerente com a produção da mina ao Norte, e a exportação do metal ao Sul, pelo Rio da Prata e Buenos Aires.

Posteriormente, ao longo do século XIX, e já sem o fulgor do grande período anterior, com o decorrer do processo de rearranjo das fronteiras das repúblicas que foram sucessivamente adquirindo a independência de Espanha, acabou por ficar incorporado à atual Bolívia.

E a Bolívia volta a estar particularmente importante para as questões mineiras, quando logo no início do século XX, Simon Iturri Patiño, um creolo (misto de índio nativo com conquistadores espanhóis) começa uma imensa fortuna com o estanho da mina La Salvadora, na colina de Llallagua, na província de Potosi (sempre aqui) descoberto em 1900, e pouco depois, passa a participar  nas fundições do metal na Alemanha e em Liverpool, para depois fazer o empreendimento da sua vida, quando funda o Comité Internacional del Estaño, no rescaldo do colapso económico internacional de 1929, o primeiro cartel do mundo a tentar e conseguir, controlar o preço de uma matéria prima.

Com a imensa fortuna, patrocionou expressivamente o exército boliviano na aventura do Chaco.

O seu filho Antenor, continuou os negócios e a riqueza da família, e em 1952 com (mais uma) nacionalização da economia boliviana, com a ajuda (mais uma) dos norte-americanos, fixa a cotação do estanho, levando a bancarrota ao país, e o seu presidente Paz Estenssoro ao exílio.

E é por esta época, que adquire uma extensa propriedade entre Cascais e Sintra, frequentada pelas celebridades mundiais, sobretudo em festas que ficariam famosas.   

Passado e atenuado este relacionamento da Bolívia com o estanho, que continua significativamente importante para a economia mundial, atualmente o país permanece com uma presença constante nos assuntos mineiros, agora devido ao lítio, e mais particularmente ao chamado lítio andino.

Ou mais precisamente ao ABC do lítio. A de Argentina, B de Bolívia, e C de Chile.

Em conjunto, estes três países parecem responder por cerca de 65 % dos cerca de 100 milhões de toneladas que constituem as reservas mundiais até agora conhecidas.

Contudo, atualmente a produção daqueles três países, é bastante distinta, oscilando entre ser quase inexistente, caso da Bolívia, até ser o primeiro (ou segundo, em conformidade com diferentes critérios) produtor mundial, como o Chile.

Para este estado de coisas, tem contribuído bastante um conjunto de aspetos geológicos, económicos e políticos, cada um de per si, e/ou interligados.

A exploração do lítio andino no ABC (Norte da Argentina e o Chile, e Sul da Bolívia) assenta num processo de evaporação, e este em sol e água. Algo que ali, num cenário feito de céu azul, sem nuvens de dia e repleto de estrelas de noite, é respetiva e simultaneamente, abundante e escasso.

Aquele processo, que possui alguma coisa de insanidade – provocar evaporação num deserto – recorre a gigantescas salmouras a reverberar ao sol perpétuo, de onde por extinção do líquido (e estima-se que seja perdida 95 % da água utilizada, que não é recuperada) e depois de outros procedimentos de lavagem, seleção e apuramento, é possível obter o minério pronto à utilização industrial.

Mas com isto tudo (mais a água necessária à lavagem de maquinaria e tubagens) não é raro gastar cerca de 2 milhões de litros de água por tonelada de lítio produzido.

No Chile a produção é proveniente sobretudo de Cauchari, em Atacama, onde são expectáveis reservas da ordem das 6 milhões de toneladas, e de onde saíram em 2022, 40 000 toneladas de lítio, logo atrás das cerca de 60 000 da Austrália.

A Argentina utiliza um processo semelhante, em grandes solários, mas igualmente diferente no controlo do processo de evaporação, sobretudo no solário de Olaroz, na província de Jujuy, conseguindo em 2022, uma produção de cerca de 6 200 toneladas de lítio.

Já o processo australiano de produção de lítio é substancialmente diferente, mais próximo daquilo que identificamos com uma exploração a céu aberto clássica, e feita a partir da espodumena. Algumas revistas da especialidade apontam para que os custos de produção (uma matéria sempre sensível de cálculo e divulgação) australianos rondam os 6 000 USD/ton, cerca do dobro registado nos Andes.

Aquele método australiano é igualmente o utilizado, com naturais adaptações às especificidades locais, na exploração do lítio em Portugal, que em 2022 se saldou em quase 1 000 toneladas, o suficiente para nos tornar o sétimo maior produtor mundial. Atualmente aquela produção é quase totalmente encaminhada para a indústria da cerâmica e do vidro.

E relativamente à espodumena, é interessante relembrar que se trata de um silicato de lítio e alumínio LiAl(SiO3)2, identificado a primeira vez em 1800, por esse brasileiro notabilíssimo, escritor, político, cientista, tutor de Pedro II do Brasil, que foi José Bonifácio de Andrada e Silva. Geólogo e mineralogista excelente, anos mais tarde identificou um nesossilicato de fórmula Ca3Fe2Si3O12, que este sim, acabou por levar o seu nome: andradita.

Política e economicamente os três países optaram por um controlo estatal da produção, em sintonia com o movimento socialista que, em diferentes graus e estilos, é comum a toda a América do Sul.

As diferenças maiores ficam contudo, pela extensão daquele controlo, ou melhor, do programa tendente à otimização do negócio que ele suporta.

Assim, enquanto o Chile procura rentabilizar ao máximo a atual conjuntura do mercado quanto a procura e preços, produzindo apenas minério para venda às indústrias transformadoras, sobretudo na China, a Bolívia parece pretender promover, participar e lucrar, em todo o processo: da matéria-prima à bateria dos automóveis.

Mas para isso, entre outras coisas, para além claro da sua aceitação por parte de outros agentes poderosíssimos daquele processo, a Bolívia terá que resolver, ou pelo menos melhorar, relevantemente o seu processo extrativo, sobretudo no que respeita ao enorme consumo de água doce que este ainda necessita   

É sol, é sal, é sul, de sonoridade sofisticada (e para permanecermos na letra ésse) é um verso da canção Rio, de Roberto Menescal & Ronaldo Bôscoli, pura Bossa Nova, e que sem evocar agora as delícias das paisagens do meu Rio de Janeiro, serve à perfeição para representar o panorama do lítio andino.

Um sal raro, a secar ao sol puro, no telhado da América do Sul.



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