O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. No Brasil, no Nordeste, que foi onde tudo começou, esse era um famoso lema da não menos famosa literatura de cordel, como então chamada, e que ainda hoje é válido _ ou até mesmo mais válido do que então.

No Brasil, no Nordeste, que foi onde tudo começou, o mar e o sertão, ocupam ambos um lugar privilegiado no imaginário cultural, traduzido por exemplo numa conhecidíssima expressão do cancioneiro popular, muito divulgada pelos poetas repentistas e pela sua literatura de cordel (assim chamada, porque os folhetos impressos adquiriam a forma de livro com cordéis a segurar as páginas, e porque depois ficavam a aguardar compradores, expostos e pendurados em cordéis), segundo a qual se aguardam para o país e o mundo acontecimentos tremendos, e nessa altura…

O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão.

Este estado de coisas naturalmente que se alterou em resultado do gradual conhecimento que os brasileiros vêm tendo do seu país e do mundo, por exemplo através dos aplicativos informáticos – e os brasileiros são particularmente desembaraçados e engenhosos na utilização destas ferramentas – que instantaneamente informam sobre o congestionamento do areal em Copacabana, a altura da maré no Estreito de Magalhães, ou sobre a existência de um buraco em reparação num qualquer subúrbio da Mesopotâmia.

Mas no fundamento daquela representação, estão as duas massas imensas de que o Brasil dispõe: A sua terra e o seu mar.

A União, enquanto pessoa jurídica de direito público, responsável no plano interno e externo, respetivamente pela orgânica federal e pela República Federativa do Brasil, zela e é suportada, simultaneamente por ambos, enquanto partes do território. E sobre este, tremula em Brasília, uma única bandeira.

O artigo 1º, da Constituição, declara que a República Federativa do Brasil se forma pela união dos estados, municípios e do distrito federal. Isso não significa que a União se confunda com a República Federativa do Brasil. Tanto é assim que o art. 18 estabelece que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os estados, o distrito federal e os municípios, todos autônomos. Nesse artigo, ela é mencionada como uma das unidades que compõem a República Federativa do Brasil.

Neste vasto território brasileiro, os cerca de 7,5 mil Km de linha de costa, proporcionam ao Brasil uma Zona Económica Exclusiva de cerca de 3,6 milhões de Km2, e o direito a reivindicar quase um milhão de km2 de extensão de plataforma continental, o que tudo somado, se traduz em aproximadamente 4,5 milhões de Km2 de mar.

Ou seja, sensivelmente metade dos 8,5 milhões de km2 do território do país.

Como é sobejamente conhecido, aquela quantidade de terra, corresponde por sua vez a cerca de metade da área total da América do Sul, o que faz com que o país tenha como vizinhos todos os doze restantes países sul americanos, à exceção do Chile e do Equador.

Já no mar, não existem quaisquer limitações, a não ser, naturalmente, as razões e a disposição dos membros da comissão da ONU, encarregados de avaliar a proposta brasileira de extensão da plataforma continental, e de determinar como consequência, o exato valor desta.

Bem (a metade do continente pertencente ao Brasil) ou mal (a restante metade dividida por doze), a atual configuração da América do Sul, corresponde ao resultado de um processo histórico complexo, que ocupa quase toda a primeira metade do século XIX, e de que resulta a emancipação do território das duas coroas ibéricas, a portuguesa e a espanhola.

No segundo caso, a que corresponde atualmente a América do Sul de língua castelhana, a independência, e depois a conservação do poder arduamente conquistado, assenta numa bipolaridade disputada entre liberais e conservadores, e que ao longo do continente vai adquirir várias e diferentes caraterísticas, e denominações.

Na Argentina, que pode ser considerada o polo cultural, histórico, económico e político, da América hispânica, juntamente com o México, mas este já na metade norte, aquela dualidade vai oscilar entre federalistas e unitários ou unitaristas.

Os federalistas são conservadores rurais, defendendo uma confederação de províncias. Opõem-se a tendências centralizadoras, ditadas por uma metrópole, e colocam reservas à modernização, à industrialização, e à europeização.

São o movimento das grandes famílias tradicionais, das extensas fazendas (ou estâncias) de onde surgem os caudilhos, que fazem política montados em cavalos, e mais com a espada do que com a caneta.

Já os unitaristas, são liberais, urbanos, defendem governos centralizados (de onde podem sair leis iguais para todos) e a emigração.

O tipo humano dos federalistas é o autóctone, e os seus ascendentes, desde que seja um vencedor, ou aliado dos vencedores, geralmente idealizado na cultura nacionalista/romântica/nativista, tendo como representantes, no Brasil, o índio, e também o gaúcho, que são representados pelos habitantes dos campos do Rio Grande do Sul, muitas deles descendentes de europeus que se dedicam a criação de gado.

O dos unitaristas, é, como não podia deixar de ser, o emigrante, sobretudo os seus descendentes; o cidadão que canta o samba e o tango, mas que quando necessário, até está sindicalizado.

Em algumas paragens sul-americanas, os conservadores são blancos, e os liberais colorados.

Quando esta rivalidade dual, degenerava em guerra, o que desafortunadamente acontecia com frequência, surgia então essa outra figura mítica, que era o Coronel, tão magnificamente retratado por Gabriel García Márquez, sobretudo no Aureliano Buendía de Cem anos de solidão, ou naquele que durante anos vai todas as sextas-feiras ao cais, ver se o navio que funciona como correio, trouxe uma carta do governo com a sua reforma.

E até no Brasil, este balanço entre duas conceções de fazer política, se fez sentir, algo matizado, no Rio Grande do Sul, na Revolução Federalista, que opôs maragatos (de lenço vermelho) a chimangos (de lenço branco) e que Erico Veríssimo, também magistralmente descreve em O Tempo e o Vento.

Mas o Brasil, o do primeiro caso de cima, a que corresponde a América do Sul de língua portuguesa, libertou-se desta dicotomia de contenda, conservadores versus liberais, porque a sua independência foi promovida e gerida, por um patriciado rural (pese embora a viver no Rio de Janeiro), em que ele próprio promoveu a alternância de gabinetes das duas tendências, sobre o qual reina um imperador que é liberal, e porque possuía o problema da escravatura para resolver.

Contudo, esta estrutura, que há cerca de duzentos anos permite um formato estável ao continente sul-americano, assente em fronteiras definidas, pese embora as negociações que ainda envolvem algumas das repúblicas, mutuamente descontentes com o seu (das fronteiras) desenho, tem vindo a ser destabilizado com a promoção do estabelecimento de territórios autónomos (no todo ou em parte) indígenas, que uma vez deficientemente caraterizados, por exemplo em nações dentro de nações, podem conduzir à desagregação das unidades territoriais existentes.

Não que os povos indígenas, os ancestrais proprietários da terra, antes da chegada dos conquistadores ibéricos, não possuam o direito a um estatuto especial, até por causa daquela primitiva posse, que tenha em atenção o seu grau de desenvolvimento civilizacional, e que sobretudo possa preservar a sua cultura, fato de que irá beneficiar a humanidade inteira, e não apenas o continente sul-americano.

Da mesma forma, estas populações deverão ter direito a ter o seu habitat preservado de incursões predatórias de exploradores inescrupulosos de matérias primas, minerais e vegetais, mas tanto quanto o devem ter as restantes populações de São Paulo, Buenos Aires ou Lima, por exemplo, todas elas, índias e não índias, protegidas por legislação nacional, comum a todo o território pátrio, mesmo que atendendo às particularidades em presença.

A progressiva chegada ao poder de líderes de ascendência marcadamente indígena, sobretudo nas nações andinas, a recente recusa – manifestada em refendo nacional! -, do Chile em adotar uma nova constituição que permitia a quase secessão de territórios indígenas da república, e a ainda mais recente política para os povos indígenas do governo brasileiro, constitui uma movimentação de amplo significado e alcance, que se não for corretamente pensada e implementada, pode desestabilizar toda a configuração do continente, substituindo as atuais fronteiras, (mesmo que imperfeitas) por outras que não são melhores.

Depois, um movimento de (re)instauração de nações indígenas dentro das atuais unidades geográficas e políticas sul-americanas, dificilmente conseguirá fazer recuar o processo histórico à altura da chegada dos conquistadores ibéricos ao continente.

Com a falta de registos credíveis – ou até apenas de registos – será complexa a atribuição justa e correta de territórios aos pretensos herdeiros/descendentes das nações existentes naquela altura, e é daquele tempo que efetivamente se trata, e que viviam em guerras permanentes, com ganhos e perdas territoriais constantes, fato que aliás facilitou de sobremaneira a instalação e permanência dos ocupantes. Pode-se agora, entregar a uns as terras pertencentes a outros.

Igual dificuldade será instalar populações, cujo território outrora se espalhava por mais do que um dos atuais treze países, apenas num deles, sem a reclamação, porventura justa, daquelas populações. E será praticamente impossível, colocar dois ou mais países, a abdicar da soberania sobre partes do seu território, para permitir a criação nessas mesmas partes, de uma nação indígena.

África possui um problema semelhante, mas com fontes históricas e geográficas bastante mais fiáveis do que as sul-americanas, entre outras coisas, porque mais recentes, e depois do justo surto independentista da segunda metade do século XX, aguarda ainda por uma desejada e merecida estabilidade, para então abordar o complexo e perigoso processo da redefinição de fronteiras, tentando instalar as ancestrais nações, anteriores ao imperialismo europeu, nos territórios que eram na altura seus, mas que agora estão distribuídos entre as atuais nações africanas, o que pode inclusivamente conduzir à extinção de algumas destas, acompanhado do surgimento de outras, processo que não será seguramente fácil, nem isento de novas dores e injustiças.

Mas ficará a restar essa grande e perene fronteira que é o mar.

A História tem revelado que as nações fronteiriças ao mar beneficiam da sua presença enquanto fator identitário, de coesão e de resistência à desintegração, ou de promoção, mais tarde ou mais cedo, de independência, como no caso da Irlanda.

Pelo contrário, as nações sem mar, são mais facilmente desagregadas, repartidas e partilhadas por terceiros, como por exemplo a Polónia, a Arménia, ou mesmo o mosaico balcânico.

No caso do Brasil, espera-se que aqueles 4,5 milhões de quilómetros quadrados sejam do mar da união, e que este possa compensar quaisquer tentativas de desagregação do território pátrio, produzidas por políticas apressadas e oportunistas, por vezes igualmente promovidas por algumas agências estrangeiras, que mimetizadas de princípios generosos e altruístas, têm como objetivo último a interferência em assuntos que não lhes competem, e pelo contrário, possa aquele mar estabilizar a unidade do território e a soberania nacional, tão arduamente conquistadas e conservadas.

Enfim, deseja-se que o mar do Brasil, seja o mar da união e da União, mas sobretudo da primeira, porque sem esta, a segunda até pode ser desnecessária.



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