Cerca das dezasseis horas do dia vinte e oito de agosto de mil novecentos e sessenta e um, o paquete Uruguai Star, da companhia inglesa Blue Star, deixou o Porto de Santos, pouco depois de ter embarcado um último passageiro, que foi deixado no navio por uma lancha...

O homem que gostava de navios

Cerca das dezasseis horas do dia vinte e oito de agosto de mil novecentos e sessenta e um, o paquete Uruguai Star, da companhia inglesa Blue Star, deixou o Porto de Santos, pouco depois de ter embarcado um último passageiro, que foi deixado no navio por uma lancha.

Tratava-se de uma embarcação mista, passageiros e carga, com 53 passageiros, todos em primeira classe.

O seu destino final era o Porto de Antuérpia, depois de escalar Rio de Janeiro, Las Palmas e Lisboa.

O passageiro chamava-se Jânio Quadros, e tinha acabado há um punhado de horas de renunciar à presidência do Brasil, através de um bilhete manuscrito enviado ao Congresso Nacional, onde numas tantas linhas, se podia ler a declaração de renúncia, a data de 25 de agosto de 1961, e Brasília.

O cenário onde tudo isto se passa ser Brasília, não é isento de importância.

Jânio fez a sua carreira assente em atitudes imprevisíveis tomadas no seio de multidões, onde o fervor que lhes incutia era fundamental para impor as suas sucessivas jogadas.

Ora Brasília, que tinha sido recentemente inaugurada, era um cenário de solidão, quando não mesmo de desolação, com ruas por asfaltar e andaimes por remover, talvez angustiante nos momentos daquela madrugada, que o presidente partilhou apenas com ele próprio.

Jânio era um ser simultaneamente ávido de solidão e de multidão, deixando para os outros a tarefa ingrata de adivinhar quando é que passava de um a outro estado.

E enquanto político precisava tanto do silêncio do seu gabinete para dar curso às suas elucubrações, que depois registava nos célebres bilhetinhos, por entre sombras e baratas, quanto de ruas e aglomerações, onde pudesse arengar ao seu povo, nem que fosse em soberbos monólogos.

Ora Brasília, era tão nova, que nem tinha baratas. Nem esquinas. 

Em Brasília não há onde esbarrar, segundo Clarice Linspector, alguém que interpretou a nova capital de uma maneira magistral. E completou: por mais perto que se esteja, tudo aqui é visto de longe.

E ainda hoje Brasília não tem esquinas.

Jânio Quadros levou com ele o segredo daquela decisão, que muito provavelmente deve ser um misto de crise política com instabilidade emocional, e tão simples, ou pelo contrário tão complexo, que ainda nenhum dos excelentes interpretadores da história contemporânea conseguiu   explicar cabalmente.

A crise política era ancestral, e um político arguto e detentor de cultura histórica como Jânio, conhecia perfeitamente, e sobretudo uma das suas facetas mais problemáticas, que era o fragmentar do poder, nomeadamente o processo de decisão, por uma data de partidos – e não de correntes partidárias – existentes no espectro político do país, e que aliás ele Jânio Quadros, ainda tinha estilhaçado mais com os partidos que ele tinha encontrado e arregimentado, para numa coligação tão complexa quanto frágil, o levar até ali em Brasília.

No dia seguinte à eleição, qualquer presidente do Brasil confirmava o que sabia desde o dia em que tinha começado a concorrer. Que não possuía poder nem para demitir o funcionário que lhe trazia o cafezinho.

Confrontado explicitamente com esta conjuntura, Jânio não conseguiu no confinamento inicial de Brasília ir ao boteco da esquina confraternizar e quando teve que lidar com a instabilidade e dissidência dentro da coligação de apoio eleitoral, primeiro, e de sustentação governativa, depois, terá redigido mais um dos seus bilhetinhos, habitualmente enviados a ministros e correligionários, e com os quais se habituara a governar o país. E até mesmo mais um bilhetinho de renúncia, mas que daquela vez, por uma razão, que lá está, os atores do drama também levaram consigo para a cova, foi parar não ao bolso dos colaboradores aliados, e rasgado, mas efetivamente ao Congresso.

E assim, como daquela vez o bilhete chegou mesmo ao seu destino, um Jânio atordoado viu-se no aeroporto de Brasília, dentro de um avião, no qual entretanto ainda esperou algumas horas, na espectativa de que os seus apoiantes, ali em Brasília e no resto do país, mas sobretudo em S.Paulo, o fossem buscar, e levá-lo em ombros de volta ao cadeirão presidencial.

Mas nada correu como provavelmente combinado, e os que àquela altura já se queriam ver livres dele, atuaram e venceram.

Quanto mais não fosse pela forma inusitada como abdicou da presidência do país, o pouco mais de meio ano que Jânio este no poder, marcou o Brasil de forma indelével.

Aqueles que mais de perto o conheceram – e que portanto mais se dececionaram com a sua atitude – ainda hoje não têm dúvidas em afirmar que era o melhor apetrechado intelectualmente para ocupar aquele lugar, apenas comparado, já nos nossos dias, com Fernando Henrique Cardoso, um legítimo académico, catedrático da Universidade de S.Paulo (USP). E cremos que com isto dizemos tudo.

E tal como Fernando Henrique, nascido no Rio de Janeiro, e de Lula da Silva, nascido em Pernambuco, Jânio, nascido em Mato Grosso (em 25 de janeiro de 1917), era um paulista puro. Pronto a dar ordens já não em cima de um cavalo, mas dos 800 metros de altitude e da terra roxa de S.Paulo.

Eleito na transição dos anos cinquenta para sessenta, com o apoio da UDN, e de uma miríade de pequenos partidos com expressão apenas estadual ou municipal, o seu programa a nível nacional passava por desativar a estrutura política e governativa do Brasil, herdada de Getúlio Vargas, que tinha governado o país durante vinte anos. Constitucional, ditatorial e democraticamente, e que tinha deixado um quadro de relativa estabilidade alicerçado por dois partidos de sua iniciativa.

O Partido Social Democrata (PSD), conservador, de grande amplitude nacional, agrário, e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de centro-esquerda, urbano, e capaz de atrair o trabalhismo – sindicalismo, de acordo com os detratores – nas metrópoles mais desenvolvidas industrialmente. Nas margens deste quadro, ficava o tradicional radicalismo de direita e de esquerda.

E depois havia a UDN. A União Democrática Nacional, reclamava-se alheia ao getulismo, e liberal, procurando aligeirar o quotidiano da presença do estado, mas integrando personalidades aventureiras e eleitoreiras, como na minha opinião foram Carlos Lacerda e o próprio Jânio Quadros.

A nível internacional, o programa de Jânio assentava na implementação de uma genuína política externa independente, que aliviasse a ligação aos Estados Unidos, estrutural (era uma convicção do Itamaraty, herdada da Doutrina Monroe, e promovida pelo Barão do Rio Branco) e conjuntural (os anos da guerra fria), potenciada pela localização geográfica dos dois colossos continentais americanos, um ao Norte e o outro ao Sul, e exercida ao longo de toda a margem ocidental do Atlântico, e não apenas.

Admirador confesso de Abdel Nasser, Jânio, estou em crer, teria sido se tivesse continuado a governar, o elemento que faltava ao movimento dos não alinhados, na altura com um grande protagonismo, e assim fosse capaz de ultrapassar as reservas ideológicas e militares instaladas para além do Rio Bravo ou Grande.

E por curta que tenha sido a sua passagem pelos assuntos estrangeiros, ainda conseguiu iniciar uma aproximação ao mundo árabe, com destaque para a colocação do extraordinário escritor Rubem Braga como embaixador em Marrocos.

E roupa não lhe faltava para este papel. Era grande adepto daquele tipo de camisa/casaco, de meia manga, cheio de bolsos, que os ingleses popularizaram nas terras quentes do seu império, e que no Brasil, entre outros nomes, é chamado de goiabeira (para encher os bolsos de goiabas ?), e que era também uma quase farda dos dirigentes terceiro-mundistas tropicais, quando acontecia não ser o clássico camuflado.

Como Jânio fosse encontrado muitas vezes a altas horas da noite no seu gabinete a despachar assuntos, vestido daquela maneira, rapidamente aquela vestimenta passou a ser designada por pijânio.  

Outros, talvez menos entusiastas da sua personalidade, não perdiam a oportunidade para dizer que aquele nome vinha do aspeto da indumentária com que o presidente se apresentava a despacho em certas manhãs mais difíceis, depois de uma longa e solitária noite a sonhar, ver filmes no cinema privativo do palácio, ou a dormir. Ou a fazer as três coisas ao mesmo tempo.  

Uma carreira politica vertiginosamente bem sucedida levá-lo-ia sucessivamente de vereador da cidade de S.Paulo (1947), a prefeito (1953), governador do Estado (1955) e finalmente Presidente da República em 1960, tendo sido o primeiro a tomar posse em Brasília, no último dia de janeiro de 1961.

Vivendo quase sempre em Londres depois daquele fatídico, e até hoje misterioso dia de 25 de agosto, voltaria espetacularmente ao poder vinte e cinco anos depois, para se eleger novamente prefeito de S.Paulo (1986 – 1988) derrotando curiosamente Fernando Henrique Cardoso, na primeira candidatura deste a um cargo político.

Posteriormente, maus desempenhos e piores opções políticas, encerraram para sempre a sua carreira política, vindo a falecer na sua cidade fetiche de S. Paulo em dezasseis de fevereiro de 1992.

Mas muito antes disto, no longínquo ano de 1961, e ainda presidente, teria talvez previsto tudo, e até anunciado o golpe de teatro do que iria acontecer, servindo-se para tanto dos seus adorados navios.

Creio que ainda ninguém conseguiu explicar a paixão de Jânio Quadros nascido no interior profundo da América do Sul, e depois feito homem público e presidente do país, no planalto paulista, pelo mar, nomeadamente por navios, e sobretudo por cargueiros.

Quem o conheceu de perto ao longo da vida, nunca deixou de se espantar com os seus conhecimentos sobre navios, a atividade marítima, e o tráfego das carreiras de um lado para o outro do oceano. Principalmente horários de partidas, escalas e chegadas. E se preciso fosse, sobre as cargas transportadas.

Tanto que à tese de quase todos, de que a renúncia do dia 25 de agosto foi sobretudo um gesto precipitado, irrefletido, ou no outro extremo, uma jogada friamente calculada, mas que imprevistamente correu mal, julgo que é legitimo contrapor que o resultado daquele dia foi exata e rigorosamente o pretendido, com um cargueiro a passar por Santos poucas horas depois do sucedido, e mesmo a tempo de Jânio o tomar.

Não muito tempo antes daquelas horas dramáticas, e de ter tomado aquele navio em Santos, Jânio Quadros, Presidente da República do Brasil, e Carlos Lacerda, Governador do então Estado da Guanabara, almoçavam num dos espetaculares apartamentos do Edifício Chopin, na Avenida Atlântica, em Copacabana, com vista para a piscina ampla do Copacabana Palace, e para o Atlântico ainda mais amplo, em casa de familiares do presidente, quando antes do almoço, – segundo testemunho do próprio Lacerda em Depoimento, de 1978 – aquele levou o companheiro a uma ampla varanda voltada ao mar, na altura em que passava rumo à barra um navio não muito grande, branco e misto de passageiros e carga.

Pegou-lhe por um dos braços, e ficaram por momentos a olhar para o navio, até Jânio Quadros finalmente falar.

Vai ali um belo navio sueco. Carlos, qualquer dia largo este país na mão de vocês e tomo um navio desses.

E não é que largou mesmo? 

                           



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