Se «Mar» é palavra masculina em português, em espanhol e em catalão se diz com os dois géneros e é palavra feminina em francês, masculina em italiano, voltando a ser feminina em romeno, tudo isso nos diz algo em relação à índole dos respectivos povos?
Dia Europeu do Mar

“Para portos diferentes navegando
No vasto mar do ser, cada qual segue
Os instintos que Deus lhe deu, criando.”

Alighieri Dante, O Paraíso, I

Pelo pensar o mar, como se tem vindo a realizar nesta série de reflexões através de nossos poetas, a  linha condutora é o transcurso de um nascimento, repetido historicamente, da humanidade e pessoa em nós ao modo português.

«Mar» é palavra masculina em português, em espanhol e em catalão diz-se com os dois géneros. É palavra feminina em francês, é masculina em italiano e volta a ser feminina em romeno. Em latim a palavra é masculina. As línguas latinas compuseram-no num qualquer dos géneros inclusivamente tomando os dois, como se disse, o caso do castelhano «la mar» e «él mar». O «meer» alemão é de numa fonte diferente ao «sea» nórdico. O inglês tem «sea» para mar, se bem que também existe «mere», todavia «mere» significará sobretudo as águas de um lago. No russo é «móre», no sânscrito é «samudrha», temos o «sea» normando junto ao «sae» viking, e do norueguês temos o «zee», o «fairrge» em irlandes, o «fairge» escocês, o «faarkey» do Manx (língua das Ilhas Faroé). Denominações transmitidas pelos vários povos de mar nórdicos, que diziam o mar como variaçoes de «fœrr» ou «sæ», e ambos substantivos masculinos. Temos mais a oriente sul o «talassa» helénico. Um povo de mar e imperial naquela parte do ático, os de Atenas. Note-se que os helénicos tiveram império marítimo apenas por parte dos atenienses. Pois marcando já o início da época helenística, com o macedónio Filipe e seu filho Alexandre, já as conquistas foram massivamente por terra. Porém, facto é, para sair do Peloponeso e transitar para este ou oeste o mar estaria presente, e está como elemento essencial às suas fundacionais narrativas. A norte da antiga Macedónia (com Filipe e Alexandre) nada havia a oferecer comparado com os reinos a oriente. Tampouco esqueçamos o grito «Talassa! Talassa!», «O mar! O mar!», grito de salvação quando avistam o mar os 10.000 em fuga, entre helénicos e mercenários, em retirada da batalha de Cunaxa por África até ao mar, pois ao ver mar já em casa se viam.

Explanando fortes diversidades da expressão, nórdicas ou outras, podem encontrarem-se apenas inconsistências, devidas às migrações entrecruzadas, que de seus territórios primitivos os vários povos marítimos do norte se estabelecem sem nexo territorial contínuo e não conviveram. Mais aqui não procurarei entrar. Aos nossos Velhos Cultores e Biógrafos de nossa Língua é que coube-nos a formulação latina, e, por geografia latina. E é neste horizonte que ficamos com o masculino «mar». Não parece existir qualquer argumentação linguística ou histórico-cultural para designar em masculino ou feminino o mar. Aqui, neste trabalho interessa apenas dispor a questão, não se define um aparelho circulatório de línguas rigoroso pelo etimológico de «mar» entre culturas tão diversas, longuínquas e migratórias. Cabe dizer que «mar» é de muitas  dicções, e, para este exercício, até aqui, apenas se trata de reconhecer suas semelhanças como diferenças com «o mar» português, e enquanto se relaciona com a poesia portuguesa. Pretende-se também, assim, elaborar uma via de iniciação do renascer-se português, reconhecendo-se com o mar em frente e nele, como passagem ao ser português. Pensar o mar assim eleva-nos, por nosso pensar típico português, formulado pelo Grupo da Filosofia Portuguesa e seus diretos ancestrais e por todos os nossos cultores poéticos ancestrais, às evidências poéticas e simbólicas de nossa relação com o mar, considerando-nos por ele caraterizados portugueses ou luso-falantes.

Escreveu-se «diccão» (dicções), sim…, que o novo acordo ortográfico podemos dizer vir de 1623 com Francisco Robrigues Lobo. Em sua Cortes na Aldeia «o português escreve-se tal qual se fala» emulando de 1524 a Gramática de João de Barros, a ensinar nas escolas em Portugal, explicitando ainda que o português não admitiria h’s mudos etc…, e indicando também formulações divergentes e desnecessárias entre a fonética e o disperso modo de escrita do português. Com João de Barros, esta necessidade de estabelecer uma gramática pedagógica faria parte de uma estratégia política de autonomia soberana, a sua vera vivida língua dita e escrita, na era de onde as línguas vulgares se impunham, se distanciando das hegemonias castelhana e romana, como já se pode reconhecer no esforço ingente de D. Duarte I, enquanto escreve em linguajar português, na condição de serem suas obras interpretadas pela edição crítica de Afonso Botelho, do Grupo de Filosofia Portuguesa, que, a quanto chega meu horizonte, é a única suficientemente erudita, inteligente e completamente satisfatória.

       O que nos interessa aqui exercitar é o que seja mar por português dito masculino, assim neste amplo contexto de línguas dispersas e de significações latentes e patentes. Amparo-me da gramática que referimos de João de Barros (1524), a nossa primeira extensiva gramática para ensino nas escolas (que ele terá entrevisto claramente os perigos da influência espanhola na Corte de D. João III) contribuindo assim para colocar uma gramática em bem firmada língua, como reduto de soberania como veio a ser. Note-se também que nada se escreveu por cá em castelhano durante os Filipes, que então cá apenas em português ou em latim se publicou. Alguma exceção que me possam apontar não creio tenha interesse político ou artístico para o País. Mas escreveu-se e guardou-se na gaveta e se publicou sim após 1640.

Nessa gramática, acerca dos nomes próprios, diz João de Barros: «Nome próprio é aquele que se não pode atribuir a mais que uma coisa com este nome». Questiono então, assim, o Nome Próprio português de mar.

O mar recebe dicções muitíssimas como vimos simples e rapidamente. O nome nosso e próprio de mar é singular e masculino e «os mares» plurais e masculinos. Mas se mar é singular e masculino, é também multíplice, pois tem em si formas e seres femininos, masculinos e andróginos. Estamos diante de um modo, espantosamente singular e complexo no mesmo modo de ser. Como pode isto ser assim? Como pode um próprio nome singular ser complexo? Estamos junto ao «ser insólito» de Pinharanda Gomes, e, sem acertarmos a considerar o mar senão por imagens, metáforas ou símbolos, pois ele se não descortina ao espelho de uma reflexão apenas cognitiva. Não se deixa entrever como o conceito «cadeira», o ente abstrato, o suporte posterior para o tronco e dorso  humano. Aqui, acerca do mar, nada é conceito, e pela sua superfície em nossa narrativa fundacional, do nosso conspecto civilizacional, o divino primitivamente vogava sobre as águas, e assim elas serão ínsitas e não creadas. Consideremos também que no bojo imenso do mar nada é humano. A espinha dorsal dos vertebrados dali veio, mas não é este o registo que nos interessa perspetivar. Nos seres interiores a ele mar não se encontra algo como que um símil humano. Todavia, e considerando um primeiro lugar na iniciação ao ser português pelas considerações do mar em sua cultura, é a assombrosa  semelhança ou isonomia da profundidade marítima ao  modo subjetivo. Lembre-se que a  linha condutora deste trabalho é o transcurso para um nascimento, algo que tem sido repetido historicamente e atualizado, da humanidade e pessoa em nós ao modo português, reconhecendo fatores identitários. Terá interesse assinalar um primeiro lugar nesta passagem: A semelhança da profundidade nessora atribuída ao mar ao nosso modo subjetivo é ser sem fundo mensurável. Como um escuro povoado de noite onde se faz a manhã como a realidade pela coloração, no pensamento ativo, de onde que, num dos elementos de nossa cultura, tudo pode acontecer, pois a providência tem um fator decisivo na perceção história mítica e na vivida como na atual mentalidade portuguesa.

       Da distância e proximidade do mar em nós, ele mar, nos devém real pelo pensar e dizer dele refletindo-nos. Assim as espantosas águas increadas também, seguindo o registo antigo, que são anteriores ao dizer do divino creador; distingo Creador de criador sem esquecer que a feitura de nossa imagem ao próprio Deus da tradição judaico-cristã é sermos criativos.

       Não se abre à nossa própria hermenese portuguesa tal cognição senão por via da filosófica poesia (António Telmo, Arte Poética e etc). Se o que gera a nossa consciência dele mar é a sua relação com o que nos é dado a viver e pensar, neste caraterístico pensar português, em que pensar é criar, não pretende explicar ad eterno o universo e o humano, estruturando-o ou fundamentando-o, mas sim assertivamente dizer-lhe como aberto, disponível e próprio criativo, contínuo em descoberta e sem negar o anteriormente pensado (1). É o pensamento mais próximo do platonismo de que há conhecimento (Camões é platonista), que tinha o decoro de deixar o final seus diálogos em aberto, como procedem as ciências; nelas novos factos requerem novas teorias e paradigmas. Platão já havia chamado claramente para isto a nossa atenção no seu Teeteto.

Nós, por estrelas fixas obtemos rumo, e apenas por estas a nossa localização e identificação, em realização dos processo dos objetivos possíveis enquanto possíveis, e enquanto corroborado então por coragem e matemática conjuntamente ao saber experimentado de si historicamente e de si prospetivamente, e assim, Únicos soubemos das águas marítimas suas correntes como do ar também suas massas por toda a oblíqua esfera terrestre, a navegação oceânicas então inexistente, e, quando e se existente por acaso ou lapso, não sistemática e matemática como a nossa. Lembremo-nos que ir à Índia por ocidente era já então uma impossibilidade matemática. Por isto, nossa é a esfera armilar que se apresenta no Timeu de Platão e adequadamente apropriada como símbolo português, padrão de descoberta nossa de dois terços de mundo e pela visão em Camões como apresentação Teórica. Uma teoria primitivamente proveniente da escola pitagórica e quiçá também do oriente próximo em segredo de sagrado conhecimento, isto é, longe da profanação, de «ismos» ou analogias redutoras, estas ridicularizadas severamente pelo primeiro livro escrito por Platão e já traduzido criticamente em português, o Eutifrão. Outros tempos.

Vem aqui convocada a esfera armilar, símbolo próprio português, também por ser resultado de uma de nossas marcas pensantes de corroboração experimentalista, talvez junto do bekräftigen do visigodo, aqui recorrendo-nos a um conselho etimológico de outro mestre do Grupo de Filosofia Portuguesa, António Telmo (2). Fica pois aqui este paralelo germânico, que  se une a nosso entendimento do científico que é pensar, saber dito também enquanto experimentado, ou matemático, quer por saber hermenêutico: corroboração de sentido num conjunto de fatos ou ideias. Porém, corroborado saber é em nós por pensamento, matemática, poesia, ferro, fogo,  náufragos, identidade e assertiva universalidade.

Na época do antigo Portugal glorioso também abrimos a Renascença, começando pela primeira delas, já começada antes de D. Dinis I, e também desde que os templários, que eram todos portugueses, e, por isso, não sofreram a extinção física, mas apenas se transmudou sua designação para Ordem de Cristo. Esses em Soure criaram a caravela, potentíssima inovação científica como tecnológica, para a estratégia comercial e militar, facto de recentíssima descoberta arqueológica oculta no segredo do tempo. Interessante lembrar que Soure foi doado a essa Ordem Religiosa por Dona Teresa, de facto a primeira Rainha de Portugal (3).

O Infante voluntarioso, num grupo de trabalho científico em segredo, com nacionais e outros, um deles genovês, com o grande Pedro Nunes como com Abraão Zacuto, e tantos outros, inserem-se no começo da revolução científica, que na prática de navegar abriram a Renascença, como também bastante mais tarde a dita Idade Moderna, pelo pensamento de Sanches coimbrão, o escritor de «De que nada se sabe», «Quod nihil scitur», este publicado já no adiantado ano de 1581, fechará definitivamente o paradigma medieval e abre diretamente para Descartes seu projeto de procurar fundar o saber no homem e em regras. Se o primeiro livro da antiguidade surgiu à imprensa e ao conhecimento europeu, a primeira marca histórica da segunda Renascença, por um ex-Secretário Papal em 1417, também já em 1427 se conheciam os Açores e as massas de ar e mar então incógnitas, por que se ia e vinha de modo acertado e menos penoso pela costa africana. Enfim, aberta  estava a navegação oceânica, sem a qual a revolução científica não teria a amplitude que teve.

Estes excursos que se têm feito ao assunto primeiro são ainda exercícios de identidade e posição portuguesa, mas voltemos ao significado possível da nomeação masculina do mar em português, a ver se se encontra sentido algum e próprio ou identitário: O mar persiste na sua singularidade e complexidade: Num paradoxo. Por sua vez a esfera armilar, sintética apresentação do ser em saber, mas ciente de um «pensar que a si mesmo se especula» (Orlando Vitorino, Notas Contra a Degradação do Espírito), manifesta-se como fruto da exigência de saber, e mais, que não é a mesma coisa, na consciência das exigências do saber. Estes dois momentos, a exigência de e do saber, são segregados como próprio humano, com seus limites gnoseológicos e, paradoxalmente, com suas criações potencialmente infinitas. Acentuem-se os paradoxos que continuamente aqui e em toda a parte se encontram. E que tanto se elabora para não os ver nesta época presente. Todavia, a Esfera Armilar apresenta-se como teoria que exige a experiência histórica da pessoa. E nela está, como se disse, o meio último da hermenêutica portuguesa acerca do saber. Não distinguimos vida histórica humana de pensar ou teorizar. É impossível uma sem a outra, portanto, estamos na filosofia portuguesa nos antípodas dos gnosticismos, solipsismos e outras formas de encerrar o ser e, assim, em última instância ou consequência, a liberdade criativa.

       Sendo, pois, sem segregação do mar, como portugueses, pensantes admitindo o seu paradoxo, como o paradoxo no pensado e vivido, sendo o modo de ser pensante também actante (Pinharanda Gomes, Pensamento e Movimento). O actante, participando num processo, sabe dos paradoxos com que sabe e vive, e mais é, com que somos constituídos, da alta espiritualidade Dada até ao  ser mar. Não abandonamos o elemento mistérico, não o escondemos: Somos portugueses. E mais acolhedores no conhecimento a alcançar existem poucos, e poucos também existem tão universais tampouco. Não confundindo universalismo com universalidade. Tudo o que da amplidão daqui se cria, saiu historicamente e sai historicamente, não se desliga o paradoxo em contrários ou uniões de contrários. Comunga-se com os mistérios ou dos insondáveis paradoxos como fruta ou frutos portugueses que o são em todas as épocas de vários feitios e modos. Não escolhemos ou tivemos dúvidas em distinguir verdade poética e método científico (como Martin Heidegger na contemporaneidade), pois a exigência humana, a demanda humana, por todos os modos de expressão humana se diz e se contamina. A estética da expressão matemática também respira poesia, assim como há quem em voz poética e brilhante discurse acerca de assuntos macro-financeiros, como o excelente Lawrence H. Summers. Não se fique contrastado com esta referência. Quer dar-se este formidável exemplo, sem recorrer à história própria portuguesa, para dizer a universalidade do que se diz na filosofia portuguesa.

       A questão cresce do havermos dito que o mar é masculino em Portugal, feminino em francês, masculino ou feminino em espanhol como em catalão. Bastaram estes modos que apresentámos assim do norte e do latino para serem mostra de como são distintos e familiares entre si consoante a geografia e as migrações.

Obviamente, não cabe aqui, se falamos do mar, atribuir-lhe, projetando-nos, em humanas categorias psicológicas de masculino ou feminino. Como se disse, de categorias e símbolos se tratam estas considerações, não de perfis culturais ou psicológicos. Pelos nossos textos ancestrais, da Índia, mãe de  civilizações, e pela Bíblia Antiga, mãe de outras, as águas não foram criadas, mas nelas vogava o divino e só após esse estado, e pela palavra, creou-se então a terra, a separação de águas em baixo e em cima, et caetera. Ora, nesta perspetiva da creação, atribuíndo o significado de creação para o primitivo criador, a creação é pela palavra, logos germinal e criativo pensar, logoi spermatikoi para os plotinianos, ou em modo latino princípios germinais ou factores originais, ou ainda razões seminais. Assim, do divino único e ainda não trino, que somente da Conceção cristã haveria então Pessoa teologicamente, por cujo segredo não se penetra, pois existe fora de nossa compreensão, mas não fora de nossa vida humana, que é Capax Dei. Eis outro paradoxo que aqui assinala-se. Somos, pois, parte sem todo, nós humanos, e então não poderemos entrar reflexivamente completamente no nosso mesmo agente pensante. Com paradoxos somos e neles também nos revemos, como no mar em grande parte a nos revemos. E é este revermo-nos e revelarmo-nos que aqui se pretende expor pela poesia e filosofia portuguesa. Procura-se explanar, aqui brevemente, a arte de ser português e universal humano, talvez em continuação do trabalho que solicitava às gerações futuras Teixeira de Pacoaes para a sua Arte de Ser Português. Algumas palavras deste escritor foram tomadas por políticos de modo completamente impróprio. Quando Pascoaes diz «não discutimos» Deus, Pátria e Família queria dizer: Daqui parto para refletir. Mas sua obra nem é de modo algum rácica ou autoritária. Nessa obra Teixeira de Pascoaes solicitou às gerações futuras a continuação e até divergência dessa sua obra, enfim, solicitou a criatividade. Leia-se a obra, a fonte, se se pretende contestar diversamente o que aqui se afirma. A propaganda e o preconceito não tem guarida na nossa casa, a Filosofia Portuguesa. Essas nossas doenças crónicas não se acolhem a esta casa.

Voltemos à Creação e ao nosso masculino mar. A divindade primitiva creou o humano, não só em nossa tradição como também em outros relatos míticos mais distantes acerca das Origens. Depois de lhe estabelecer a condição de sua vida, e atribui-lhe aí dois mandatos: cultivar e guardar. O paraíso é sua morada humana convivente com o maravilhoso.  Maravilhoso é sinónimo de nossos antigos para revivescer o divino de modo e suas creações, evitando entrar pelo domínio da Teologia.

Voltemos ainda, como decorre em português que mar seja locução masculina? Além da escolha literária ficcional ou ensaística, em geral, do cultivo das letras na história e no estabelecimento da língua, temos também o uso generalizado dos falantes. Todavia, uma escolha assim penso também que terá teor político, isto é, advém de uma distanciação paulatina do castelhano, e, nesta última flor do Lácio, o português, assim se decidiu.

Poderemos ainda assentar na procura desta hermenêutica uma íntima junção providencial do homem com o Creador, que se põe (literariamente) em masculino, como Deus paterno perante sua creação humana, que é masculina em seu primeiro aspeto. Mas, porque haveria de ser o mar nomeado masculino por um Adão simbólico e português? Não houve nessa era simbólica da creação humana, a nomeação de tudo por parte do homem? Todavia, sem o feminino existente ainda. O mar com suas caraterísticas varonis seria tudo o que melhor Adão poderia enxergar.

Assim, podemos inventar, com o auxílio da simbologia, o que poderia ter sido pelo que é. Não estamos longe da expressão poética que enriquece os sentidos possíveis, nem do cognição do possível a ver; estamos sim na sempre renovada procura identitária, nossa própria humana pela língua portuguesa.

Facto é que a nosso mar no poético, em suas imagens e nas nossas humanas, elaboradas literária e artisticamente, acerca do mar e com a experiência dele, exibe-se a condição humana naquilo em que dele podemos dizer refletindo-o. É, pois, sobretudo uma afirmação mantida tradicionalmente o mar como masculino, como o «ser humano» é masculino não desdizendo o feminino.

Depois de divagar, indo ainda por outra curva no caminho da floresta imaginante e pensante, vejo o português nomeando «o mar» em masculino não se separando de sua condição no espelho da masculinidade, pois se também se manifesta em mansidão e brandura, contudo, mesmo manso, não está isento de perigos a arrostar pelos mais diversos motivos. Estamos próximos de muitos perigos no mar, por recifes escondidos e causa de naufrágios, por muitos não saberem nadar, etc.  Certamente mais hostil do que o que de aconchego é proporcionado pelas aglomerações humanas. É esta a perceção generalizada, o mar com atributos varonis. E esta masculinidade que se atribui ao mar português, que as poetisas portuguesas não deixam de assim vivê-lo também igualmente em sua masculinidade, há uma série de categorias de muitas isonomias, que consideramos traçadas também como nossas humanas, mas também as isonomias femininas para mar não nos faltam. Temos um paradoxo aberto outra vez e o acolhemos.

Remontamos do anterior e germinal dizer criar, como somos pensamento em português, aberto e possível no ínsito ser (Pinharanda Gomes, Pensamento e Movimento).

Na Filosofia Portuguesa o dizer (logos e ratio) criador é matemático como poético, e vai Descobrindo por estrelas fixas e constelações (tradicionais, intelectuais ou naturais) no bosque movente da imaginação pensante sua expressão, seu saber em seu tempo e modo. A criação, anagogicamente considerada, aqui entendida como em nós pensante, por espírito criativo que transforma, transfigurando o dito em vida e o vivido em dito. Assim, refletindo o mar, símbolo de imensurável, muito frequentemente hostil e de vastidão excecional, nele por viagens longas e acertadas o dizemos mais facilmente pela masculinidade no que de histórico tem contido. Porém, sua feminilidade, designando assim o conjunto de atributos associados figuradamente, torna-se-nos andrógino. Assim sabemos e somos coerentes, abrigamos o paradoxo, quanto a circunstância, o objetivo e a vontade permite e com absurdos irresolúveis.

Entretanto, um apontamento e aqui um excerto conveniente: Dizia um nosso poeta muito esquecido, em cultivo de soneto tão excelente quanto Camões, tendo sido ele quem reuniu e fez publicar as Rymas do nosso Poeta, de seu nome Francisco Rodrigues-Lobo o «Soropita», que não os Francisco Rodrigues-Lobo, que bem os conhecemos, o escritor da Corte na Aldeia de 1623 e o conspirador de 1640. Este «Soropita» de apelido vulgar, pode ser conhecido hoje porque Camilo Castelo Branco reuniu sua obra, dando-a à imprensa. O que originou mais outra história de desaguisado de famílias. Camilo lamentava-se de que os Amigos o haviam abandonado, esquecendo-se dele. «Soropita», havendo-se convertido a monge no Convento da Arrábida, pelo braço do próprio São Pedro de Alcântara, já seus poemas mundanos não  interessavam para serem servidos por impressão ou reimpressão. Daqui, tantos são os esquecimentos e tanta História ocultada.

Para aquilo que mais nos interessa, diz ele «Soropita» num de seus sonetos, e todos deslumbrantes, que não há melhor Polícia que o amor. Na conquista da amada, movimento em que todas as palavras e atuação são severamente policiadas e censuradas pelo jurador de amor, pois a tão amador por si policiado tal amor tal amada. Talvez o mar nos amasse mais se lhe atestarmos feminino e nos correspondesse a esse juramento de amor. Não cabe nestas considerações nem na estratégia cultural da mentalidade portuguesa na medida em que é Precavida, e, quando não foram as decisões assim tomadas, como com D. Fernando I, traído pelos aragoneses nas suas demandas pelo domínio de Castela, e com D. Sebastião, demasiado voluntarioso, estivemos em via de desastre. 

As conjeturas estão sempre em aberto, e são felizes se se harmonizam ao senso e ao sentido que a hermenêutica propicia. Asim, este dizer fará sentido como um curso pensante aberto ao conhecimento de experiência feito, se algum sentido encontrarmos, se por palavras pudermos explorar, evidenciando histórias para transfigurar vida, para acolher toda a nossa humanidade.

As palavras são constrangidas a serem escritas, por sentido se encontrar por elas, por meros sopros de cordas vocais no silêncio como fermento levedadas, depois riscados em letera tais sopros exteriorizados, a perpassarem por mundos a ver e a haver, transfigurando-nos somente e apenas no que ao autor lhe é permitido, por sermos nós ainda ato creativo como semelhantes criativos a Deus Creador e portugueses. O mar masculino, assim como o português o afirma, não desdiz paradoxos, sabe quanto de elegância feminil contém e tampouco se separa do dizer o mar.

Notas

(1) Lembrou-se-me agora e acolho Terêncio no seu dizer formidável: «Nada do que é humano me é alheio». E como que continuando Terêncio, disse e acolho também Thomas Moore: Se queres saber como é o mundo, tens ali aquele que é português. Cito de memória.

(2) António Telmo, História Oculta de Portugal. Talvez por nossa origem também visigoda. (Não confundir esta obra com explorações no Ocultismo, mas no trazer evidências esquecidas, não dadas ou recusadas por endoutrinação, ou por ignóbeis e ignaras motivações).

(3) A primeira rainha de Portugal e primeiro soberano português foi Dona Teresa, assim como ela assinava e assim como as crónicas da época, a Crónica Compostelhana redigiram: Portugalensis Regina.



Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

«Foi Portugal que deu ao Mar a dimensão que tem hoje.»
António E. Cançado
«Num sentimento de febre de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa
Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
Vergílio Ferreira
Só a alma sabe falar com o mar
Fiama Hasse Pais Brandão
Há mar e mar, há ir e voltar ... e é exactamente no voltar que está o génio.
Paráfrase a Alexandre O’Neill