O que seja o mar através de seus caracteres, como diziam os gregos antigos, ou pelo seu perfil psicológico, tal como hoje dizemos sem dizer exatamente o mesmo. Os poetas portugueses passaram pelo mar e a voz poética neles cantou. Em letras e sílabas ressoa a expressão mínima do senso, a unidade mínima do sentido.
Norled

O que seja o mar através de seus caracteres, como diziam os gregos antigos, ou pelo seu perfil psicológico, tal como hoje dizemos sem dizer exatamente o mesmo.

Os poetas portugueses passaram pelo mar e a voz poética neles cantou. Em letras e sílabas ressoa a expressão mínima do senso, a unidade mínima do sentido. As imagens metafóricas exibem quanto podem o seu espelhar-se em nosso ânimo e são elas muitas, muitíssimas. Procurando o pleno acesso ao objeto mar, ao ser mar, pois se até a sombra do mistério tudo invade, como a métrica das estruturas das plantas de suas flores e folhas. «Deus pensa em números» diz uma criança com nove anos de idade ao fazer seus trabalhos de casa de aritmética. Também assim penso, mas acrescentaria ainda um «também». As evidências que nos chamam não têm sua voz mais alta e audível do que o mistério onde elas são e se dizem. Ouvir o nosso contexto sonoro é também e tão bem ouvir o seu ministério de existência, sem aparente porquê, pois nos é reservada apenas a interpretação, enquanto finitos, para alcançar algum sentido. Num caos e na imortalidade não haveria sentido possível ou sequer mensagem.

         Quando uma onda e outra onda e outra em nosso coração sempre recente e presente, entre rochedos, florestas terra e areia onde Portugal, que é um arquipélago, expira, aí não fito água mas um ser, com sangue e náufragos, com sal e de cores variadas onde é luz e é negro, e aqui e agora, onde são estrelas sobre ele, é onde a lua mais insiste; é o mar um ser de fauna e flora em seu bojo, onde a luz transpõe a noite para a ela voltar, sem perder qualquer de seus caracteres.

         Tudo nasce exatamente no pensar intrínseco ao ser insólito, e o ser só devém real pelo pensar, considerando J.Pinharanda Gomes no seu livro Pensamento e Movimento. Assim penso assim sou um modo, e se penso o mar penso-me nele e penso Portugal, e necessitam-se quinhentas pessoas que o dizem António Telmo, fazendo-nos remontar igualmente Thomas Moore na sua Utopia, sendo que a original referência de quinhentos conselheiros é o Panchatantra indiano. Assim penso o mar e com o mar, não como outro como eu, mas mais difícil outro que não é humano, nem pessoa a quem falar. Por isto diz Fiama Brandão, a alma só sabe falar com o mar pelo Rio que há no nosso imo, como dois líquidos que tomam todas as formas possíveis e assim comunicam, enquanto ao mar e a nós humanos será isto possível.

         Junto ao mar aguardo a madrugada, paciente, porque velho apenas minha Presença alumia, com os pés onde a última vaga espraia-se, a última e mínima vaga, na mínima orla do mar. Aí onde Braś Garcia Mascarenhas, na sua obra Viriato Trágico, certo e profundamente certo diz: Onde

O branco freyo, que perpetuamente

A furia faz parar, onde redondas

Quebrão do negro mar as brancas ondas (…)

Tudo ali no mínimo do mar em praia, e sem tempestade, tudo é agora sereno e expraiação. Onde as ondas redondas expiram finalmente, aí estou de passeio, e ainda sua negrura está presente assim como a pequena branca espuma que à luz da lua é.

         Vem a madrugada em finos raios de dourado macio e antigo, que de sobre o oriente arriba montanhas e fremente, levemente, abre as realidades que a escuridão venceu em ciclo e modo.

         Em ritmo canta e exalta o mar deste rochedo. Aqui donde homem e pessoa veem outro modo e outro ser com seu ventre marítimo. Em sua aparência surgem cavalos, crinas, aves de espuma atirada ao ar, na beira mar onde várias métricas o assistem para ser e surgir. Salgado plantio e fauna, transparente ou arenosa água, animado e diverso, fresco líquido e odor, alvo azul ou verde, com plumas e pomos ondulantes, a flora e a fauna marítimos, peixes e pedras coloridas de musgos e algas variadas, a mexida luz líquida e a abundante renda que rebrilha, as nuvens altas, o luminoso azul, vento bravo, esquivo e teso, um dorso abundante e forte, de asas rápidas voado, que ao longe cruzam em voltas. E o fuso, a barca constante em sua curva linha de prata reluz ao sol fecundo, mostrando vero robusto e certo rumo. No cais geme a madeira e a corda, atracados estão as rocas ondulantes, mexidos feminis, ígneas candeias, que esperam querer e alcançar… mudança que venha e a recebam em casta disponibilidade.

– Ó mar, longo mar, tens o peixe de prata vibrando, rápida espada cintilante, e outros de muitas cores e mutáveis. Ó verde-mar antigo e constante, largo e rijo, encrespado de prata se o céu é cinza, ó grosso e volumoso colosso que rodas grande e informe bates e esboroas rochas descomunais… aqui desta minha vista e ouvidos a ampla lembrança, segura pelos pais da Pátria, os que ela pensaram e fizeram-na, seguros dos Amigos e Família, hoje deles também descendentes ao feito da lusitana liberdade, ao labor eólico da vela, livre ida, livre volta e livre vida. Parafraseando Camilo Castelo Branco, Amigos e Família são os que nos acodem nas tormentas, inopinados, de súbito, inesperadamente, com valedora mão, e é nesses e com esses que a Pátria se tem estendido na história.

         O mar inquieto pelo aspeto, em modo ora feminil ora viril. Agora, a água ressumbra-se insana impiedosa, em altas colinas moventes, num convulsar de mole incessante.

Uma barca afiada corta ao longe a vaga, abrindo também espuma e zumbidos, em sua força, medida e governo. Os da navegação largaram, apetrechados, rápidos, manobram determinados e com trabalho mostram suas destrezas.



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