No futuro, os navios correm o risco de iniciarem viagens desconhecendo se vão encontrar o seu combustível no caminho., ou, natural e consequentemente, optarem apenas por rotas que garantam o seu abastecimento...
Marine-i

Há tempos atrás, tive o enorme prazer de ver publicado pelo excelente Jornal da Economia do Mar, um trabalho intitulado Cais triangulares, navios quadrados e contentores redondos.

Uma sua leitura feita agora, não apenas permite identificar as imperfeições de que já padecia, e que o tempo realçou, como, no entanto, permite igualmente constatar a sua oportunidade, e a conservação da situação então retratada.

Situação que, tal como aquelas imperfeições, o tempo se encarregou de agravar, justificando agora uma nova manifestação de preocupação, mas desta vez retirando a nota dos contentores, porque na realidade o problema é transversal a qualquer tipo de modalidade de transporte marítimo.

Na altura daquele artigo, a sua principal particularidade recaia na eventual incompatibilidade entre a geometria – mais do que entre as dimensões – que estavam a adquirir os navios, os cais e as cargas, tipificada na constatação de que a empreitada de alargamento do canal do Panamá, terminou quase em simultâneo com a de construção de navios, cuja configuração tornavam inacessíveis ao trânsito por aquela infraestrutura.

Ora, este estado de coisas não apenas se mantém no geral, como se agravou especificamente, com a atual questão do combustível do futuro para os navios.  

Hidrogénio verde, com ou sem produção de metanol, fuel oil, amónia, energia nuclear, etc, e um misto de etc. com etc.

Parece que a cada uma das alternativas corresponde uma determinada cor. E quem não quiser melindrar e afastar clientes, atuais e futuros, pura e simplesmente oferece energia e combustível verde, seja lá o que isto for.

Presentemente o assunto ainda repousa na identificação das possibilidades, e na análise combinada das suas particularidades tecnológicas (quando não mesmo científicas), económicas, ambientais e logísticas.

Artigos, a maior parte deles muito bem escritos, enxameiam as revistas da especialidade e o espaço da net, cada um a tentar evidenciar as potencialidades de uma determinada proposta/opção energética, de per si, ou inclusivamente por contraste com as restantes outras.

Tecnologicamente, algumas das informações não deixam de chamar a atenção para diferentes fases dos processos, sobretudo para as suas debilidades, onde parece por vezes que são retiradas caraterísticas e propriedades, que numa fase mais adiantada voltam a ser incorporadas, com evidente desnecessária duplicação de custos.

Economicamente, é realçado o preço na origem e no final, respetivamente da matéria-prima e do combustível obtido, e o custo das incongruências – a que a concorrência chama aberrações – processuais.

Ambientalmente, e sobrepondo-se a quase todas as outras condicionantes, as diversas opções disputam entre si a primazia de amigas do ambiente, mesmo que à custa de procedimentos causadores de aumento da temperatura na bordadura equatorial, e diminuição nas calotes polares.

Logisticamente, a especialidade é mostrar que os processos e os equipamentos da concorrência, implicam albergar a bordo de navios normalíssimos, dispositivos com dimensões muito apreciáveis, e portanto, potenciadores de redução de carga transportada, e consequentes lucros.

Ainda sob o ponto de vista da logística, são relevantes as abordagens e discussões sobre o efeito global nos transportes marítimos da adoção de um determinado combustível, e na recusa das restantes alternativas. Tipologia de navios, rotas, cais disponíveis, ou tornados disponíveis por intervenções na sua infraestrutura, particularidades legislativas locais em matéria ambiental, e forma de contornar (exatamente assim em linguagem náutica!), estes condicionalismos sem infringir a lei.   

Nesta matéria, corre-se o risco de os portos dos países em vias de desenvolvimento, em África, na América do Sul, ou na Ásia, passarem a albergar o tráfego tóxico, como anteriormente as Caraíbas albergavam a comunidade de piratas, perante a cumplicidade e hipocrisia dos países desenvolvidos, a exemplo do que já fazem com a indústria mineira, que explora naqueles primeiros países, as riquezas minerais que a sofisticada legislação ambiental inibe aos países segundos no seu território.

Esta fragilidade provocada pelo (gritante por vezes) desenvolvimento assimétrico, materializada mais uma vez em legislações ambientais menos rigorosas, poderá ser aproveitada pela engenhosidade dos operadores do comércio mundial (portos, agentes de navegação, transportadores etc.) que intervenientes num negócio de risco, onde os grandes lucros e prejuízos convivem lado a lado, permanentemente em busca do menor custo global e final de transporte, e fazer com que uma carga oriunda do outro lado da Grande muralha da China, depois de ter dado a volta ao mundo no bojo de navios, aviões, comboios, camiões etc., sempre na procura das menores taxas planetárias, chegue ao seu destino final dentro de um carrinho de mão de jardineiro.

Durante séculos as embarcações navegaram livremente de um para outro porto, movidas pela mesma energia à partida e à chegada. Primeiro os remos, depois o pano velico, depois o carvão e finalmente o fuel, e a mixórdia energética que ao que parece alguns navios queimam em alto mar.

Mas no futuro, os navios correm o risco de iniciarem viagens desconhecendo se vão encontrar o seu combustível no caminho. Ou, natural e consequentemente, optarem apenas por rotas que garantam o seu abastecimento.

A opção por certos fornecimentos de energia a navios, pode ultrapassar as possibilidades e disponibilidades dos atuais portos, quase seguramente, mas mesmo das cidades que os albergam, obrigando a complexas obras de reconversão traduzidas por avultados investimentos. E mesmo assim, depois deste esforço, os cais poderão ficar aptos apenas a fornecimentos específicos de energia, tornando cativos daquela energia, cais e navios, e sequestrando ambos ao até agora usufruto dos mares.  

Efetivamente, parece ser pertinente o receio de que o caráter universal da navegação marítima, um dos pilares indiscutíveis da Civilização e do progresso da Humanidade – que permitiu por exemplo que nos séculos  XV e  XVI, sobretudo, o mundo tivesse aumentado desmesuradamente de tamanho fruto das navegações dos dois povos ibéricos – esteja agora em perigo. E que o mare, sucessivamente, nostrum, clausum e liberum, se transforme num mero condomínio.



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