Sur
A Argentina é tão ao Sul, que já fica ao Norte Disse-me um amigo sobre os mares austrais, durante um jantar da Confraria Marítima. Um marinheiro habituado a navegar ao longo dos meridianos, em viagens em que quando se desce, já se está a subir.

A ideia arreigada, tipificada e canonizada, de Sul enquanto calor, experimenta na América do Sul, resultado do seu pronunciado prolongamento em latitude, o arrepio do contrário.

E por isso era de Buenos Aires, que nos chegava o melhor instrumento de interpretação do Sul.

Sur, a revista.

Fundada em 1931 por Victoria Ocampo, e contando com um corpo redatorial de onde fizeram parte, simultânea e/ou sucessivamente, José Ortega Y Gasset, Waldo Frank, Guillermo La Torre, Ernesto Ansermet, Alfonso Reys e Jorge Luis Borges, contou com colaboradores como Ernesto Sabato, Adolfo Bioy Casares (marido de Silvina Ocampo, também colaboradora da revista e irmã de Victoria), Walter Gropius, Otávio Paz, Pablo Neruda, Ramon Gomez de la Serna, Federico Garcia Lorca, Gabriela Mistral, Júlio Cortázar, Raimundo Leda, e Gabriel García Márquez, entre outros, que produziram páginas de sofisticadíssima cultura, a Sur confrontava os padrões urbanos e portenhos das margens do Rio da Prata, e os do horizonte ventoso e gelado da Patagónia, com o bulício das vanguardas estéticas europeias que chegava nos navios juntamente com os imigrantes; o bucolismo agreste dos pampas com o cosmopolitismo rufia de La Boca.

Brasil e Argentina protagonizam sem a menor dúvida as duas Américas do Sul, a portuguesa e a espanhola, separadas pela língua falada, pela cultura e pelo território.

Este último foi capitalizado pela ocupação exclusiva das duas grandes bacias hidrográficas do continente: a do rio Amazonas e a do rio da Prata.

Quando finalmente em 1750 em Madrid, no tratado que levou para sempre o nome da cidade, Portugal e Espanha decidem dividir o território tendo como alicerces as duas bacias e o desaguar dos dois rios, entregues exclusivamente a Portugal, o Amazonas, e a Espanha o Prata, estavam não apenas a encontrar um modo de convivência nas suas Américas do Sul, mas – e naturalmente ignoravam na altura – a condicionar os dois países que iam nascer no primeiro quartel do século XIX: Brasil e Argentina.

O Brasil, sendo o Amazonas uma via de penetração no continente, agarrou-se à terra, expandida e ocupada até bater na divisa dos vizinhos espanhóis, cujas terras também boiavam na imensidão desmesurada do grande rio, alheias à ordem divina que colocou fim ao dilúvio.

A Argentina nasce de Buenos Aires, e esta do rio da Prata. Relativamente pobre em prata (argentum), o território, depois Vice-Reinado e depois país, foi buscar o nome à prata de Potosí, atualmente na Bolívia, que era escoada pelo porto de Buenos Aires, depois de uma viagem a deslizar pela cordilheira andina, sob o céu sem nuvens, ou por entre a noite universal.

No século XX a Argentina conheceu uma das maiores correntes migratórias oriunda do continente europeu, com destino ao porto de Buenos Aires, e constituído tanto por um contingente sazonal, como os célebres ratinhos que viviam grande parte das suas vidas nas acomodações infectas de navios decrépitos, numa viagem que lhes permitia colher o trigo alternadamente nos campos de Itália e da Argentina, como por uma outra migração, e os estudos históricos e demográficos mostram-no, que se fixou sobretudo em Buenos Aires, fazendo do seu porto um instrumento de entrada, de chegada e permanência.

Mas havia quem não ficasse em Buenos Aires. Quem saísse do bojo dos navios para as carruagens dos comboios, que já estavam à sua espera.

Deixemos agora por momentos descrever o que se passou, pelas palavras mágicas de Luís Sepúlveda, o escritor que porventura melhor escreveu sobre  as paisagens austrais, humanas, físicas, e sobretudo ficcionais, e que acabou por morrer tragicamente às mãos do Covid contraído num encontro de escritores na Póvoa do Varzim, e não muito tempo depois de me ter oferecido, com mui afecto, uma muito generosa dedicatória no Patagónia Express, esse clássico dos clássicos das viagens meridionais.

O passo seguinte foi ir à estação mais próxima, a do Retiro.

O belo edifício ressumava nostalgia. Buenos Aires inteira está recoberta com uma pátina de nostalgia, em caso nenhum de melancolia, porque os bons tempos de uma sociedade plena de projetos existiram, e existiu também a cidade foco de irradiação cultural cosmopolita e aberta. A pobreza digna também existiu. Sente-se a nostalgia do arrebatado, não do imaginário.

Os delicados azulejos da nave central falavam de longas viagens para destinos desconhecidos, e a luz irreal produzida pelos seus reflexos criava uma atmosfera de dúvida. Essa mesma atmosfera que deve ter envolvido os emigrantes chegados de todos os confins para construir uma obra monumental chamada Argentina.

Depois o escritor chileno esclarece que os azulejos são portugueses, para no final ser de um categórico mais que definitivo:

Onde há comboios há vida.

Quanto a mim, o fascínio que o comboio exerce sobre nós todos, vem de uma dupla característica que ele possui. Duas ofertas quase antagónicas, de que apenas ele é capaz: aventura e certeza.

Aventura, enquanto ad ventura, o que vem pela frente. A vontade irreprimível de apanhar um qualquer, para ver onde é que ele vai parar. Se a próxima estação fica ao virar da curva, no final do horizonte, ou para lá dele.

E certeza, de que seja onde for que ela fique, só poderá ficar ali, onde os carris forem.

Qualquer outra viagem – por terra, por mar e por ar – possui alternativas. A do comboio não. Havendo (aventura), só pode ser de uma maneira (certeza).

Mas nem tudo é a linguagem precisa, e culta – quando não mesmo erudita – da Sur, porque naquelas paragens fala-se igualmente o lunfardo, uma gíria argentina e uruguaia, resultante da amalgamação do castelhano com o linguajar dos recém-chegados, sobretudo italianos, mas igualmente com algum francês à mistura, e adotado apaixonadamente pelos crioulos, os descendentes da fusão dos imigrantes europeus com a população já instalada na terra.

Argentina, Uruguai e Chile, formam uma identidade geográfica e cultural, própria e coerente, e apesar de os três países não provirem das mesmas unidades administrativa espanholas.

Assim, enquanto aquilo que é hoje o Chile, permaneceu integrado ao Vice-Reinado do Peru, quando este pela sua grande extensão, que abarcava praticamente toda a América do Sul espanhola, foi sucessivamente desmembrado nos Vice–Reinados de Nova Granada (1717) e Rio da Prata (1776), aquilo que atualmente são a Argentina e o Uruguai, passaram a fazer parte desta última configuração territorial.

Já independentes no século XIX, os três países são os mais marcados pela influência da imigração europeia na América espanhola e – provavelmente por uma relação de causa e efeito – pelo mar, os três com extensas varandas oceânicas viradas ou para o Atlântico, como os dois países platenses, ou para o Pacífico, como o Chile.

Contudo, uma simples observação do seu design num mapa, permite constatar que o Chile foi tão arduamente conquistado ao mar quanto a Holanda.

Depois, Argentina e Chile, partilham entre si a Patagónia, e quase que se unem quando caminham juntos para o Sul absoluto.

É uma continentalidade desolada, formada por terra frequentemente coberta de gelo, mar, enseadas, ilhas, estreitos e estrelas, por onde sopra um vento gelado com sabor a solidão.

E faróis. Uns tantos, onde habitam homens permanentemente à espera do próximo navio.

Tomei conhecimento disto mesmo, num aviso que aquele meu amigo tinha na sua mesa de navegação, quando o visitei no seu veleiro, já quase de nova partida para o Sul profundíssimo, mas por enquanto ancorado a umas tantas braças ao largo da baía de Sesimbra.

Falava sobre três perigos a evitar.

Não entrar em canais não assinalados 

Não lançar ferro a icebergs

Não dar conversa aos faroleiros



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