Nós, o Mundo e os Oceanos

Naquela baía esculpida por vulcões refugiou-se a mística floresta Laurissilva das mortíferas glaciações do Quaternário, desembarcaram Zarco e Colombo, mas também os piratas saqueadores, passaram caravelas à conquista dos novos mundos e navios da Companhia das Índias, trocou-se açúcar pelos melhores quadros flamengos, passou D. João VI em retirada para o Brasil e Napoleão para o exílio em Santa Helena, posou a Imperatriz Sissi para um retrato e fumou Churchill os seus charutos, aportaram refugiados judeus em fuga para a Américas, desembarcaram duas mil mulheres gibraltinas, que causaram furor, atacaram submarinos alemães, que provocaram as únicas vitimas da Grande Guerra em solo português, sobrevoaram zeppelins, amararam hidroaviões, o de Sacadura Cabral e Gago Coutinho em treino para a travessia e os da companhia Aquila Airways provenientes de Southampton, atracaram os paquetes Santa Maria, Vera Cruz e todos os outros da saudosa frota portuguesa a caminho do Ultramar, por ela passaram os presos políticos com destino à colónia penal do Tarrafal, todas as cortes europeias, comerciantes, escravos, ouro e especiarias, soldados, turistas, emigrantes, aventureiros e outros sonhadores.

Foi a escolhida para se construir a primeira cidade europeia além-mar. É o maior porto de cruzeiros de Portugal e, sem dúvida, a baía mais bonita do Atlântico, um arco de basalto que, tal como os seus habitantes, abre hoje e sempre os seus braços ao mundo.

O comandante do novo navio da marinha apertou no peito a bandeira de Portugal que lhe foi entregue meticulosamente dobrada. Recebeu-a como se fosse um filho recém-nascido, o bem mais precioso que alguma vez lhe fora confiado. Um sorriso generoso de indisfarçável orgulho.

Para nós, civis, todo aquele cerimonial de trajes impecáveis e inquestionável hierarquia, de marcha e formatura, de revista em parada e de discursos densos citando Platão – “Existem três tipos de homens, os vivos, os mortos e os que andam no mar” – rematados com votos de – “bons ventos e mar de feição”, tem algo de intangível, talvez anacrónico.

– “Os militares deviam era apagar fogos em vez de estar nos quarteis sem fazer nada” – diz o povo encostado ao balcão esvaziando imperiais a compasso de tremoços. Quando aperta, quando o lume destrói ou o mar inunda implacável, aí é que nos lembramos deles. Talvez seja pela disciplina que fazem as coisas funcionar, talvez pelo espírito de sacrifício ou o respeito pela hierarquia, talvez pela capacidade tática e estratégica, pela competência, ou ainda pela sua perceção do bem comum… É curioso como adquirem essa capacidade passando os dias nos quarteis sem nada fazer.

Eis-nos chegados a uma sociedade que mais parece um mar interior em que nada acontece mas em que se respira inebriante felicidade, os direitos devoraram os deveres e a incompetência é sempre alheia.

Como é que deixamos transformar uma sociedade cheia de sonhos e desafios numa sociedade em que a entrada de cães e gatos em restaurantes ou a ida de políticos à bola assumem maior relevância e agenda do que os assuntos de Estado?

Como é que transformamos um Estado de direito democrático numa federação de direitos? Porque deixámos que os legítimos interesses e direitos individuais prejudiquem o coletivo?

Parece que o interesse coletivo, a visão de Estado, transformou-se numa soma de interesses de minorias. O “nós” sucumbiu à soma dos “eus”. Os diferentes “eus” juntaram-se promíscuos e, ainda que repugnando-se, legitimam-se.

Recentemente, com amigos, ironicamente numa taberna de pinchos madrilena, revisitei os heróis da pátria: Viriato, Sertório, Afonso Henriques, D. Diniz, D. João, D. Maria II, D. Carlos… Já noite cerrada, no voo de regresso, perscrutava no negrume da Meseta Ibérica a silhueta de uma personagem contemporânea que, de alguma forma, encarnasse o espírito conquistador e fundador dos nossos heróis – a alma lusitana. Percorri o espectro político português, da esquerda à direita, e não identifiquei nenhum, nem um fogacho, um autêntico deserto de estadistas.

Gosto de Adriano Moreira. Não costumo mencionar pessoas, ainda menos de políticos, pois, imediatamente conotados, o racional necessário desaparece. Mas vou abrir uma exceção. Ele é para mim uma espécie de último Jedi que, utilizando o “lado luminoso da Força”, defende o Estado, o seu conceito, a sua importância. Quando é que Portugal perdeu a capacidade de produzir homens assim? Homens de valores maiores, dimensão intelectual, visão suprapartidária, conhecimento da história e cultura do seu país.

Logo agora! Logo agora que a Comissão Europeia quer sair da caixa e discutir o futuro da Europa (White Paper on the Future of Europe), estabelecer compromissos para uma União mais democrática, forte e unida (Roadmap for a more United, Stronger and more Democratic Union), logo agora que define uma “Agenda para o Futuro dos nossos Oceanos no Contexto dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável 2030”, logo agora que pretende materializar o “mar europeu”, logo agora que propõe alterar de maioria para maioria qualificada as decisões de politica externa e estabelecer uma cooperação para uma defesa comum!

Será que teremos de afundar as nossas fragatas, como já abatemos embarcações de pesca e enterramos produtos agrícolas, a bem da economia, das políticas-comuns, a bem da União? – Logo agora…

A União Europeia precisa mais do que nunca de Estados fortes, com agenda e ideias próprias, Estados que tragam pensamento e dimensão estratégica. Afinal o mérito da construção europeia, esse projeto político extraordinário e impossível, está na união de Estados tão diversos mas que se potenciem mutuamente pela cooperação, diversidade e complementaridade. Nunca pela mera soma aritmética de cidadãos, léguas terrestres e léguas marítimas! A diversidade é sem dúvida o principal património da UE, o seu maior trunfo.

Na baía do Funchal estava um sol esplendoroso, o comandante num passo laboriosamente ensaiado recuou e, após golpes de calcanhar, marchou com a sua tripulação para bordo do novo navio da armada onde iria pela primeira vez ser hasteada a bandeira portuguesa. Vai com certeza honrar o país e combater atividades ilegais, incidentes ambientais e os maiores inimigos da pátria – nós próprios.

 

Curiosidade: a Madeira acolheu recentemente uma comitiva de países que integram a magnífica e riquíssima corrente de Benguela (Angola, Namíbia e África do Sul), no contexto do Programa de Gestão Espacial Marinha e Governação (MARISMA) que visa promover o uso sustentável do oceano com foco na implementação do ordenamento do espaço marítimo. Vieram conhecer o processo de ordenamento desenvolvido na Madeira. É um reconhecimento da qualidade do trabalho feito e, sobretudo, uma oportunidade para cooperar. O projeto MARISMA é financiado a 100% pelo governo Alemão. Isso é que é verdadeiramente visão para o Atlântico, estratégia e investimento. Herzlichen Glückwunsch Deutschland!



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