Economia Azul: os números do nosso contentamento*

Assistimos ao ocaso da economia verde. Foram importantes as suas virtudes e evidentes as suas fragilidades. A economia verde tornou-se um privilégio dos poucos que a podem pagar, um quase capricho do Primeiro Mundo. A debutante economia azul é alimentada mais pela inovação e menos pelo investimento, estimulando o empreendedorismo e o desenvolvimento de novos modelos de negócio. E que melhor objeto para suscitar a inovação e o empreendedorismo do que o Oceano? Viramo-nos novamente para o mar, por necessidade é certo, a história repete-se. Nesta empreitada, que nos mova mais o engenho do que as vaidades, mais o desígnio do que os egos.

Como em qualquer conceito emergente, a evolução da economia azul deve ser muito bem acompanhada e monitorizada. Organizações internacionais, governos, consultoras, propõem indicadores, índices e taxas. Números precisam-se!

A Humanidade é obcecada pelos números. Desde muito cedo, ainda no ventre materno, somos medidos, avaliados e comparados. Mas os números são abstrações da realidade, a redução da infinita diversidade da natureza num conjunto de elementos padronizados. 

O objetivo primeiro da ciência é a conversão dos fenómenos em números, ambicionando um futuro em que poderemos medir todas as coisas, compreendê-las e, logo, dominá-las —  ignorando o que é sacrificado na busca pelo controlo absoluto. Para Pitágoras e seus discípulos, o número era o princípio fundamental que forma todas as coisas, a verdadeira essência. Os pitagóricos acreditavam que os elementos das matemáticas eram também os princípios de todos os seres e as abstrações, a própria realidade. Aristóteles censurou essa obsessão cega pelos números denunciando: “Todas as propriedades dos números foram obtidas e ajustadas para satisfazer teorias. Caso houvesse qualquer inadequação, ajustes eram prontamente realizados para mantê-las coerentes, assim, se o número sete fosse considerado perfeito, diriam que os corpos que se movem no céu eram sete, mas se os corpos visíveis fossem apenas seis, inventariam um sétimo”.

Vem de longe a paixão dos políticos pelos números, estatísticas e gráficos, sobretudo daqueles que sobem e se podem apontar deixando-se fotografar, a eles e aos gráficos, por diligentes jornalistas. É curioso o fascínio pelas linhas ascendentes, sobretudo se representativas de algo relevante: PIB, emprego ou exportações. A predileção pelo “movimento” ascendente não é de hoje, é convenção antiga, tal como a que determinou o Norte no topo dos mapas para gaudio dos eurocêntricos da época. Há quem lhe chame pressupostos de valor: “O movimento para cima é mais valioso do que o movimento para baixo“; “O movimento para a frente é mais valioso do que o movimento para trás“. Nos tratados sobre o movimento animal, Aristóteles reconhece como princípios de movimento o “alto”, a “frente” e a “direita”, e ostracizou assim o infeliz do caranguejo.

A comunicação social também se rendeu aos encantos dos números. Nas notícias, encontramos números nas suas mais diversas formas: absolutos, coeficientes, percentagens, índices e taxas. O número tem a vantagem de concentrar a mensagem e toda a mensagem é uma manifestação de opinião dirigida a um determinado público. O número, a mais objetiva das linguagens, quando transformado em notícia torna-se uma visão sem realidade de si mesmo e influencia o leitor, muito mais do que atesta ou explica. Os números de insuspeita credibilidade ficam à mercê da ética e da mensagem que se pretende vender, podendo o seu significado facilmente ser mitificado. E são várias as técnicas de manipulação. Desde logo, a escolha dos gráficos, as suas escalas, a seleção dos dados que se pretendem evidenciar. Apesar da traição, o número irá garantir a credibilidade, a neutralidade, enfim, a verdade jornalística.

E não esqueçamos que a paixão pelos números é proporcional ao seu tamanho! Há mesmo um endeusamento dos números grandes. Nos longínquos anos 80, recordo perfeitamente um número que me impressionava: 5.000.000.000! Hoje já somos 7 e, já ao virar da esquina, seremos 8 milhares de milhões. A rede necessária para manter este tecido vivo não é apenas gigante, é grotesca. E na batalha dos números grandes, o Oriente leva de vencida. Duas pequenas comparações: o Porto de Xangai movimenta 30.000.000 TEU/ano, estamos a falar de 82.000 contentores de 20 pés (equivalente) que são movimentados por dia, só naquele porto. Sines, um porto que nos enche de orgulho, movimenta 1.000.000 TEU/ano. A China produz anualmente 35.000.000 toneladas de peixe em aquicultura, a toda-poderosa Noruega aproxima-se do 1.000.000 de toneladas. São números elucidativos e esmagadores. Mas faz sentido comparar esses números por si só? Como é que se consegue tal desempenho económico? A que preço? Com que impactes no ambiente? Com que impactes nos recursos? Com que sustentabilidade? Até quando? Acutilante e lapidar, David Attenborough sentenciou: “Quem acredita num crescimento infinito num planeta fisicamente finito, ou é louco, ou economista”.

O Homem sempre teve dificuldade em colocar nos seus modelos económicos, e respetivas equações, o valor dos serviços dos ecossistemas. De facto, os ecossistemas são sistemas muito complexos, apresentando propriedades como a variabilidade, a resiliência, a sensibilidade, a persistência ou a confiabilidade, tornando complexa a sua interligação com os sistemas económicos. Pela dificuldade técnica, mas também pela soberba, o Homem tem ignorado a relevância da economia dos ecossistemas. Em consequência, as equações económicas são muito redutoras da realidade, as variáveis ambientais resumem-se à disponibilidade e ao custo dos recursos naturais, e logo, os seus resultados são frágeis e perigosas abstrações. Perigosas abstrações porque os fenómenos antrópicos, como o crescimento económico e o crescimento populacional, afetam a capacidade dos ecossistemas gerarem serviços essenciais à vida no planeta.

Quatro milhões de quilómetros quadrados é a extensão da plataforma continental portuguesa. É um número grandioso, uma magnífica mensagem concentrada, transmite dimensão, transmite esperança, transmite orgulho – Portugal é Mar! Quatro milhões é também uma abstração da realidade, ficam pelo caminho características essenciais. Esse imenso mar português está a profundidades economicamente inacessíveis, há um desconhecimento quase total dos “tesouros” que esconde, e quanto ao domínio… Serão o mar territorial e os fundos marinhos da plataforma mesmo nossos?

O mar, todos sabemos, não tem dono por decreto pois ignora a lei dos Homens. O mar, verdadeiramente, é de quem dele sabe usufruir: é de quem enche a alma olhando o horizonte, é do surfista que apanha “aquela” onda, é do biólogo que identifica uma espécie nova para a ciência nas pristinas ilhas Selvagens, é do velejador que cruza primeiro a boia de chegada, é do empresário que recolhe a primeira produção de lírio em aquicultura, é do investidor que introduz na rede elétrica o primeiro megawatt da sua eólica offshore, é do armador que lança um navio ao mar. Isso sim é ser dono do mar, e isso sim deve encher-nos de orgulho.

É na economia azul que estão presentemente depositadas as grandes esperanças. Nessa empreitada, que nos mova mais o engenho do que as vaidades, mais o desígnio do que os egos. E não esqueçamos o valor ecossistémico do Atlântico, o maior e mais importante ecossistema europeu. Ignorar esse ativo, não ter a capacidade de o avaliar, quantificá-lo e levá-lo para as mesas de negociação corresponde a um erro grosseiro que poderá, inclusive, comprometer o exercício da soberania efetiva do Estado Português. E, sobretudo, não dêmos ouvidos aos pitagóricos da era moderna que conformados, fascinados pelos gráficos de curvas ascendentes e ignorando a teoria do caos, pregam o endeusamento dos números grandes e a sustentabilidade figurativa.

 

*Numa busca Google o título deste texto, “números do nosso contentamento” surge em 8 resultados, enquanto pela negativa, “números do nosso descontentamento”, surge em 738 resultados. Curiosa a natureza humana, não?

 



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