Alice, Virgens fluorescentes, torrões de Alicante e outros contos de Verão

«A descoberta»

 A 10.000 pés a atmosfera apresentava-se exatamente com o mesmo tom de azul do mar, linha de horizonte impercetível. Apenas a sensação de verticalidade permitia adivinhar onde começava uma e onde acabava o outro. Na paleta monocromática distribuíam-se cumulus e cirrus, e outras manifestações aquosas, numa prodigiosa diversidade de formas de inspiração certamente divina, pois a ciência ainda não sabe explicar nem a criatividade nem o capricho.

Uma linha branca deixada por um navio cargueiro e muitas outras traçadas por aviões, numa espécie de micado albino, eram marcas aborrecidas da nossa arrogante e presunçosa presença.

Já perto da costa, as linhas aéreas confluem num tráfego considerável. Portugal, o país das descobertas, é agora o país a descobrir. Fazem questão de nos vir dizer, apinhados em charters, o quão extraordinário é o nosso país. E nós, provincianos, que andamos anos, décadas, frustrados por ignorarem a nossa existência, aceitamos o repentino reconhecimento sem disfarçar perplexidade.

Com um pacote de pastéis de belém na mão que me custou uma fila de 20 chineses, 10 franceses, 5 nórdicos, 5 espanhóis, e um punhado de indiferenciados, olhava os motivos da fachada do Mosteiro dos Jerónimos, que sempre gosto de revisitar. Cordas Manuelinas, marcas dum país de marítimos. Será que alguém repara que são cordas? Cordas de quê? Cordas porquê?

 

«Alice no mar das maravilhas»

 Eis-nos então no país das maravilhas, e temos o mar das maravilhas! Mas então?!…

Levantar O OCEANO é penoso…

Pudera! 4 Milhões de quilómetros quadrados, com uma coluna de água de 4 quilómetros, o que faz, portanto, 16 milhões de quilómetros cúbicos, 16 milhões de biliões de toneladas, 16.000.000.000.000.000 t. – Desculpem a divagação, entusiasmei-me. É um gigantesco tapete de água, o que estará lá por baixo?

Uma tarefa já de si hercúlea, a que se junta o nosso desencanto – “O desencanto pelo que não chegamos a alcançar, e a nostalgia pelo que perdemos, instalaram-se de tal modo, que é preciso, agora, examinar este estado de espírito para ver como se passou da festa e da esperança, da luta e do entusiasmo, da convicção e da vontade de vencer, para o desânimo e a desistência” – e continua José Mattoso, no seu romance “Levantar o Céu” – “À desilusão segue-se a perplexidade. Encontramo-nos num lugar desconhecido e sem margens, num tempo que não sabemos medir. Não vemos o caminho, não sabemos para onde vamos.”

Claro que Mattoso fala do nosso desastroso pós 25 de abril que se perpetua e se reinventa numa crise permanente. Mas vai muito mais longe fala do sentimento generalizado e da falência…da falência dos sistemas; do positivismo que confiava na realização plena das virtualidades humanas a partir do desenvolvimento técnico e da lógica racional, mas que, na verdade, a evolução socioeconómica do mundo atual parece demonstrar o seu fracasso de forma cada vez mais categórica; da capacidade técnica do Homem que não garante o sentido de responsabilidade no uso dos meios ao seu dispor; da conceção consumista em que se baseia a economia de mercado e a busca do lucro a qualquer preço.

O que o racionalismo trouxe foi a reserva dos benefícios da modernidade e das realizações técnicas para uma minoria cada vez mais reduzida. – A tal economia verde?

– Sim, também, a tal economia verde, baseada sobretudo em avultado investimento e tecnologias subsidio-dependentes-e-altamente-consumidoras-de-recursos-terras-raras-buracos-em-terra-alheia-porque-lá-longe-não-dói-e-baterias-a-carregar-com-fuel, sim, o tal fuel da economia castanha. A tal economia castanha que tinha os dias contados. Agora é azul, renovada esperança…

 

– “Would you tell me, please, which way I ought to go from here?”

– “That depends a good deal on where you want to get to,” said the Cat.

– “I don’t much care where–” said Alice.

– “Then it doesn’t matter which way you go,” said the Cat.

– “so long as I get SOMEWHERE,” Alice added as an explanation.

– “Oh, you’re sure to do that,” said the Cat, “if you only walk long enough.”

 

«A materialização de Fátima»

 A hierarquia religiosa esclarece: – “Fátima não apareceu, não foi uma aparição, foi uma visão interior…”, – “Nossa Senhora não veio do Céu por aí abaixo…”, e continuam, clarificando o conceito, – “o vidente vê uma situação invisível através de uma sensibilidade interior, regista-a na sua interioridade subjetiva, na mente, no pensamento, na faculdade imaginativa e elaborativa, no coração afetivo e emocional, na fantasia”…

A estratégia nacional para o mar é uma aparição ou uma visão?

Há um perceber coletivo, há um desígnio? ou é ainda um sonho?

Na epopeia do mar de quinhentos, havia um claro querer coletivo, a nobreza, o clero, a burguesia industrial e a comercial queriam, e queriam muito. Pudera, estávamos esmagados pela fome e coartados de ambições continentais por aqueles que nos roubaram o presunto ibérico e vendem torrões de Alicante como se aquilo tivesse algum jeito.

E agora? Queremos? Mas quem? O povo? As empresas? A banca? O governo? Todos os ministérios? Todos?! Todos pois, sem esquecer o da Fazenda, sobretudo sem esquecer o da Fazenda, ou é um desígnio ou não é.

E como se concretiza? Como se materializa a visão? – “Não falo de Nossa Senhora. A Santa, todos sabemos, materializa-se em frascos contendo ar de Fátima devidamente embalado e certificado, Virgens de loiça, ou fluorescentes, ou das que mudam de cor conforme o tempo, em idênticas versões do profano galo de Barcelos. Falo da estratégia nacional para o mar. Como se materializa?

Há coisas boas a acontecer no Mar em diferentes sectores de atividade, há que dizê-lo. O que é preciso é começar…

 

The White Rabbit put on his spectacles.

– “Where shall I begin, please your Majesty?” – he asked.

– “Begin at the beginning,” – the King said, very gravely,

– “and go on till you come to the end: then stop.”

 

«O insustentável peso da Sustentabilidade»

 Gary Cohn, Diretor do Conselho Económico Nacional da Casa Branca, e atual favorito para assumir o cargo de presidente da Reserva Federal, The Fed, para justificar a saída do Uncle Sam do acordo de Paris: – “Os EUA não alimentam a hipocrisia: o mundo não é visto como uma comunidade global, mas sim uma arena onde as nações, os atores não governamentais e as empresas se digladiam para sair em frente”.

Multiplicam-se as catástrofes naturais e assiste-se à dissolução dos fundamentos da sociedade.

– “A prevalência do objetivo dos partidos políticos de alcançar o poder fazendo concessões ao ideário e a adiar a sua purificação para depois de alcançar o poder; mas, uma vez alcançado, impõem-se novas concessões para o manter”. – Analisa pungente José Mattoso. A crise das ideologias.

Tempos incertos e perigosos, mas também uma oportunidade para a clarividência portuguesa, a sua diplomacia e visão do comércio mundial em respeito pela multiculturalidade.

Mas, entretanto, assistimos ao colapso do progresso universal. Ninguém quer renunciar ao conforto e ao consumo. Nenhuma empresa quer limitar os seus lucros. Até quando tolera a Terra um desenvolvimento contínuo?

Será a tal economia azul a saída? Se for, somos uns privilegiados, 4 milhões de quilómetros quadrados de oceano para explorar e proteger.

Desvio a atenção do tablet, 500 gramas de terras raras, uma velhota portuguesa, uma daquelas avós que todos gostaríamos de ter, uma Eunice Muñoz no seu olhar terno, e sem país ou credo, “falava” carinhosamente com aquela menina estrangeira que deambulava pelo corredor do avião e agora estacava embevecida, embalada por aquela voz, sem perceber uma única sílaba da velhota mas, no entanto, percebendo tudo o que ela lhe pretendia dizer. Afinal ainda há esperança…



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