20…19…18…17, 17 EUROS! Toninho termina a ladainha, preenche o talão com o valor arrematado e entrega-o ao comprador da caixa de robalos. – Outra vez o espanhol – sussurrou-se na lota – Não deixa descer o preço…
As lotas minhotas, a de Viana, a do Castelo do Neiva e a de Esposende, são um regalo. Aquela espécie de caldo verde marinho, aquelas águas frias e muito oxigenadas de tão batidas, produzem uma diversidade e uma qualidade de pescado como poucas costas. Logo à cabeça o robalo, esse voraz predador, Lobo do Mar como justamente o chamam os franceses. Mas que peixe! Adoro-o sobretudo como prepara o Sr. Aires, no Mariana, em Afife, cozido lentamente numa cama de algas.
Mas a lista é extensíssima: corvina, badejo, rodovalho, tamboril, linguado, solha, sargo, besugo, ruivo, bodião, goraz, pargo, marmota, pescada, barroso, faneca, sardinha, cavala, chicharro, safio, congro, raia, tubarão, navalheira, lavagante, camarão da costa, apenas para mencionar os mais comuns.
Na de Esposende, os licitadores dispõem-se de pé no palanque. Só há duas portas: uma por onde entram os pescadores, de pele tisnada e cabelos hirsutos em salmoura, com as suas caixas de pescado, e uma outra por onde saem os compradores com a SUA pescaria como dirão eles, certamente, ao chegarem a casa. No centro, Toninho com a sua ladainha em decrescendo, pontilhada com gracejos que parecem granjear simpatia na plateia de cavalheiros, como ele os chama.
Mas as riquezas do mar minhoto não se ficam pelos fundos. Nas poças de maré da Praia Norte e do Cabedelo, homens e mulheres andam a mariscar. Polvos, perceves, mexilhão, navalheiras e ouriços. Dos ouriços já não lhes sentem os picos, vendem-nos a 5 euros ao quilo, mais houvesse. Os intermediários espanhóis vendem-nos na Galiza pelo quíntuplo e na França multiplicado por dez.
No Minho o mar galga as dunas nas carrelas dos sargaceiros. Com as algas e o marisco agarrado fertilizam as masseiras e produzem hortícolas que fazem as delícias dos chefes mais exigentes.
No Minho o mar sobe os rios, sobe o Cávado, sobe o Neiva, sobe o Lima e sobe o Minho; traz notas de mar que se agarram ao leito de seixos coloridos; vence diques e azenhas; sobe os regatos e sobe as noras; rega o milho, rega a vinha e faz verde o vinho e verde a chouriça.
No rio Minho o mar traz histórias de longe. Do mar dos Sargaços chega o meixão, enguias-bebé que se juntam fazendo parecer novelos de fio de cristal. Só lá é que é permitido pescar pois o rio é internacional, os espanhóis não perdoam e nós não podemos ficar atrás. Usam uma rede mosquiteira, não passa nada. Os nossos pescadores vendem-nas bem aos espanhóis, a 200 euros ao quilo, e eles vendem-na na Galiza a 800 e até as enviam para a China.
Também sobem as lampreias, os romanos consideravam-nas as melhores. A subida do rio fá-las mais rijas e saborosas, diziam. Sobretudo as apanhadas a montante das termas de Monção e de Melgaço com as suas águas bicarbonatadas, sulfúreas e sódicas. Apanham-nas em pesqueiros centenários. Enormes e engenhosas estruturas construídas com pedra do rio. Há perto de duzentos em ambas as margens, mas já foram mil. Passam por Monção e Melgaço, onde o verde se transcendeu e fez-se alvarinho e onde a vau atravessaram tantos povos, contrabandistas e exércitos romanos, árabes, castelhanos e franceses. Nessa paisagem paradisíaca e bucólica construiu-se Portugal, verdadeiramente. Nesses dias o rio corria tinto, sangue celta, sangue romano, sangue lusitano, sangue mouro, mas sempre tinto. No meio dos campos de milho misturaram-se as raças e os credos e fizeram-se filhos. Há os portugueses que namoraram no meio dos campos de milho e depois há os outros.
No Lima, um rio de vale ameno bordejado por veigas de milho, vinha e salgueiros, outrora o salmão subia em tal fartura, em exemplares de vinte quilos, que causou rebelião aos monges de um mosteiro lá para os lados de Ponte de Lima, porque à mesa só lhes apresentavam salmão, imagine-se o fastio. Hoje, nem vê-lo.
Nas tascas, o vinho verde tinto, o “pinta-beiços” como por lá lhe chamam, serve-se em malgas de louça porque servido no copo, de tão pujante, transbordaria certamente. Os homens discutem o estaleiro de Viana, atiram certezas: foram os novos, foram os velhos, foram os sindicatos, foi o mercado, foram os empresários, foram os patrulhões que não foram, foi o Atlântida que agora navega na Noruega, foram os políticos! – Os de Lisboa? – Não! Os nossos que, por nos parecerem bravos, elegemos, mas quando chegam à capital parecem alquebrar – Como o “Morgado Calisto” do Eça. – Do Eça não, do Camilo.
Os “frutos do mar” desta região estão entre os melhores. Vêm estrangeiros cá buscá-los e levam-nos para outras paragens onde são muito procurados e apreciados. É claro que isso é motivo de orgulho. Mas não deveríamos ser nós a assegurar a cadeia de valor? A fazer o mercado, a distribuí-lo, a transformá-lo, a valorizá-lo? Porque é que nos ficamos pelo sector primário? Porque é que anunciamos a sete ventos que temos as melhores minas de lítio? Porque é que não o processamos? Porque é que não fabricamos as baterias? Porque é que a nossa corte mandava o ouro e as gemas, que custaram tantas vidas, para França e Holanda e depois comprava as joias com eles produzidas? Porque é que não criámos uma legião de ourives e artistas? Porque é que não mandamos no mercado?
Precisamos do engenho e argúcia da lendária Deu-la-Deu que vendo Monção há muito cercada por Castelhanos e prestes a esgotarem-se as provisões, mandou recolher os restos de farinha e com ela fazer os últimos pães. Deu-la-Deu subiu à muralha com os pães e atirou-os gritando: “A vós, que não podendo conquistar-nos pela força das armas, nos haveis querido render pela fome, nós, mais humanos e porque, graças a Deus, nos achamos bem providos, vendo que não estais fartos, vos enviamos esse socorro e vos daremos mais, se pedirdes!”. Dito isto, os castelhanos acreditando que ainda havia muita resistência dentro das muralhas, levantaram o cerco e partiram.
Também precisamos da coragem e iniciativa de Décio Júnio Bruto, chefe supremo do exército romano, cujos soldados ao chegarem às margens do rio Lima julgaram estar perante o rio Lethes, o rio do Esquecimento, tal a magnificência e magia do local. Rezava a lenda que existia um rio que quem ousasse atravessá-lo, enfeitiçado pela sua beleza, logo esqueceria a pátria, a família, o próprio nome.
Apavorado pelos avisos desta condenação, todo o exército se recusou a mergulhar, naquelas águas encantadas.
Décio Júnio Bruto apeou-se, atravessou as águas enfeitiçadas e chegado à outra margem bradou pelos seus homens, proferindo, de cada um deles, o nome exacto.
Só desta forma convenceu os seus soldados que afinal o rio que lhes corria aos pés, apesar de tamanha a sua beleza e encanto, não era o Lethes do esquecimento. Então sem hesitar todo o exército atravessou, seguindo o seu caminho.
E é isso, argúcia, engenho coragem e iniciativa. Os inimigos não são os castelhanos, somos nós próprios. Encho-me de orgulho sempre que vejo um novo produto do mar chegar às prateleiras dos supermercados, fruto de empresários jovens e destemidos que contrariam a história, a nossa sina. Quem sabe um dia não chegarão às prateleiras boiões de “caviar” de ouriço da Apúlia, ou da ilha da Madeira onde também os apanhamos, produzidos em Portugal? Quem sabe um dia não vejo num mercado de Paris uma caixa de polvo do Castelo do Neiva, o melhor do mundo, com certificado de origem português?
CHICHARROS! Três, 90, 80, 70 60, 50, 40, 30, 20, 10; Dois, 90, 80, 70, 60, 50. UM EURO E MEIO! Toninho estica o braço e entrega-me o talão. Estes já cá cantam, vão assar na brasa com pimentos do quintal e acompanham à mesa a broa de milho e a malga de verde, pois então.
Sento-me à mesa com o meu sogro e quero saber mais desta região pela qual me apaixonei. Partilhamos histórias trazidas pelo Atlântico, as que por cá sobem os rios e as que cercam a minha Ilha.
Vou aqui tomar a liberdade de reproduzir um excerto do meu diário de Bordo, que já tem 41 anos, quando, algures, perdido na imensidade a bordo de uma piroga de S. Tomé, vertia para o meu diário de bordo, ao 27º dia (mas ainda faltavam mais 11 para encostar a terra) num pequeno gravador que preservara num caixote de plástico (do lixo) estas palavras, que extraí do meu site Odisseias nos Mares http://www.odisseiasnosmares.com/2012/10/no-mar-nunca-se-podem-fazer-calculos.html
Ah!… Quando me lembro que atirei a comida ao mar por precipitação. cocos, comida que agora me faz tanta falta!… fico realmente … revoltado, contra mim!… Não há dúvida nenhuma, que, uma pessoa , no mar nunca se deve precipitar…Deve manter sempre a serenidade… Pode vir a trovoada que vier!…O tornado que vier!.. As dificuldades que surgirem!…Nós, as pessoas que naufragarem, que se sentirem em tais circunstâncias, nunca se devem descontrolar!… Nunca se devem precipitar…. Por isso mesmo eu agora tenho fome….Porque, naquela altura, em que surgiu a tempestade, eu precipitei-me um bocado….E também não esperava demorar tanto tempo…
No mar nunca se podem fazer cálculos seguros!…É impossível fazer cálculos seguros!…Quem manda é o mar!… É o vento!…São as correntes!…Essas forças é que determinam… Nada se pode fazer contra elas… A menos que se disponha de uma boa embarcação…. e um perfeito domínio da mesma. Caso contrário… é-se o que as correntes quiserem e os ventos quiserem e determinarem…
Lindo poema. O mar, a única salvação do nosso País.