Na educação dos seus filhos todas as mães definem objetivos difíceis, muitos até impossíveis. Elas sabem-no, mas o amor tolda-lhes a razão. A minha decidiu que os seus desenvolveriam o gosto pela leitura, mas Goscinny, Uderzo, Morris, Franquin, Hergé, tinham outros planos, tramaram um complô e feriram de morte tal empreitada.
A estratégia era simples: encher a casa de livros, antologias, coleções, obras completas, enciclopédias. Era uma compradora compulsiva. Os vendedores ambulantes amavam-na! Conseguiam despachar por atacado livros e mais livros, invariavelmente oportunidades únicas, exclusivas, imperdíveis! Todos de capa dura e de cuidada encadernação com títulos impressos em letra dourada não fosse a sabedoria um tesouro. Comprada a coleção, chegavam um ou dois tomos por mês. Em casa uma pequena divisão fez-se biblioteca. De um lado um armário atafulhado com livros e do lado oposto um aparador onde, entre outras coisas, se guardavam as ofertas com que os vendedores a presenteavam pela compra: uma coleção de dedaleiras pintadas, outra de soldados da grande guerra, uma lanterna corta-unhas, uma bússola-canivete, um rádio-lupa, entre outras invenções bizarras que nem MacGyver lhes descortinaria utilidade.
É claro que as “Religiões do mundo”, “Os grandes clássicos da literatura”, “A obra completa de Eça”, a “História da arte”, entre tantas outras, foram condenadas ao emprateleiramento eterno apenas importunado pela passagem anual de um pano do pó acariciando as lombadas. Mas naquela parede de celulose havia uma coleção que se recusou à clausura e nem o bardo Assurancetourix, o Joe Dalton, o Gaston Lagaffe ou o Capitão Haddock – “com mil milhões de macacos e raios e coriscos!”–, conseguiram em conluio impedir que por ela me apaixonasse: li vezes sem conta o “Mundo Submarino”.
Os biólogos marinhos mais puristas denunciam o pouco rigor cientifico das missões do Comandante Cousteau, ele que entre outras coisas foi diretor do Museu do Instituto Oceanográfico do Mónaco, e que ainda assim, num assomo de humildade concede “associar um espirito de curiosidade quase poético a um muito realista espírito cientista”.
Gosto de o comparar ao nosso saudoso professor José Hermano Saraiva. O Professor conseguiu mostrar-nos quadros coloridos e vibrantes, paisagens completas e cheias de vida da nossa história a partir de factos que pouco mais dariam do que para desenhar um esboço a carvão. Mas a história não é isso mesmo, uma interpretação? Facto é que despertou em nós o gosto e o orgulho pela nossa história. Facto é que, do mesmo modo, Cousteau arrastou diversas gerações de profissionais para o oceano. Quantos milhares de profissionais, mergulhadores, biólogos marinhos, investigadores, comandantes não foram para o mar pela mão de Cousteau?
Quando Cousteau, a 24 de novembro de 1951, abre o diário de bordo do Calypso, um draga-minas transformado em navio oceanográfico, revela um admirável mundo novo a uma legião de seguidores. Equipado com o estado da arte da tecnologia, as pulgas, as scooters, os discos mergulhadores, os escafandros cada vez mais autónomos, as estações profundas, as cidades submarinas, as sondas, os dispositivos antitubarões, mergulhou fundo no desconhecido.
Os temas de então continuam atuais: os resíduos radioativos, a poluição dos oceanos, a destruição das costas, o oceano e o clima, a energia das algas, a indústria farmacêutica, os recursos minerais, a conservação, a monitorização, os satélites para a oceanografia.
Os problemas que se levantavam à exploração dos oceanos permanecem e são de ordem tecnológica, ecológica e jurídica. Num dos mapas do “Mundo Submarino” consta uma mancha lilás a sul do Algarve que se prolonga pela costa africana a sudeste do arquipélago da Madeira identificada como área de interesse à exploração petrolífera e consta, também, um ponto no arquipélago dos Açores identificando nódulos de manganês ou polimetálicos. Da obra constam igualmente projetos de engenharia fantásticos para retirar a imensa energia dos oceanos, dos seus ventos, correntes, marés, gradientes de salinidade e de temperatura, e biomassa.
Hoje, 50 anos depois, na belíssima baía do Funchal, a primeira cidade erigida por europeus fora do continente, está atracado o Noruega, o velhinho, mas bem estimado, navio oceanográfico do Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Está a ser aparelhado para partir em missão aos montes submarinos do complexo Madeira-Tore com o objetivo de conhecer o património natural e estudar os descritores ambientais e ecológicos dessa importante cordilheira. A bordo estão alguns dos melhores investigadores marinhos portugueses.
O esforço para que tal esteja a acontecer é imenso. Cousteau demorou 15 anos para conseguir o seu Calypso, “um brinquedo terrivelmente caro”, como reconheceu, com toda a papelada administrativa e dificuldades financeiras associadas só ultrapassáveis seduzindo um mecenas. “Quero que os meus programas de investigação dependam o mínimo possível de necessidades económicas. E, sobretudo, quero evitar que surja a mínima dúvida sobre as intenções desinteressadas que animarão o meu trabalho” – desabafou.
Por momentos pareceu-me ver um gorro vermelho nas cabeças dos investigadores que estavam a bordo. A Antonina do Instituto do Mar e Atmosfera passava o testemunho ao Rui do Observatório Oceânico da Madeira, ele seria o chefe de missão aos montes submarinos na navegação de 20 dias entre o Funchal e Lisboa.
“I’m a poor lonesome cowboy
I’m a long long way from home
And this poor lonesome cowboy
Has got a long long way to roam
Over mountains over prairies
From dawn till day is done
My horse and me keep riding
Into the setting sun” – Lucky Luke
O complexo Madeira-Tore é uma cordilheira de primeira importância no oceano Atlântico. Um conjunto de individualidades geológicas formadas por fenómenos de rugosidade da crosta e por erupções submarinas. O valor ecológico, a biodiversidade e a produtividade, o património geológico e genético destas estruturas que emergem dos mares portugueses mais profundos até zonas fóticas, é incalculável. A própria ilha da Madeira, possivelmente a maior unidade geológica portuguesa emergindo duma profundidade de quatro mil metros, é uma imponente montanha cuja relevância ecológica e produtividade é certificada por pescadores, cetáceos e aves marinhas, não é um mero produto de propaganda.
– O mar profundo é caro, mas muito mais cara é a ignorância! Se um dos polícias Dupont ou Dupond estivesse ao meu lado, repetiria certamente o cliché afirmando categoricamente: – “Eu diria mesmo mais, a ignorância é muito mais cara!”
O conhecimento é a base para proteger eficazmente, para ordenar o espaço marítimo de forma coerente, e para explorar de forma sustentável. Como é possível atribuir concessões a empresas portuguesas ou estrangeiras, de forma adequada e justa, indo ao encontro das expetativas do privado e salvaguardando o interesse público, se não fazemos ideia do valor do nosso património ou das consequências da sua exploração?
O conhecimento é a base da soberania. De que forma e com que interesse se reclama soberania sobre um território que não se conhece ou se usufrui?
É claro que não podemos competir com países poderosos, tão pouco é esse o objetivo. As nossas fragilidades são conhecidas. Há países que compensam a falta de mar investindo em navios oceanográficos que navegam em mares alheios. Não vale a pena olhar para os outros, compete-nos assegurar uma presença digna. Os investigadores que estão a bordo do Noruega ou do Gago Coutinho são indivíduos competentes, determinados e apaixonados pelo que fazem. Mas o Estado, nas suas mais diversas formas e instituições, incluindo as regiões autónomas, tem de desempenhar o seu papel. É preciso visão e investimento. É preciso criar condições para que os investigadores marinhos estejam onde têm de estar, no mar. Essa presença tem de ser assegurada de forma sustentada e permanente. Não podemos esperar outros 20 anos para voltar aos montes submarinos.
Os centros de investigação do Estado, como o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, o Instituto Hidrográfico ou a Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental, devem ser os pilares da estratégia do conhecimento e da prospeção do mar profundo. Mas a obsessão pelo cumprimento do déficit, e outras distrações momentâneas, ameaça reduzir estes importantes organismos a meras entidades empregadoras.
Por outro lado, a estes organismos incumbe criar mecanismos que os tornem mais competitivos. O custo de tempo de navio é proibitivo. Não pode um navio oceanográfico da armada ter três messes (oficiais, sargentos e praças) nem guarnições tão numerosas. Devem, igualmente, estas instituições estatais assegurar formas de partilha de informação e cooperação efetiva entre elas, com outros organismos de investigação públicas ou privadas e, naturalmente, com as regiões autónomas, em harmonia com o princípio da responsabilidade partilhada e com a própria definição de Estado.
Não vamos deixar que sejam os outros a nos dizer o que há de bom e de melhor nas nossas águas, quais os nossos recursos vivos e não-vivos, quais as nossas oportunidades e responsabilidades. Não nos podemos deixar invadir silenciosa e passivamente por essa flotilha de olheiros além-fronteiras – “por Toutatis!” – diria Abraracourcix … ou pelas tágides, ou por Saraiva, ou pelo coche dos oceanos, ou pelos egrégios avós, ou, simplesmente, por nós.
Capitão Haddock: I thought you were an optimist.
Tintin: You were wrong, weren’t you? I’m a realist.
Capitão Haddock: Ah, it’s just another name for a quitter.