O Domínio Público Marítimo

Em cima da mesa estava disposta uma quantidade generosa de documentação, um bom portefólio da excêntrica parafernália burocrata que nós impusemos ao país. Digo nós porque tenho dificuldade em abstrair-me do país real, em me eximir de culpa, em me identificar apenas com o muito que há de bom, como se os empresários e os políticos corruptos, a iliteracia e a incompetência, a casa dos segredos e o jornalismo sensacionalista, fossem algo estranho ao país, como se essa gente fosse extraterrena e não proviesse da mesmíssima massa humana. Portugal é isso mesmo, o que há de bom, mas também o que há de mau, e todos contribuímos nem que seja por ausência ou passividade. E não é abstraindo-nos, isentando-nos, que o tornaremos melhor.

Convenhamos, nós adoramos burocracia, nós damo-nos nisto, que outra explicação haveria para a sua prolífera existência?

Certidão do registo predial, caderneta predial, planta cadastral, certidão de teor, matriz predial, escrituras públicas, valor predial tributário, imposto municipal sobre imóveis, faturas da água e eletricidade – os documentos, meticulosamente dobrados, foram retirados um a um da bolsa acompanhados por uma breve e lúcida explicação de Dona Provecta. Não me recordo o seu nome, chamar-lhe-ei assim considerando a sua avançada e respeitosa idade.

Sempre me fascinou a quantidade e a diversidade de objetos que uma carteira de senhora consegue albergar. Todos juntos ocupam várias vezes o seu volume interior útil, estou certo disso. Uma espécie de Omni-Sack do Sport Billy, só que muito melhor. Cada papel mais importante do que o outro, uns saudosos azuis de 25 linhas e selos coloridos, uns com assinaturas importantes, e outros com carimbos e selos bancos. Papel que não tenha pelo menos duas assinaturas, três carimbos, dois vistos, um par de vinhetas deviamente rubricadas e um selo branco, não é documento que se apresente. Cada folha A4 daquelas é a ponta de um imenso iceberg burocrático que se esconde por trás do balcão das repartições de onde emergem. A imensa massa submersa do “burocratoberg” está arquivada em dossiers, pastas, capas de arquivo e capas de arquivo morto, dispostos em prateleiras, armários e corredores, estendendo-se por vários pisos, muitos subterrâneos, cada vez mais escuros, mais empoeirados, mais esconsos. Arquivos-labirinto, de ordem e complexidade não inferior à biblioteca da Abadia Beneditina do imaginário de Umberto Eco, impenetráveis e insondáveis, guardados por zelosos bibliotecários. Mil Torres do Tombo anónimas e outros tantos Malaquias e Berengários, espalhados por esse país nas catacumbas da administração.

O Simplex procura substituir os Malaquias por algoritmos. O Simplex teve o condão de rever, simplificar e desmaterializar processos, mas na maior parte das vezes o Simplex é apenas uma redundância ao papel, coexistem. O Simplex ainda está longe de conseguir a verdadeira reforma: nós próprios. O que será de nós sem os pareceres e os despachos, os encaminhamentos e as tomadas de conhecimento? Como abdicar de toda aquela cadeia de coresponsabilização assinada em papel que um punhado de cliques ousa querer substituir?

Dona Provecta não compreendia porque é que após tanta documentação apresentada continuavam a insistir que o prédio onde se implantava a sua casa centenária, uma pequena construção à beira-mar de 50 metros quadrados, com ombreiras em cantaria e telhado de quatro-águas, não era afinal seu, mas sim do Estado. Retirou da carteira a última “carta” e com mãos trémulas colocou-a em cima mesa: uma fotografia sépia com moldura em madeira carcomida por formiga branca. Reconheceram-se de imediato aquelas ombreiras de cantaria, cem anos mais tarde intactas. Sentada na soleira da porta uma senhora bordava observada por uma criança. – A minha avó e a minha mãe – afirmou, apontando, Dona Provecta.

Recuando 50 anos àquela tarde de bordado, em 1864, D. Luís criava o Domínio Público Marítimo (DPM), o Rei D. Luís Filipe Maria Fernando Pedro de Alcântara António Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis João Augusto Júlio Volfrando Saxe-Coburgo-Gota de Bragança e Bourbon, para ser mais exato. Este homem, um Estadista do tempo em que para ser Estadista não bastava colocar um PIN com a bandeira portuguesa na lapela, um homem de ciência, apaixonado pela Oceanografia, e pelo conhecimento científico. Um político que percebeu o conceito de soberania pelo conhecimento. Acérrimo defensor das liberdades públicas e dos Domínios Públicos!

Um homem de visão que há 150 anos tinha o sonho de tornar Portugal num HUB dos transportes marítimos europeus, desenvolvendo uma rede ferroviária desde o coração da Europa até aos portos portugueses, e uma frota que assegurasse a distribuição de pessoas e mercadorias para África e América do Sul. Onde é que eu já ouvi essa ideia, esse desígnio?

Com o DPM pretendia: Estado, defesa e usufruto público. É por isso que em 1864 ele decide instituir um DPM formado inicialmente pelas praias e, mais tarde, pelas arribas. Essa motivação, esses princípios conceptuais de reconhecidos méritos, mantiveram-se praticamente intactos no edifício jurídico português sem prejuízo do Mundo ter mudado.

Efetivamente desde D. Luís o nosso país já passou por uma revolução industrial (em Portugal essa revolução foi tardia, tal como tardam todas as revoluções) com a fixação de indústria pesada junto ao litoral e nas margens dos rios; em seguida, passou pela revolução nos transportes marítimos permitindo a importação e a exportação de mercadorias, provocando a criação de importantes áreas portuárias e da fixação de inúmeras infraestruturas de apoio (armazéns, docas) na costa; passou pela aposta do Estado Novo na indústria naval (tão ofendida, tão desvirtuada por nós contemporâneos), com a fixação de enormes infraestruturas à beira-mar e à beira-rio; passou ainda pela democratização do turismo, sobretudo no último quartel do século XX, promovendo a criação de empreendimentos turísticos junto à costa; e mais recentemente com a deslocalização das áreas industriais e logísticas para zonas menos nobres das cidades, libertando as áreas ribeirinhas devolvendo-as à fruição coletiva e ao investimento imobiliário.

Efetivamente a ocupação do litoral, esta faixa estratégica do território, tem sofrido profundas alterações morfológicas e de uso. Que papel tem desempenhado o DPM? Qual a sua utilidade?

Servirá para disciplinar e ordenar as ocupações no litoral, assegurando a fruição pública? A verdade é que não impediu o comércio, a ocupação privativa e desordenada, e a destruição de longos troços de costa. Não deverá esse papel ser desempenhado pelos instrumentos de gestão territorial tais como os PROT´s, PMOT´s e POOC´s que surgiram em catadupa nos anos 90?

Servirá então o DPM para salvaguardar a proteção dos valores e do património natural? Novamente, há outros instrumentos de ordenamento e gestão tão ou mais eficazes.

Servirá para assegurar a defesa nacional ou a soberania do Estado? Fará sentido cativar a área costeira, toda ela indiscriminadamente para defender o Estado? Mas afinal o Estado não são os cidadãos? Não é mais razoável assegurar a defesa investindo nas forças armadas e assegurando mecanismos de expropriação como os previstos na Lei das servidões militares em caso de necessidade?

Todas estas perguntas devem ser respondidas se queremos um Domínio Público efetivo coerente com as vocações contemporâneas do litoral, que seja adequado às profundas alterações provocadas pela dinâmica costeira e pelas alterações climáticas, que defenda verdadeiramente o interesse coletivo, que seja justo com os direitos dos privados, que seja sensível à diversidade histórica, morfológica e patrimonial dos troços costeiros.

D. Luís ousou pensar o seu território e fê-lo de forma competente para um determinado contexto e época. Cento e cinquenta anos depois é importante voltar a pensar o conceito e o regime do DPM, avaliar a sua eficácia e utilidade, modificá-lo ou simplesmente consolidá-lo, mas sobretudo era importante atenuar uma das suas principais características: o facto de ser tão profundamente e descaradamente elitista.

Dona Provecta, tornou a dobrar meticulosamente e a guardar os documentos que tinha disposto em cima da mesa, deixando a fotografia emoldurada para o fim. Sabe agora que para continuar a manter aquela propriedade na sua família terá de iniciar um processo de reconhecimento da propriedade privada. Terá de contratar um topógrafo, um advogado e um historiador, abrir mão às suas poupanças e esperar que os Malaquias e os Berengários, espalhados por esse país nas catacumbas da administração, consigam encontrar nas capas de arquivo morto, os documentos probatórios necessários. Até lá dura lex sed lex.



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