Pirataria Marítima

Hoje vamos falar sobre pirataria marítima. Tema já antigo na história do direito do mar e marítimo, mas que hoje ainda permanece actual e um dos grandes problemas para o qual ainda não se encontrou uma solução global.

A pirataria é um fenómeno de grande preocupação da comunidade internacional dado os enormes prejuízos à economia internacional com gastos que vão desde o pagamento de resgates para serem libertadas as vítimas e os navios ao próprio armamento para combater a pirataria com armas militares de última geração, passando pelo aumento dos valores dos contratos de seguros marítimo e consequentemente dos produtos transportados e pelas graves violações de direitos humanos dos trabalhadores marítimos, vítimas das mais diversas e cruéis formas de violência.

Assistimos actualmente a incidentes de pirataria em África sobretudo, mas também no Sudeste Asiático, no subcontinente indiano, na América, Centro e do Sul e também nas Caraíbas, segundo a International Maritime Bureau. Tem se ouvido falar em pirataria nas Águas da Indonésia, do Estreito de Malaca, da Malásia e Estreito de Singapura, Bangladesh, India e Sri Lanka. O Corno de África passou a ser uma designação e uma referencia a pirataria marítima, que inclui o nordeste do Continente Africano, ou seja, países como a Somália, o Djibuti e a Eritreia (considerada a mais perigosa do mundo. E claro também se fala no Golfo de Adem.

Dado sempre ter existido a pirataria a mesma não foi esquecida aquando da criação da Convenção Internacional de Direito do Mar embora na altura tivesse sem dúvida numa fase de menor crescimento e por isso não lhe foi dada uma importância maior.

A pirataria no artigo 101º da Convenção Internacional de Direito do Mar é definida como: “Constituem pirataria quaisquer dos seguintes actos:

  1. Todo o acto ilícito de violência ou de detenção ou todo o acto de depredação cometidos para fins privados, pela tripulação ou pelos passageiros de um navio ou de uma aeronave privados, e dirigidos contra:
  2. Um navio ou aeronave em alto mar ou pessoas ou bens a bordo dos mesmos;
  3. Um navio ou aeronave, pessoas ou bens em lugar não submetido à jurisdição de algum Estado;
  4. Todo o acto de participação voluntária na utilização de um navio ou de uma aeronave, quando aquele que o pratica tenha conhecimento de factos que dêem a esse navio ou a essa aeronave o caracter de navio ou aeronave pirata;
  5. Toda a acção que tenha por fim incitar ou ajudar intencionalmente a cometer um dos actos enunciados nas alíneas a) e b).”

Da definição verificamos que apenas os actos cometidos em alto mar ou em lugar não submetido a jurisdição de um Estado são considerados actos de pirataria segundo a Convenção. Cabendo assim aos Estados nas áreas marítimas sob sua jurisdição definir pirataria, regulamentar e penalizar.

Contudo muitas legislações nacionais, designadamente a nossa em matéria penal não tipifica a pirataria marítima como um crime, portanto para que piratas sejam julgados nos nossos tribunais criminais terá de ser como base noutro tipo de crime, como seja roubo ou furto, invasão de propriedade privada, sequestro, ofensas à integridade física, homicídio, contra a segurança das comunicações, contra a propriedade, contra a liberdade. A fragilidade no nosso ordenamento surge apenas na aplicabilidade da nossa lei pena no espaço pois o ordenamento jurídico-penal português é apenas competente apenas nos casos específicos da lei, ou seja quando existe algum elemento de conexão nacional seja por o navio onde foi praticado o acto ter bandeira portuguesa, tenha sido praticados por portugueses, estrangeiros encontrados em Portugal, por factos praticados no estrangeiro mas que o Estado Português esteja obrigado a julgar por força de Tratado ou Convenção Internacional, por se tratar de certo tipo de crimes como seja o terrorismo.

Voltando à noção de pirataria verificamos do texto da Convençâo que tem de ser cometido para fins privados, se for cometido para outros fins que não privados terá de ser qualificado por outro tipo de acto, como por exemplo de terrorismo. Terrorismo e pirataria são distintos, o terrorismo é um acto político, ideológico ou religioso e é contra os Estados ou entes concretos. Exemplo Aquille Lauro. A pirataria além de ter fins privados, é contra a Comunidade Internacional no seu todo.

Outro elemento na noção de pirataria também a ter em conta é que tem de ser um acto ilícito de violência ou detenção ou todo o acto de depredação. Sem isso não estamos perante um acto de pirataria marítima.

Não esquecer ainda que apenas existe pirataria marítima quando o acto ilícito for praticado por tripulantes de um navio contra outro navio. Têm de existir portanto dois navios para podermos considerar um acto de pirataria marítima.

Infelizmente por falta de uma definição global de pirataria que inclua as áreas de jurisdição dos Estado, o que se compreende pois estamos a falar da soberania dos Estados, mas por isso o próprio combate da pirataria tem sido posto em causa, pois entrando os piratas em aguas sob jurisdição nacional diferente daquela que o persegue, o navio daquela nacionalidade já não poderá continuar a perseguição dos piratas.

Obviamente que se houvesse uniformização dos ordenamentos nacionais nesta matéria o combate seria sem dúvida mais eficaz. Seria possível combater uma ameaça assimétrica e de caracter universal. Contudo não é isso que acontece, o que dá uma sensação aos piratas de impunidade, permitindo-lhes continuar com uma actividade que é para eles lucrativa, para não dizer altamente lucrativa em alguns casos.

De acordo com a Convenção no alto de mar e áreas fora da jurisdição de um qualquer Estados, é obrigação dos Estados cooperarem entre si na medida do possível na repressão de actos de pirataria. (Artigo 100º). Essa cooperação tem sido feita entre os Estados no âmbito de diversas operações de combate quer no seio da União Europeia, quer numa perspectiva mais alargada com vista à segurança marítima, operações como a Ocean Shield, EUNAVFOR Atalanta 12, operações da NATO Standing Maritime Group, sistema para registo de companhias marítimas e navios.

A Convenção de Direito do Mar define ainda navio ou aeronave pirata como: “São considerados navios ou aeronaves piratas os navios ou aeronaves que as pessoas, sob cujo efectivo controlo se encontrem, pretendem utilizar para cometer qualquer dos actos mencionados no artigo 101º. Também são considerados piratas os navios ou aeronaves que tenham servido para cometer tais actos, enquanto se encontrem sob o controlo das pessoas culpadas desses actos.” (artigo 103º)

De que modo é possível nos termos da Convenção reprimir actos de pirataria? Que acções podem ser tomadas? De acordo com o artigo 105º o Estado pode apresar, no alto mar ou em qualquer outro lugar não submetidos a jurisdição de qualquer Estado, o navio ou aeronave pirata, ou um navio ou aeronave capturados por actos de pirataria e em poderes dos piratas, prender as pessoas e apreender os bens que se encontrem a bordo desse navio ou aeronave.

O Tribunal do Estado que efectuou o apresamento pode decidir as penas a aplicar e as medidas a tomar no que se refere aos navios, às aeronaves ou aos bens sem prejuízo dos direitos de terceiros de boa fé. (Artigo 105º)

Contudo o apresamento pode ter consequências danosas para o Estado que usa deste mecanismo, refere o artigo 106º que quando o navio ou aeronave for apresado por suspeitas de pirataria, sem motivo suficiente, o Estado que o apresou será responsável pelos danos causados por esse apresamento perante o Estado de nacionalidade do navio ou da aeronave.

E quem pode fazer o apresamento? Apenas os navios e aeronaves autorizados e que nos termos do artigo 107º são os navios de guerra ou aeronaves militares, ou outros navios ou aeronaves que tragam sinais claros e sejam identificáveis como navios ou aeronaves ao serviço de um governo e estejam para tanto autorizados.

Quais as consequências para os actos de pirataria? O artigo 104º diz que um navio ou uma aeronave pode conservar a sua nacionalidade, mesmo que se tenha transformado em navio ou aeronave pirata. A conservação ou a perda de nacionalidade deve ser determinada de acordo com a lei do Estado que tenha atribuído a nacionalidade.

Podemos dizer que falta na Convenção Internacional de Direito do Mar a penalização por actos de pirataria, diga-se os praticados em Alto-Mar e consequentemente um Tribunal internacionalmente competente em matéria penal para julgar os actos de pirataria.

Constitui entendimento do International Maritime Bureau que existem três tipos de pirataria marítima:

  • “Low-Level Armed Robbery”, que é a modalidade mais simples de pirataria, sem destruição de partes do navio ou sequestro da tripulação e com menor rentabilidade para os agentes. São pequenos roubos ou furtos em portos, estuários e pequenos arquipélagos, com alvos perto da costa e perpetrados com pistolas e facas e pequenas armas;
  • “Medium-Level Assault and Robbery” que é a modalidade intermédia em que são empregados armamentos poderosos, utilizando violência para a consecução dos actos de pirataria e tácticas de abordagem às vítimas, de ataques em lanchas rápidas, com maior grau de violência e armas mais sofisticada, os ataques são mais focados no resgate e não na mercadoria alvo;
  • “Major Criminal Hijack”, que é a forma mais grave e mais rentável dos três tipos. Caracterizado pelo uso de uma violência extrema em que a tripulação é assassinada, com sequestro da tripulação e pedido de resgate e o navio pode ser repintado, ser-lhe dada outra bandeira e registo sob outro nome (Phantom Ship). Neste tipo estamos o grupo está hierarquizado e organizado, com premeditação de ataque ao longo da costa e alto mar, contam com um enorme poder bélico e estão muitas vezes associados a grupos de terroristas e a atacam navios de grande dimensão.

Além da Convenção Internacional de Direito do Mar temos também a Convenção para a Supressão de Actos Ilícitos contra a Segurança da Navegação Marítima e o Protocolo Adicional para a Supressão de Actos Ilícitos contra a Segurança das Plataformas Fixas localizadas na Plataforma Continental (Convenção SUA) da IMO, assinada em Roma em 1988 e que entrou em vigor em 1992 e alterada em 2005. A Convenção não fala em pirataria mas qualifica alguns actos como ilícitos, podendo estes integrar o acto maior de pirataria. O artigo 3º nº 1 alínea a) fala em: “comete uma infracção penal qualquer pessoa que ilícita e intencionalmente se aproprie ou exerça o controlo de um navio pela força ou ameace faze-lo pela força ou por outra forma de intimidação.” A questão é aplica-se esta Convenção à pirataria? A resposta é maioritariamente que não, contudo dada a preocupação desta com a segurança marítima indirectamente serve para combater actos de pirataria.

Quanto ao âmbito desta Convenção ela aplica-se: “ao navio que navegue ou esteja previsto navegar em águas situadas para além do limite exterior do mar territorial de um único Estado ou dos limites laterais do seu mar territorial com os Estados adjacentes ou ao longo das mesmas águas ou delas seja proveniente.”

O artigo 5º refere ainda que: “cada Estado Parte deve providenciar no sentido de tornar as infracções previstas no artigo 3º puníveis com penas apropriadas, tendo em consideração a natureza grave das mesmas.”

Esta Convenção fala ainda na necessária cooperação entre os Estados em matéria judicial, quando à investigação e obtenção de provas. (Artigo 12º)

Fala também na cooperação entre os Estados no sentido de prevenir a pratica dos actos ilícitos constantes do artigo 3º (Artigo 13º)

Além destas duas Convenções existe também o Código de Prática para a Investigação dos Crimes de Pirataria e de Assalto à Mão Armada contra Navios (OMI). Este Código qualifica a pirataria como um crime (a Convenção de Direito do Mar apenas qualifica a pirataria como acto ilícito), o que trouxe sem dúvida uma evolução.

A IMO tem criado medidas para proteger o transporte marítimo, em 12 de Dezembro de 2002 alterou a Convenção SOLAS (Safety of Life at Sea) e adoptou o Código Internacional para a Protecção dos Navios e das Instalações Portuárias que entrou em vigor em 1 de Julho de 2004.

A Comissão também tem intervido a este nível no sentido de melhorar a cadeia logística de abastecimento no transporte marítimo do fornecedor ao consumidor tendo publicado o Regulamento n° 725/2004 de 31 de Março do Parlamento Europeu e do Conselho relativo ao reforço da protecção de dados dos navios e das instalações portuárias, que além de conter as disposições do Capítulo XI-II, da Convenção SOLAS e do Código ISPS e considera ainda obrigatórias as orientações da Parte B.

A Convenção STCW 2010 e respectivas emendas de Manila, de acordo com a regra VI/6 que exige a todos os marítimos a bordo de navios sujeitos ao código ISPS (International Ship and Port Security Code) que tenham recebido formação relacionada com a protecção (security) e que pretende habilitar os marítimos com competências que lhes permitam contribuir para o aumento da protecção dos navios, através de uma sensibilização acrescida e do aumento da capacidade de reconhecer, identificar e responder a ameaças incluindo pirataria, terrorismo, contrabando, desvios e roubos de carga e transporte de clandestinos.

Actualmente devido à pirataria muitas companhias de transporte marítimo optam pela contratação e embarque a bordo dos navios de forças de protecção armadas especializadas em protecção. Contudo a IMO não aconselha, entende que pode potenciar a escalada de violência.

A realidade é que as empresas de transporte marítimo que fazem as chamadas rotas de risco muitas delas não vêm outra solução se não contratar segurança privada para os seus navios, a fim de protegerem os seus navios e a carga que transportam, bem como a tripulação.

Não podemos esquecer que mais de 90% do comércio mundial é feito por via marítima pelo que a segurança marítima tornou-se de uma importância primordial para o comercio internacional e a pirataria marítima um problema grave e urgente a resolver.

Esperemos que nos anos mais próximos algo mais venha a ser criado no sentido de resolver de forma eficaz esta questão.

 

Fontes:

– Convenção Internacional de Direito do Mar

– Convenção SUA

– A Evolução da Pirataria Marítima em Águas Internacionais, de Carolina Rocha Ferreira, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

– O Direito Internacional Marítimo e o Direito Nacional no Combate à Pirataria. Potencialidades e Limitações, de Alexandra von Bhom-Amolly, Instituto de Estudos Superiores Militares.



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