Falámos anteriormente no regime internacional do desmantelamento de navios, desta vez falaremos sobre o regime nacional.
Mencionámos nessa altura quanto a normas comunitárias sobre a matéria dois regulamentos comunitários: Regulamento (CE) n° 1013/2006 do Parlamento Europeu e Conselho de 14 de Junho de 2006 e Regulamento (UE) n° 1257/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho. Estes porque são regulamentos comunitários são directamente aplicáveis ou seja não carecem de transposição pelo Estado-Membro integram portanto a legislação interna nacional.
Para além destes não existe legislação interna específica sobre desmantelamento de navios. Poderíamos ter no Estatuto Legal do Navio, tal como acontece com a construção e reparação de navio, normas sobre os contratos de desmantelamento de navios mas isso não acontece.
Dado que não temos normas que regulem o contrato de desmantelamento de navio teremos por conseguinte de aplicar a esta matéria o regime geral da empreitada constante do Código Civil (Artigo 1207° e seguintes) se o navio se mantiver na propriedade do mesmo titular. Contudo o que acontece em regra é que o navio é vendido ao estaleiro para desmantelamento e nestes casos, já não estamos perante a aplicação de um contrato de empreitada mas sim de um contrato de compra e venda de navio.
Na parte quanto ao desmantelamento em si também não temos legislação nacional específica para além dos já mencionados regulamentos comunitários, temos somente legislação em matéria de gestão e tratamento de resíduos perigosos e desmantelamento de veículos em fim de vida que também se aplicam aos navios.
Importa referir que cabe ao Estado de bandeira emitir os certificados necessários para que o navio seja desmantelado. Sem esses certificados os navios não podem ser desmantelados. O Estado tem uma figura essencial nesta matéria, não é apenas um negócio privado, há critérios a respeitar pelos proprietários dos navios se quiserem desmantelar os seus navios.
Uma questão importante que devemos abordar que se relaciona com esta matéria é o abandono de navios visto que muitos destes terão obviamente como destino virem a ser desmantelados. Isto caso não se defina outro destino para o navio como seja servir de instalação de armazenagem, atracção turística ou habitat marinho.
Navio é o engenho flutuante destinado à navegação por água. Dele fazem parte a máquina principal e máquinas auxiliares, os aparelhos, aprestos, meios de salvação, acessórios e mais equipamentos existentes a bordo necessários à sua operacionalidade. (Artigo 1° do Decreto-Lei n° 201/98 de 10 de Julho- Estatuto Legal do Navio).
Um navio está sempre registado em nome de alguém (pessoa individual ou colectiva), terá um nome, um número de identificação e o nome do local onde o mesmo se encontra registado (artigo 4°, 5° e 6° do Estatuto Legal do Navio), contudo pode ser abandonado.
Quando é que um navio considera-se abandonado? Estranhamento no Estatuto Legal do Navio nada consta sobre o abandono de navio. Encontramos a sua noção no artigo 17° do Decreto-Lei n° 202/98 de 10 de Julho que estabelece:
“1- Considera-se abandonado o navio que, encontrando-se na área de jurisdição dos tribunais portugueses, aí permaneça por um período superior a 30 dias, sem capitão ou quem desempenhe as correspondentes funções de comando e sem agente de navegação.
2- O navio deixa de ter agente de navegação a partir da data em que este notifique a capitania do porto respectivo de que cessou as suas funções.
3- O navio abandonado nos termos do n° 1, considera-se do património do Estado.”
Também no artigo 8° do Decreto-Lei n° 64/2005 de 15 de Março (regula a remoção de destroços de navios) se fala no abandono de navio. Diz-nos esse artigo que: “considera-se navio abandonado, nos termos estabelecidos no artigo 17° do Decreto-Lei n° 202/98, de 10 de Julho, aquele que se encontra à deriva por mais de 30 dias, mesmo que tal não resulte de acontecimento de mar“. (Artigo 8° n° 2).
Se a situação não derivar de um acontecimento de mar e o navio não for reclamado no prazo de 30 dias ou conhecido o seu proprietário ou qualquer representante legal o navio considera-se abandonado. Este prazo conta-se a partir do momento da ocorrência, sendo irrelevante para efeitos de contagem as acções das entidades públicas competentes que visem assegurar as condições de segurança e ambientais, designadamente relocalizando temporária do navio. (Artigo 8° n° 2)
Se pelo contrário for resultado de acontecimento de mar o proprietário, armador do navio ou o respectivo representante legal que pretender abandonar o navio ou declarar a sua perda total, deve declarar expressamente, no prazo máximo de cinco dias úteis contados da data do sinistro, essa intenção à Autoridade Marítima. (Artigo 8° n° 3).
Se não houver essa declaração expressa ou não sendo conhecido o proprietário ou qualquer representante legal, o navio considera-se abandonado no prazo máximo de 30 dias contados desde a data do acontecimento do mar. (Artigo 8° n° 4).
Podemo-nos perguntar se este prazo de 30 dias é um prazo razoável? Sabemos que em alguns países este prazo estende-se a 90 dias. Entendemos que 30 dias talvez seja um prazo demasiado curto para considerar um navio como abandonado e consequentemente como património do Estado. Faz sentido um prazo um pouco maior entre os 60 e os 90 dias máximo, a menos que haja uma declaração expressa do comandante ou agente de navegação nesse sentido e a ser esse o caso o prazo de 30 dias seria obviamente razoável.
No caso em que o navio foi abandonado cabe ao Estado o encargo de proceder ao seu desmantelamento, até porque o navio já é sua propriedade. A menos que o Estado opte por uma outra solução para o navio, uma das já mencionadas antes, mas o encargo dessa solução também lhe pertence igualmente.
Será rentável para o Estado pagar a despesa de desmantelamento de navios? Ora, dado o aumento da procura de carcaças de navios em situação de encalhe acreditamos que sim, que o valor comercial dos materiais para exportação certamente ultrapassa o valor pago da despesa de desmantelamento. O valor comercial irá pagar essa despesa e permitir ao Estado a obtenção de lucro na exportação, estamos a falar de um negócio que é hoje bastante rentável.
Em Portugal temos um grande potencial para desenvolver esta indústria. Será aliás um modo de revitalizarmos a nossa indústria naval e de desenvolver a economia de mar. Foi noticiado há pouco tempo que a Navalria integra a lista europeia dos estaleiros para desmantelamento de navios. Outros poderão seguir o seu exemplo, como a Lisnave que tem excelentes condições para isso.
A realidade é que o futuro da construção naval em Portugal não passa hoje em dia apenas pela construção e reparação de navios passa também pela construção de plataformas para as energias renováveis e pelo desmantelamento de navios.
Quanto ao futuro do desmantelamento dos navios em termos mundiais entende-se que o seu desenvolvimento será feito em dois vectores essenciais:
1- Melhoria das condições de desmantelamento de navios com critérios bastante exigentes de respeito ao ambiente, no sentido de um “Green Recycling”. Para isso é essencial que a Convenção de Hong Kong entre em vigor.
2- Alteração no design dos navios, pela escolha e desenvolvimento de novos materiais mais amigos do ambiente, possibilitando depois um desmantelamento dos navios.
O “Lloyd’s Register’s Strategic Group” está neste momento a desenvolver, embora ainda em fase bastante embrionário, novas ideias em termos de design de navios, usando tecnologias avançadas na criação de novos materiais que poderão usados e aplicados nos navios.
O desmantelamento tem de deixar de ser visto como um negócio à margem da sociedade, do ambiente e da economia para passar a ser parte integrante deste e um vector de desenvolvimento da economia do mar.
Um comentário em “Do Direito e do Mar”
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Excelente artigo!