Vamos hoje falar sobre o contrato de transporte marítimo de mercadorias. Numa edição posterior iremos falar sobre o contrato de transporte marítimo de passageiros.

Iremos começar como é habitual pelo regime internacional que no caso português é regulado pela já muito antiga Convenção de Bruxelas de 1924, assinada a 25 de Agosto desse ano. Portugal ratificou a Convenção em Dezembro de 1931 e procedeu à sua publicação no Diário de Governo de 2 de Junho de 1932, passando a estar em vigor desde a sua ratificação. Todos os Protocolos posteriores nunca foram ratificados por Portugal, daí continuar a aplicar-se esta Convenção.

A Convenção apresenta logo no inicio, no artigo 1º algumas definições. Assim, de acordo com a Convenção define Armador como “o proprietário do navio ou o afretador que foi parte num contrato de transporte com um carregador”. Portanto é aquele que tem a gestão comercial do navio, é o transportador. (Artigo 1º)

Contrato de transporte é definido também no artigo 1º da Convenção como: “o contrato de transporte provado por um conhecimento ou por qualquer documento similar servindo de título de transporte de mercadorias por mar e aplica-se igualmente ao conhecimento ou documentos similar emitido em virtude de uma carta-partida, desde o momento em que este título regule as relações do armador e do portador do conhecimento.”  Portanto será um documento de carga (BL-bill of lading) ou outro documento emitido devido a uma carta-partida.

No artigo 1º são definidas mercadorias como “os bens, objectos, mercadorias e artigos de qualquer natureza, excepto animais vivos e a carga que, no contrato de transporte, é declarada como carregada no convés e, de facto, é assim transportada.” Pelo que animais vivos e mercadoria transportada no convés não se inserem no conceito de mercadoria para a Convenção.

Navio é definido como “todo o tipo de barco empregado no transporte de mercadorias por mar.” (artigo 1º)

E por último transporte de mercadorias é definido como: “como abrange o tempo decorrido desde que as mercadorias são carregadas a bordo de navio até ao momento em que são descarregadas.” Artigo 1º)

De seguida a Convenção nos artigos 2º e 3º elenca as várias obrigações do Armador/Transportador e que são:

  • Relativas à carga: carregamento, manutenção, estiva, transporte, guarda, cuidados e descargas das mercadorias transportadas, de forma apropriada e diligente. (Artigo 2º e artigo 3º nº 2)
  • Relativas ao navio: pôr o navio em estado de navegabilidade; armar, equipar e aprovisionar convenientemente o navio; preparar e por em bom estado os porões, os frigoríficos e todas as outras partes do navio em que as mercadorias são carregadas, para a sua recepção, transporte e conservação. (Artigo 3º nº 1)
  • Relativas ao transporte das cargas: depois de recebidas e carregadas as mercadorias, deverá entregar (ele, capitão ou seu agente) ao carregador um conhecimento de carga (BL-bill of lading) contendo, entre outros elementos (Artigo 3º nº 3):
  1. As marcas principais necessárias á identificação das mercadorias, conforme indicadas por escrito pelo carregador antes de começar o embarque das mercadorias. Estas marcas têm de estar impressa e ou apostas claramente sobre as mercadorias não embaladas ou sobre as caixas ou embalagens que as contém, de modo a que se conservem legíveis até ao fim da viagem; ou
  2. O número de volumes ou de objectos, ou a quantidade, ou o peso, segundo os casos, tais como forma indicados por escrito pelo carregador.
  3. O estado e o acondicionamento aparentes da mercadoria.

De referir que nenhum Armador/Transportador (capitão ou agente deste) será obrigado a declarar ou mencionar no conhecimento de carga/BL, marcas números, quantidade ou peso que por motivos sérios, suspeite não representarem exactamente as mercadorias por ele recebidas, ou que por meios suficientes não pode verificar. (Artigo 3º nº 3, ultimo parágrafo)

Este conhecimento de carga/BL constitui presunção, salvo prova em contrário, da recepção pelo Armador/Transportador das mercadorias tais como foram descritas. (Artigo 3º nº 4)

A Convenção fala também das obrigações do carregador e que são (artigo 3º nº 5):

  • Garante ao Armador/Transportador no momento do carregamento, a exactidão das marcas, do número, da quantidade e do peso, tais como foram indicados por ele;
  • Indemnizará o Armador de todas as perdas, danos e despesas provenientes ou resultantes de inexactidões sobre estes pontos.

O direito do Armador/Transportador a indemnização por parte do Carregador, não limita a sua responsabilidade e os seus compromissos, derivados do contrato de transporte, para com qualquer pessoa diversa do transportador. (2ª parte do nº 5 do artigo 3º).

A retirada das mercadorias e entrega a pessoa que tem o direito de recebê-las, ou em virtude do contrato de transporte, ou até antes, constitui uma presunção, até prova em contrário, de que as mercadorias foram entregues pelo Armador/Transportador tais como foram descritas no conhecimento. Salvo se tiver dado conhecimento ao armador/transportador ou ao seu agente no porto de desembarque um aviso, por escrito, da existência e da natureza de quaisquer perdas ou danos. (nº 6 do artigo 3º) Isto no caso de as perdas e danos serem aparentes, esta obrigação recai sobre o carregador ou sobre terceiro (o proprietário da carga por exemplo) que receba/levante a mercadoria no destino.

Se, contudo, as perdas ou danos não forem aparente, o aviso deve ser dado no prazo máximo de três dias a contar da entrega. Obrigação do carregador ou de terceiro (o proprietário da carga por exemplo) que receba a mercadoria no destino.

As reservas escritas são inúteis se o estado da mercadoria foi contraditoriamente verificado no momento da recepção.

Em caso de perda ou danos certos ou presumidos, o armador e o destinatário concederão reciprocamente todas as facilidades razoáveis para a inspecção da mercadoria e verificação do número de volumes. (ultimo parágrafo do nº 6 do artigo 3º)

Se não for instaurada uma acção judicial no prazo de um ano a contar da entrega das mercadorias ou da data em que estas deveriam de ser entregues, o armador/transportador e o navio ficam libertos de toda a responsabilidade por perdas e danos. (Penúltimo parágrafo do artigo 3º nº 6)

Continuando a falar do procedimento quanto ao embarque de mercadorias, depois de carregadas as mercadorias, o conhecimento de carga/BL que o armador/transportador, o capitão ou agente entregar ao carregador deverá conter a nota de “embarcado”, isto se o carregador o exigir. Mas se o carregador tiver recebido anteriormente qualquer documento dando direito às mercadorias, deverá restituir esse documento em troca do conhecimento de carga/BL com a nota “embarcado”.

O armador/transportador, o capitão ou o agente tem a faculdade de anotar, no porto de embarque, no documento entregue em primeiro lugar, o nome ou os nomes dos navios em que as mercadorias foram embarcadas e a data ou datas de embarque, e quando esse documento contiver também alem dessa informação sobre os navios a informação sobre a mercadoria (marca, volume, quantidade e peso, estado e seu acondicionamento, será considerado como constituindo um conhecimento de carga/ BL com a nota de “embarcado”

Será nula, não produzindo qualquer efeito a clausula, convenção ou acordo no contrato de transporte que exonere o armador/transportador ou o navio da responsabilidade por perdas e danos relativas a mercadorias decorrentes de negligencia, culpa ou omissão dos deveres e obrigações constantes no artigo 3º ou que atenue essa responsabilidade por modo diverso do preceituado na Convenção. (artigo 3º nº 8) Uma clausula cedendo o benefício do seguro do armador ou qualquer outra clausula semelhante será considerada como exonerando o armador da sua responsabilidade.

As exonerações da responsabilidade do armador/transportador e do navio por perdas e danos constam do artigo 4º nº 2, são elas a saber:

  1. Provenientes de actos, negligencia ou falta do capitão, mestre, piloto ou empregados do armador na navegação ou na administração do navio;
  2. Proveniente de incêndio, salvo se for causado por facto ou culpa do armador;
  3. Proveniente de perigos, riscos ou acidentes do mar ou de outras águas navegáveis;
  4. De casos fortuitos (“Acts of God”);
  5. De factos de guerra;
  6. De factos de inimigos públicos;
  7. De embargo ou coacção do governo, autoridades ou povo, ou duma apreensão judicial (por exemplo arresto de navio);
  8. De imposição de quarentena;
  9. De um facto ou omissão do carregador ou proprietário das mercadorias, ou do seu agente ou representante;
  10. De greves ou lock-outs ou de suspensões ou dificuldades postas ao trabalho, seja qual for a causa, parcialmente ou totalmente;
  11. De motins ou perturbações populares;
  12. De uma salvação ou tentativa de salvação de vidas ou bens no mar;
  13. De desfalque de volume ou de peso, ou de qualquer outra perda ou dano resultante de vício oculto, natureza especial ou vício próprio da mercadoria;
  14. De insuficiência de embalagem;
  15. De uma insuficiência de marcas;
  16. De uma insuficiência ou imperfeição de marcas;
  17. De vícios ocultos que escapam a uma razoável diligência;
  18. De qualquer outra causa não proveniente de facto ou culpa do armador, ou de facto ou culpa dos agentes ou empregados do armador. O encargo da prova incumbirá à pessoa que invoca o benefício desta isenção, que terá de provar que nem a culpa pessoal, nem o facto do armador, nem a culpa ou facto dos agentes ou empregados do armador contribuíram para a perda ou dano.

Para além destas, nem o armador/transportador nem o navio serão responsáveis pelas perdas e danos provenientes ou resultantes do estado de inavegabilidade, salvo se for imputável à falta de razoável diligência do armador em pôr o navio em estado de navegabilidade ou em assegurar ao navio o armamento, equipamento ou aprovisionamento convenientes, ou em preparar e pôr em bom estado os porões, frigoríficos e todas as outras partes do navio onde as mercadorias são carregadas, de modo a que elas estejam aptas à recepção ou transporte e à preservação das mercadorias. Se a perda ou dano resultar da inavegabilidade o ónus da prova quanto à diligencia razoável recai sobre o armador ou em qualquer outra pessoa que invoque a exoneração. (Artigo 4º nº 1)

Quanto às exonerações do carregador o nº 3 do mesmo artigo refere que: “o carregador não será responsável pelas perdas e danos sofridos pelo armador/transportador ou navio, qualquer que seja a causa de que provenham ou resultem, desde que não sejam imputáveis a acto de negligência do mesmo carregador, dos seus agentes ou empregados.”

Caso haja necessidade de fazer um desvio na rota para salvar ou tentar salvar vidas ou bens no mar ou qualquer desvio razoável não são tidos como infracção à Convenção ou ao contrato de transporte, não sendo por isso o armador/transportador responsável por quaisquer perdas ou danos daí resultantes. (nº 4 do artigo 4º)

Existe um limite máximo definido na Convenção quanto à responsabilidade do armador/transportador, estabelece o nº 5 que tanto o armador como o navio não serão obrigados em caso algum, por perdas e danos causados às mercadorias ou que lhe digam respeito, por uma soma superior a 100 libras esterlinas (Decreto-lei nº 37748  de 11.03.1950 que fixou em 12.500$00 e posteriormente o Decreto-Lei nº 352/86 de 21 de Outubro fixou em 100.000$00, ou seja 498,80€) por volume ou unidade de transporte) por volume ou unidade equivalente desta soma em moeda diversa, excepto se a natureza e o valor das mercadorias tiverem sido declaradas pelo carregador antes do seu embarque e essa declaração tiver sido inserida no conhecimento de carga/BL, constituindo esta uma presunção, salvo prova em contrário, mas que não obriga o armador se ele a contestar.

Este limite pode ser ultrapassado por convenção entre o armador, capitão ou agente deste e o carregador podendo estabelecer-se um limite máximo que nunca pode ser inferior, terá de ser sempre superior.

Se no conhecimento o carregador tiver feito conscientemente uma falsa declaração da natureza e valor da mercadoria, nem o armador/transportador nem o navio serão responsáveis, em nenhum caso, pelas perdas e danos causados às mercadorias ou que se lhe refiram.

No que se refere às mercadorias de natureza inflamável explosiva ou perigosa, cujo o embarque o armador, capitão ou o agente do armador não consentiriam se soubessem da sua natureza ou caracter, poderão ser a todo o tempo, antes da descarga, desembarcadas em qualquer lugar, ou destruídas ou tornadas inofensivas pelo armador/transportador, sem indemnização, e o carregador dessas mercadorias responderá pelos danos e despesas provenientes ou resultantes, directa ou indirectamente, do embarque delas. Se por outro lado tiverem sido embarcadas com conhecimento e consentimento do armador/transportador e estas se converterem em perigo para o navio ou para a carga, poderá na mesma ser desembarcada, destruída ou tornada inofensiva pelo armador, sem responsabilidade para este, salvo a que resultar de avarias comuns. (nº 6 do artigo 4º)

E o armador é sempre exonerado da sua responsabilidade se ocorrerem algumas das situações descritas no artigo 4º? Não, o armador/transportador, capitão ou agente deste e até o carregador pode renunciar, no todo ou em parte aos seus direitos e isenções e pode também agravar as suas responsabilidades e obrigações previstas na Convenção, desde que a renuncia ou agravamento constem no conhecimento de carga/BL entregue ao carregador. (Artigo 5º)

O armador/transportador ou o carregador podem ainda, nos termos do artigo 7º, inserir num contrato estipulações, condições, reservas ou isenções relativas às obrigações e responsabilidades do armador, ou do navio, pelas perdas e danos que sobrevierem às mercadorias, ou referentes à sua guarda, cuidado e manutenção, anteriores ao carregamento ou posteriores à descarga do navio que transporta as mercadorias por mar.

De acordo com o artigo 6º o armador, capitão ou agente do armador e o carregador podem em relação a determinadas mercadorias, quaisquer que elas sejam, celebrar um contrato com clausulas referentes às suas responsabilidades e obrigações, bem como quanto aos direitos e isenções do armador ou a obrigações como a referente ao estado de navegabilidade do navio, desde que não seja contrária à ordem publica ou relativamente aos empregados ou agentes quanto ao carregamento, manutenção, estiva, transporte, guarda, cuidados e descarga das mercadorias transportadas por mar, desde que nenhum conhecimento de carga/BL seja emitido e que as clausulas do acordo sejam inseridas num recibo, que depois será um documento intransmissível, desde que tenha essa menção. A convenção feita nestes moldes tem plena validade legal.

Contudo um acordo nestes moldes só é possível em determinados carregamentos em que em virtude do caracter e a condição dos bens a transportar e as circunstancias, os termos e condições em que o transporte se deve fazer justificam a existência de uma convenção especial. Não se aplica, portanto aos carregamentos comerciais ordinários realizados por operações comerciais comuns. (Ultimo parágrafo do artigo 6º).

De referir que as disposições da Convenção não se aplicam às cartas-partidas, mas se num navio regido por carta-partida forem emitidos conhecimentos/BLS, ficarão sujeitos aos termos da Convenção (2º parágrafo do artigo 5º)

Também é de referir que as disposições da Convenção não constituem obstáculo à inserção num conhecimento de carga/BL de qualquer disposição licita em matéria de avarias comuns. (3º parágrafo do artigo 5º)

Uma nota importante o artigo 8º define que as disposições da Convenção não modificam os direitos e obrigações do armador que resultam de lei em vigor relativamente à limitação da responsabilidade dos proprietários de navios de mar.

Por último consta na Convenção no artigo 10º que as suas disposições aplicam-se a todo o conhecimento de carga/BL criado num dos Estados Contratantes.

Esta Convenção foi posteriormente modificada pelo Protocolo designado Regras de Visby em 23 de Outubro de 1968, passando a chamar-se “Regras Haia-Visby” e depois pelo Protocolo SDR de 1979 em 21 de Março de 1979 que veio alterar o de 1968, mas Portugal não ratificou nenhum destes Protocolos.

No seio das Nações Unidas foi criado em 31 de Março de 1978, foi criada a Convenção das Nações Unidas sobre o Transporte de Mercadorias por Mar, assinada em Hamburgo, passando a designar-se “Regras de Hamburgo”, que também não foi ratificada por Portugal.

Posteriormente em 11 de Dezembro de 2008 foram criadas as “Regras de Roterdão” no seio também das Nações Unidas e que também não foi ratificada por Portugal.

Em 24 de Maio de 1980 foi criada a Convenção de Genebra sobre transporte combinado ou multimodal, que também não foi ratificada por Portugal.

 

Na próxima edição do Jornal vamos falar sobre regime nacional.

Fontes:

– Convenção de Bruxelas de 1924

 



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