Do Direito e do Mar - Cristina Lança

Nesta edição do Jornal continuamos com o tema arresto de navios, desta vez na perspectiva nacional.

O arresto de navios é regulado pelas disposições do Código Civil, do Código de Processo Civil, pela Lei dos Tribunais Marítimos (Lei nº 35/86, de 4 de Setembro) e pelo Decreto-Lei nº 201/98 de 10 de Julho, relativo ao Estatuto Legal do Navio, que já analisámos em edição anterior do jornal quando falámos sobre o navio.

Também o Decreto-Lei nº 384/99 de 23 de Setembro, respeitante à tripulação do navio e acontecimentos de mar fala no arresto de navio, qualifica-o como um acontecimento de mar (artigo 13º nº 2). Esta qualificação tem sido alvo de críticas porque de facto não decorre da fortuna de mar como o abalroamento, a salvação ou a arribada forçada.

Sendo que estas disposições nacionais relativas ao arresto de navios apenas se aplicam se se tratar de um arresto em Portugal, de um navio português e por um residente português. Quando algum destes elementos for estrangeiro aplica-se a Convenção sobre Arresto de Navios (Convenção de Bruxelas de 1952) que já falámos na edição anterior do Jornal.

Estabelece o artigo 9º do Estatuto Legal de Navio que:

“1- o navio pode ser arrestado ou penhorado mesmo que se encontre despachado para viagem.

2-O disposto no número anterior é aplicável aos géneros ou mercadorias carregadas em navio que se achar nas circunstancias previstas no número anterior.”

Portanto pode fazer-se o arresto do navio, mesmo que já se encontre despachado para viagem e da carga também. Contudo o arresto, ou melhor o arrolamento da carga apenas faz sentido se o proprietário desta for o devedor do requerente de arresto, o que raramente acontece, pois a mercadoria transportada não é em regra do transportador-ele detém apenas temporariamente a mercadoria em nome e interesses alheios e tem a obrigação de entregar a mercadoria ao destinatário- fora esse caso não é possível. E também não se aplica ao arresto da carga ou mercadoria o regime do arresto de navios.

No que se refere à carga em navio o artigo 746º do Código de Processo Civil fala em penhora de mercadorias carregadas em navio dizendo que:

“1- O navio ainda que esteja despachado para viagem, efectuada a penhora de mercadorias carregadas, pode ser autorizada a sua descarga se o credor satisfizer por inteiro o frete em dívida, as despesas de carga, estiva, desarrumação, sobredemora e descarga ou prestar caução ao pagamento dessas despesas.

2- Considera-se despachado para viagemo navio logo que esteja em poder do respectivo capitão o desembaraço passado pela capitania do porto.

3- Oferecida a caução, sobre a sua idoneidade é ouvido o capitão, o qual sobre esta se pronuncia no prazo de cinco dias.

4- Autorizada a descarga, faz-se o averbamento respectivo no conhecimento pertencente ao capitão e comunica-se o facto à capitania.”

Quanto ao arresto em si, em termos gerais, que se aplica obviamente também ao arresto de navios, o Código Civil no artigo 619º e o Código de Processo Civil no artigo 391º estabelecem que o credor tem de ter um crédito, ou melhor a aparência de existência de um direito de crédito e ter justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito para poder requerer o arresto de bens do devedor. Este são requisitos essenciais para o arresto, sem ele não há arresto de acordo com a nossa lei.

Além destes é ainda necessário em específico para o arresto de navio e da sua carga, de acordo com o artigo 394º do Código de Processo Civil, que o requerente do arresto demonstre, para além do preenchimento dos requisitos gerais, que a penhora é admissível, atenta a natureza do crédito. E esse credito tem de ser marítimo para ser feito o arresto de navio como acontece na Convenção? Não temos propriamente uma definição de créditos marítimos, como acontece na Convenção. Contudo, o artigo 578º do Código Comercial diz que: “As dívidas que têm privilégio sobre o navio são graduados da seguinte forma:

1º As custas e despezas judiciaes feitas no interesse comum dos credores;

2º Os salários devidos por assistência e salvação;

3º As despesas de pilotagem e reboque da entrada no porto;

4º Os direitos de tonelagem, pharoes, ancoradouro, saúde publica e quaisquer outros de porto;

5º As despezas com a guarda do navio e com a armazenagem dos seus pertences;

6º As soldadas dos capitães e tripulantes;

7º As despesas de custeio e concerto do navio e dos seus aprestos e apparelhos;

8º O embolso dos preços de fazendas do carregamento, que o capitão precisou de vender;

9º Os prémios de seguro;

10º Os preços em dívida da ultima aquisição do navio;

11º As despezas com o concerto do navio e seus aprestos e apparelhos nos últimos três anos anteriores à viagem e a contar do dia em que o concerto terminou;

12º As dívidas provenientes de contractos para a construcção do navio;

13º os prémios de seguros feitos sobre o navio, se todo foi segurado, ou sobre a parte e acessórios que o foram, não comprehendidos no nº 9;

14º A indemnização devida aos carregadores por falta de entrega das fazendas ou por avarias que estas sofressem.

#Único. As dívidas mencionadas nos nºs 1 a 9 são as contrahidas durante a ultima viagem e por motivo d’ella. “

Pelo que apenas estas dívidas têm privilegio sobre os navios.

E como conseguimos articular este artigo com a Convenção sobre Arresto de Navios de 1952 que não exige a prova do justo receio da perda de garantia patrimonial como o Código de Processo Civil, apenas que alegue a existência de um crédito marítimo? Parece-nos que quando os Tribunais nacionais tiverem de aplicar a Convenção a um arresto de navios que se encontre em Portugal o requisito constante do Código de Processo Civil sobre o justo receio da perda de garantia patrimonial não é de aplicar por ser contrário a esta, uma vez que as normas convencionais sobrepõem-se às normas nacionais (artigo 8º da Constituição).

É verdade que o artigo 6º da Convenção Bruxelas de 1952 estatui que: “as regras do processo reguladoras do arresto de um navio serão as constantes da lei do Estado onde o arresto for efectivado ou requerido” mas isso não significa que se possa ultrapassar o que consta na Convenção e estamos a falar apenas nas regras do processo.

A jurisprudência diz que no caso de se aplicar a Convenção basta alegar a existência do crédito marítimo, sem invocar o justo receio da perda de garantia patrimonial, para ser decretado o arresto de navio (Ac. Relação de Lisboa, de 24.03.1994; Col. Jur. 1994, 2º 97, também o Acórdão da Relação de Lisboa de 03-07-2003, e mais recentemente o Acórdão da Relação de Lisboa de 13.03.2012).

O nº 2 do artigo 619º do Código de Processo Civil define arresto como a apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrariar o preceituado nesta secção.

O arresto como qualquer procedimento cautelar tem carácter urgente, devendo ser decidido em 1ª instancia, no prazo máximo de dois meses, ou se o requerido não tiver sido citado no prazo máximo de 15 dias. (artigo 363º do Código de Processo Civil)

O arresto do navio pode ser requerido no tribunal onde deva ser proposta a acção respectiva ou no lugar onde o navio se encontre. (Artigo 78º do Código de Processo Civil.

No que se refere ao valor do arresto para efeitos de interposição de providencia cautelar tem o valor do crédito que se pretende garantir com o mesmo. (artigo 304º do Código de Processo Civil)

O arresto pode ser interposto antes de interposta a acção principal ou durante esta, ou seja, como preliminar ou incidente respectivamente. (artigo 364º nº 1 do Código de Processo Civil. Se for requerido antes de proposta o procedimento é apensado aos autos desta logo que a acção seja instaurada e se a acção vier a correr noutro tribunal, é para aí remetido o apenso, ficando o juiz da acção com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa. Se for requerido no decurso da acção, deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso, a menos que a acção esteja pendente de recurso; neste caso a apensação só se faz quando o procedimento estiver findo ou quando os autos da acção principal baixem à 1ª instancia. (artigo 364º nº 2 e 3 do Código de Processo Civil).

De referir que nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar de arresto de navio, têm qualquer influência no julgamento da acção principal. (nº 4 do artigo 364º do Código de Processo Civil).

Vamos supor que o navio que sendo estrangeiro se encontra de escala em Portugal e por isso o credor que é estrangeiro decide fazer o arresto aqui, neste caso o procedimento cautelar de arresto segue os tramites aqui explicados, porque se aplica o código de processo civil juntamente com a Convenção por se tratar de um navio e um requerente estrangeiro, e depois coloca a acção principal no tribunal estrangeiro competente para julgar esta.

O nº 5 do artigo 364º do Código de Processo Civil estabelece que nos casos em que, nos termos de convenções Internacionais em que seja parte o Estado Português, o procedimento cautelar seja dependência de uma causa que já foi ou haja de ser intentada em tribunal estrangeiro, o requerente deve fazer prova nos autos do procedimento cautelar da pendencia da causa principal, através de certidão passada pelo respectivo tribunal.

Quanto à forma como se processa o arresto o artigo 392º do Código Processo Civil dá-nos a resposta, o requerente do arresto tem de apresentar junto do Tribunal Marítimo (artigo 4º alínea i) da Lei dos Tribunais Marítimos) uma providencia cautelar devendo no requerimento deduzir os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado- e de que a penhora é admissível, atenta a natureza do crédito, temos de acrescentar-, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência. (nº 1)

Se o arresto for requerido contra o adquirente dos bens do devedor, o requerente, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, tem de deduzir ainda os factos que tornem provável a procedência da impugnação. (nº 2)

Posteriormente são examinadas as provas produzidas, o arresto é decretado, sem audiência da parte contrária, desde que se mostrem preenchidos os requisitos legais. (Artigo 393º nº 1 do Código de Processo Civil). Se o Tribunal entender que não estão preenchidos os requisitos legais, é ouvida a parte contrária.

Se o requerido for ouvido antes de ser decretado o arresto, ele é citado para deduzir oposição. (artigo 366º nº 2 do Código de Processo Civil)

Se for decretado o arresto sem ser ouvido o requerido, só depois de realizado ao arresto é que ele é notificado da decisão que o ordenou. (artigo 366º nº 6 do Código de Processo Civil)

De acordo com o artigo 620º do Código Civil o requerente deve ainda prestar caução, se o Tribunal assim o exigir.

Se o arresto tiver sido requerido em mais bens que os suficientes para a segurança normal do crédito, reduz-se a garantia aos justos limites. (nº 2 do artigo 393º do Código de Processo Civil)

Estabelece o artigo 394º nº 2 que a apreensão de navio de navio e sua carga não se realiza se o devedor oferecer logo caução que o credor aceite ou que o juiz, dentro de dois dias, julgue idónea, ficando sustada a saída do navio até à prestação da caução.

Se o arresto for julgado injustificado (porque de facto não existia o direito do Requerente ou não havia de facto o justificado receio de perda de garantia patrimonial) ou caducar (por falta de interposição da acção principal), o requerente é responsável pelos danos causados ao arrestado, quando não tenha agido com a prudência normal. (artigo 621º do Código Civil)

Caso os bens arrestados sejam vendidos pelo seu proprietário, o devedor do crédito, o acto de disposição é ineficaz em relação ao requerente do arresto, sendo extensivos ao arresto os demais efeitos da penhora. (artigo 622º do Código Civil)

Com o arresto do navio decretado em sede de providencia cautelar, este é convertido em penhora e faz-se no registo de propriedade do navio o averbamento da penhora, aplicando-se o disposto no artigo 755º do Código de Processo Civil. (artigo 762º do Código de Processo Civil)

O arresto caduca se não for interposta a acção principal no prazo de 30 dias a contar da notificação do transito em julgado da decisão que ordenou o arresto do navio. (artigo 373º nº 1 alínea a) do Código de Processo Civil)

O arresto pode caducar também num momento posterior, o artigo 395º do Código de Processo Civil estabelece que o arresto fica sem efeito, não apenas nas situações previstas no artigo 373º, mas também no caso de obtida na acção de cumprimento sentença com transito em julgado, o credor insatisfeito não promover execução no prazo máximo de dois meses subsequentes, ou se promovida a execução, o processo ficar sem andamento durante mais de 30 dias, por negligencia do exequente.

O artigo 373º fala noutros casos em que o procedimento cautelar caduca, além dos dois casos acima referidos. São eles:

  1. Se a acção vier a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado;
  2. Se o réu for absolvido da instancia e o requerente não propuser nova acção em tempo de aproveitar os efeitos da proposição da anterior;
  3. Se o direito que o requerente pretende acautelar se tiver extinguido.

Se a providencia cautelar tiver sido substituída por caução prestada pelo requerido, esta fica sem efeito nos mesmos termos em que ficaria a providencia cautelar substituída, ordenando-se o levantamento daquela. (nº 2 do artigo 373º do Código de Processo Civil)

A extinção do procedimento ou o levantamento da providência são determinados pelo juiz, com previa audiência do requerente, logo que se mostre demonstrada nos autos a ocorrência do facto extintivo. (nº 3 do artigo 373º do Código de Processo Civil)

E se o requerido violar o arresto do navio? Se apesar de apreendido o navio o requerido tomar posse ilegitimamente do navio e prosseguir viagem? Neste caso aplica-se o artigo 375º do Código de Processo Civil, o requerido infractor incorre numa pena por crime de desobediência qualificada, sem prejuízo de serem aplicadas as medidas adequadas à execução coerciva.

Após o arresto e provado que esteja o crédito do requerente em sede de acção principal e caso não haja pagamento do valor em dívida após sentença favorável na acção declarativa o requerente/credor pode avançar com a execução e nesta far-se-à a venda do bem arrestado/penhorado para que o agora exequente receba o valor que estava em dívida.

Define o artigo 824º do Código Civil os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente do registo.

E o que acontece se forem feitos vários arrestos por diferentes credores sobre o mesmo navio? Neste caso prevalece o primeiro arresto sobre os demais, mas isso não significa que não se façam os outros arrestos no navio. Por exemplo um navio logo que chegue a um porto pode ser logo arrestado e depois é arrestado novamente passado vários dias e depois novamente passado duas semanas, por créditos diferentes obviamente.

De referir ainda que a providencia cautelar de arresto de navios é susceptível de recurso nas decisões sobre procedimentos cautelares (artigo 370° do Código de Processo Civil) e nos casos de decisões de indeferimento liminar do requerimento inicial do procedimento cautelar e das decisões respeitantes ao valor da causa (Artigo 629º nº 3 b) e c) do Código de Processo Civil).

E se em sede de execução os bens tiverem sido previamente arrestados? Neste caso a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto. (artigo 822º do Código Civil)

E o arresto pode ser levantado? A resposta é afirmativa, é levantado quando o pagamento da dívida esteja feito, acrescido de custas e despesas.

O arresto de navios é instrumento muito usado para garantir o pagamento de créditos marítimos em termos internacionais e bastante eficaz a grande maioria das vezes pois pode ter repercussões gravíssimas não apenas para o devedor mas para terceiros (o proprietário do navio se não for devedor e para os donos da carga que entretanto têm de encontrar outro transporte para as mesmas, como um local de armazenamento para as mesmas até ser feito o transporte), e consequências contratuais também quer para o contrato de fretamento do navio e no contrato de transporte de mercadorias por mar.

Na próxima edição do JEM falaremos sobre o contrato de transporte marítimo de mercadorias por mar e numa edição posterior do contrato de fretamento de navio.



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