Raramente muralhas, muros, barreiras, etc. constituem dispositivos promotores de civilização, ou apenas de bem-estar.

Frequentemente aquelas construções acabam por materializar um sentimento de medo, receio, insegurança, que leva os indivíduos a fecharem-se, nos espaços que os rodeiam e em si próprios, impossibilitando ou obstruindo as trocas, que essas sim, têm sido aquilo que possibilitou a evolução da humanidade. Trocas sobretudo culturais, sociais e económicas.

Mas esta caracterização de obstáculos, não se aplica de todo à grande muralha verde africana, uma extensão de cerca de 8 000 quilómetros, com cerca de 25 de largura, que une a Mauritânia no Atlântico ao Djibuti no Índico, ao longo de onze países africanos, cortando mesmo alguns deles.

Também esta característica de corredor acaba por ser notável em África, que ao longo dos últimos anos do século XIX, assistiu à criação (e em alguns casos, apenas à tentativa) de grandes eixos coloniais, quer em latitude como em longitude, que constituíram trilhos privilegiados e exclusivos de poder imperial, essencialmente político e económico.

Foi assim com o corredor britânico do Cairo ao Cabo, com o francês de Dacar ao Djibuti, e o nosso, de Angola à contra-costa. À exceção do primeiro, naturalmente, todos os outros esbarraram no poderio colonial inglês, e acabaram interrompidos. O francês por altura de Fachoda (atualmente Kodok), e o português, nos territórios que constituíam o Mapa cor de rosa.

Mas finalmente, surge agora um eixo virtuoso, a unir países independentes e soberanos, que por sua exclusiva livre iniciativa, decidiram unir esforços para produzir um bem comum.

E é igualmente relevante que o projeto seja do século XXI, o século africano que se pretende de autonomia, estabilidade e progresso, depois de o XIX ter sido o da colonização, e o XX o da descolonização, e com a particularidade de que quem fez uma, não fez a outra.

Na realidade, enquanto Portugal, Inglaterra, França, Itália, Bélgica, Alemanha, foram as potências colonizadoras, a descolonização foi formalmente feita pelos mesmos, mas significativamente condicionada pelas conceções que Estados Unidos e União Soviética tinham para o processo, e sob as regras e restrições impostas pela guerra-fria, e mesmo que esta se desenrolasse às temperaturas de África.

Cem anos depois, uma União Africana que ainda não conseguiu encetar o procedimento de reconfiguração das fronteiras dos seus estados membros, corrigindo aquelas que resultaram de interesses exclusivos colonialistas, alterando-as para as naturais fronteiras de união/separação de povos ancestrais, consegue agora promover projetos genuinamente pan-africanos.

Lançado pela União Africana em 2007, com um orçamento inicial de cerca de oito mil milhões de dólares, o programa tem a sua conclusão prevista para 2030, altura em que estarão plantados vários milhões de árvores, sobretudo acácias, recuperados 100 milhões de hectares, capturados na vegetação 250 milhões de toneladas de carbono, criados 10 milhões de empregos e envolvidos 21 países.

Com a sua execução atual ainda nem a metade, o projeto tem encontrado naturais dificuldades de concretização, em parte pelo diferente empenho dos onze países, com diferentes prioridades politicas e económicas, com o sucesso a concentrar-se na periferia marítima, e a esbater-se para o centro continental, e com um inimigo comum que é o banditismo, sem nacionalidade, cor ou credo, que assola a região.

A sua materialização tanto é entregue ao dirigismo centralizador das cidades, que mandam plantar quantidades industriais de verde, como às estruturas e às populações locais, que mais interessada e competentemente, tecem no deserto jardins e hortas, que unidos fazem avançar o projeto.

Quando se observa o mapa do cordão verde, e o alinhamento e encaixe dos países que a constituem, Mauritânia, Senegal, Mali, Burkina Faso, Níger, Nigéria, Chade, Sudão, Eritreia, Etiópia, e Djibuti, o que ressalta à vista é que dos onze países, sete não possuem acesso ao mar.

Contata-se assim, que dos catorze países africanos sem acesso ao mar, num total de quase sete milhões de quilómetros quadrados de superfície, quase 25 % da superfície do continente, metade integram a grande muralha verde, o que diz bem do desejo de humidade por parte dos seus povos.

O privilégio do acesso ao mar, o maravilhoso das amplas varandas oceânicas, é alguma coisa intrínseca à nação portuguesa, provavelmente tanto quanto a língua, e está na génese da nação mais velha da Europa, e pouco depois na expansão da pequena nação por todos as partes do mundo, onde não só pura e simplesmente não criávamos territórios isolados do mar, como estes se caracterizavam por uma harmoniosa proporcionalidade entre o volume da massa territorial e o comprimento da linha de costa, com destaque para os quase perfeitos, retângulo de Portugal e quadrado de Angola, e o Brasil, que de imediato revela aquilo que é: metade da América do Sul.

E julgo que sempre soubemos muitíssimo bem o valor do mar, quando diplomaticamente jogámos com ele para protagonizar decisões internacionais que pretendíamos favoráveis aos nossos interesses.

Em junho de 1947, já com o sub-continente indiano em polvorosa por causa da independência próxima, tentámos influenciar o processo, e simultaneamente beneficiar o affair de Goa, através de negociações em Londres com os representantes do nizam de Hiderabad, com vistas à concessão àquele território do porto de Mormugão, permitindo ao principado há altura independente, uma saída para o mar.

Ou pelo contrário, e noutro cenário, em março de 1954, quando o governo industriou com precisão a sua delegação presente à Conferência de Dacar. Estava impedida de negociar qualquer proposta que possibilitasse o acesso ao mar, por parte de qualquer outro participante.

Mas claro que também soubemos o que era o deserto, e não apenas pelas passagens bíblicas.

Não muito longe do extremo atlântico da grande muralha verde, ficam as extraordinárias ilhas de Cabo Verde, e de uma delas, das mais fustigadas pela secura áspera do vento, há muitos anos atrás uma tia minha recebeu um postal de uma amiga, a contar-lhe um fenómeno estranhíssimo que tinha acontecido na ilha, com qualquer coisa que tinha caído do céu. E como prova, tinha recolhido uma pequena amostra, que infelizmente tinha acabado por manchar as letras escritas.

No postal seguinte, a minha tia tranquilizou-a.

Tratava-se de chuva.



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