Terra construída por mar. Ou estar perto e longe da Europa

Não é apenas o ciclo de marés que a cada doze horas molda o aspeto e constituição da terra.

Mais profundo é o efeito que a presença ou ausência de mar, provoca nas nações, entendidas estas como a unidade formada por aquela terra, o seu povo, a sua cultura e a sua história.

É por demais clássica, e portanto deslocada para um texto despretensioso como este, a diferenciação entre nações marítimas e continentais, assim o mar esteja mais ou menos (ou até nada) presente nas suas vidas.

Mas mais interessante é atentar na forma como algumas das nações tentaram ultrapassar os condicionalismos, sobretudo geográficos, colocados ao seu estatuto marítimo. Seja por excesso seja por defeito.

Julgo haver espalhados pelo globo diversos exemplos de ambos os casos, mas a atenção destas linhas vai concentrar-se em dois: A Rússia e o Brasil.

A Rússia, nos variadíssimos formatos que a sua terra tem possuído, fruto do seu insaciável apetite imperialista e colonialista, tem oscilado ao longo da sua história no enigma e dilema, não tanto se é uma potência marítima ou continental, porque aqueles ficam em parte saciados pela certeza de que é uma potência tout-court, mas se o seu lugar é na Ásia ou na Europa.

Mas uma vez decidido pela imprescindibilidade do mar, coloca-se a questão de que mar é que se trata.

O mar que mais tradicionalmente lhe diz respeito, tem enormes limitações, traduzidas por um acesso problemático aos seus portos, e até mesmo pela funcionalidade desses portos, pelo menos percebidas como costumam ser noutras paragens, já que pelo rigor climatérico de muitos destes portos, é possível exibir durante grande parte do ano o Ballet Bolshoi em cima das suas águas.

Esta situação tem provocado a cobiça dos portos vizinhos, e promovido uma enorme turbulência no espelho de água dos Balcãs, com os russos e os turcos a disputarem as mesmas águas.

E não apenas aqui, porque ainda recentemente os noticiários trouxeram para a ordem do dia a questão da Crimeia, tal como há dois séculos, que mais não é do que outra faceta do problema russo de possuir portos operacionais ao longo de todo o ano.

A questão de a Rússia ser europeia e marítima, ou asiática e continental, agudizou-se com Pedro o Grande, quando este monarca decidiu no início do século XVIII, que a Rússia devia numa geração cumprir a evolução cultural da Europa, renascimento, iluminismo, etc.

Para isso era necessário que a aragem marítima entrasse pela velha terra adentro, e varresse à sua frente os miasmas asiáticos.

Já o Brasil, inserido numa América do Sul rigorosamente a dois, Portugal e Espanha, mas onde nós deixámos a nossa metade apenas a um país, enquanto os espanhóis deixaram a outra metade a doze, teve com o mar uma relação complexa, que chega aos nossos dias.

Desde os primeiríssimos dias, que a América do Sul ficou a dever a sua génese e desenvolvimento ao modelo de produção para exportação. Do lado espanhol, sucessivamente diminuído pela voracidade com que Portugal ultrapassou os limites de Tordesilhas, empurrando os espanhóis para a cordilheira andina e o Pacífico, a produção foi de metais preciosos, sobretudo a prata, e do lado português o açúcar.

Os dois utilizaram o Atlântico, para fomentar a vida nas suas novas terras. Os portugueses importavam o combustível diabólico que permitia transformar a cana sacarina em açúcar, ou seja a mão de obra africana, nessa empresa horrível e degradante que foi a escravatura, e exportavam o ouro branco para Lisboa, e daqui para as principais praças europeias. E os espanhóis também, já que era preferível trazer a prata desde a mina de Potosí, no altiplano da Bolívia, através dos meandros lacustres do Paraguai, até Buenos Aires, na embocadura do Rio da Prata, e daqui para Sevilha, do que fazer chegar a preciosa carga à Andaluzia, através do Pacífico.

O Brasil cresceu embalado pelo barulhar constante das ondas do Atlântico. Para fugir dele, e para quase refundir a Companhia de Jesus, há à altura já com problemas nas cortes europeias, que agudizar-se-iam até Pombal, acusada que era de confundir os confessionários com os corredores palacianos do poder, os jesuítas brasileiros vão tomar uma atitude inédita, e deixar o príncipe na Bahia, e rumam ao sul, para no interior, aos 760 metros de altitude das terras altas, fundar o vilarejo de Piratininga, a actual São Paulo.

Mas não haveria muito mais casos destes, de fuga ao sortilégio do mar, para além claro das entradas dos bandeirantes à procura de indígenas para escravizar e de pedras preciosas, e do ciclo do ouro, no interior das Minas Geraes, na viragem do século XVII para o XVIII.

Pelo mar foi exportado o ouro, pelo mar veio a corte portuguesa para fazer do Rio de Janeiro a capital do império, pelo mar vieram as ideias novas e a independência, vieram os emigrantes para o café, e este foi exportado.

Mas parecia que o Brasil tinha que vir da terra. Afinal era para aquilo mesmo que tinha sido concebida e implementada a estratégia de expandir o território das inicias 100 para 370 léguas a oeste de Cabo Verde. Era para aquilo que existia uma terra, às vezes só pressentida e vislumbrada de longe, mas que era a melhor do continente, sem a ossatura vertical da cadeia de montanhas do lado espanhol.

Tratava-se do Brasil ser mais brasileiro e americano, e de virar-se não de costas, mas de lado, para o mar europeu. E isto para surtir efeito tinha que ser feito com uma cerimónia inicial, que registasse uma vontade expressa.

Três séculos antes, a Rússia tinha feito aquilo mesmo, mas com um formato diferente.

Quase trezentos anos depois de Pedro o Grande ter fundado a capital da Rússia nas margens do Báltico, em 1703, Juscelino Kubitschek de Oliveira, em 1960, fundou a capital do Brasil nas profundezas do planalto americano.

Os dois possuíam objectivos diferentes.

O primeiro procurava com São Petersburgo uma excentricidade geográfica capaz de afastar o país dos vizinhos geológicos e antiquíssimos, abrindo a Rússia ao novo mundo que é a Europa.

O segundo, pretendia que Brasília promove-se a simetria do território, aproximando-o dos seus recentes vizinhos, e fechando o Brasil ao velho mundo que é a Europa.



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