O Brasil de portos abertos

 

O século XIX foi o tempo do imperialismo e da colonização, e o século XX, o da descolonização.

No primeiro destes cenários tem sido prestada uma especial atenção ao avanço do homem europeu em África e no Oriente, tanto o próximo como o médio e o longínquo, sobretudo com as epopeias africanas, com o projecto britânico vertical do Cairo ao Cabo, a opor-se com sucesso ao projecto francês horizontal, de Dakar ao Djibuti, com o conflito centrado na terreola de Fachoda, e ao projecto português de Angola a Moçambique (ou melhor, de Angola à Contra Costa), com o conflito de interesses centrado numa vasta área de territórios apensa a um tratado negociado com a Alemanha em 1887, e fixada num mapa pintado de cor de rosa.

Outra prática igualmente imperialista que o século XIX conheceu, e menos estudada, foi a abertura forçada de portos estrangeiros por parte das potências marítimas, fundamentada tal como todas as políticas coloniais em princípios simultaneamente, e com dosagens diferentes, egoístas, altruístas e oportunistas, e possibilitada e materializada pela artilharia das suas marinhas.

De entre estas, destacaram-se a Royal Navy e a US Navy, a primeira expressão de força da maior potência da altura, e a segunda de uma potência ainda emergente, que se lançava nos mares depois de ter satisfeito em terra o seu Destino Manifesto, o qual oscilará até aos dias de hoje entre continental, pelo isolacionismo dos fundadores, expresso na Doutrina Monroe, os assuntos da América são com os americanos (mas confundindo de maneira interessada o conceito geográfico do território que vai do Alasca à Terra do Fogo, com o conceito político dos americanos, centrado em Washington), e marítimo, pelo expansionismo missionário da sua ideia de democracia. Ambas as potências e respectivas marinhas, forçaram a abertura dos portos que encontraram fechados, e cuja abertura consideraram favorável aos seus interesses, sobretudo geoestratégicos e/ou comerciais.

Os Estados Unidos fizeram-no sobretudo com os portos dos seus vizinhos sul-americanos, e nomeadamente com os da fachada atlântica, da América Central e Caribe, e depois de se sentirem suficientemente fortes, com os do Pacífico, com destaque para a abertura dos portos do Japão em 1853, quando a esquadra do Comandante Mattew Perry impôs a sua vontade ao Império do Sol Nascente.

A Inglaterra fez outro tanto, na sua extensa zona estratégica, em África, onde ficou claro o apetite com que cobiçou a região de Lourenço Marques, a que deu o nome de Delagoa Bay, cujo porto era indispensável para fazer escoar as riquezas do interior africano, sobretudo daquela região anteriormente pintada a cor de rosa, e também na China, onde as sucessivas missões de George Macartney, Amherst, Napier e Pottinger, obrigaram a Cidade Proibida a conversações com os bárbaros que não apenas vinham de fora da cidade, como do outro lado do mar.

E também no Brasil, onde o facto de ter transportado para aqui o rei D.João VI, a família real portuguesa e a corte, de uma Lisboa prestes a ser ocupada pelos exércitos franceses, acabou por permitir à Inglaterra a aquisição de um conjunto de vantagens no nosso grande território americano, sobretudo ao nível das rendas da alfândega e da liberdade de utilização dos portos brasileiros.

Mais ainda do que o processo de transferência do poder da Europa para a América, ou da consequente conservação do poder e da independência, numa Europa em que apenas os dois aliados naquela aventura conseguiram permanecer independentes, face a um continente por inteiro vergado à águia napoleónica, aquilo que mais fascina os estudiosos da política e da diplomacia da altura, é o exercício daquele mesmo poder.

Portugal é o único país europeu, cuja capital já se localizou fora da Europa. E isto está reconhecido na documentação da actual União Europeia.

E foi do Rio de Janeiro que Portugal fez expedir as suas orientações para a reunião europeia mais importante de sempre, a par da Paz de Vestefália de 1648, e do Congresso de Versalhes de 1919, como seja o Congresso de Viena de 1814, reunido no rescaldo do incêndio que Napoleão e a revolução francesa tinham ateado na Europa, e de onde saiu não só a restauração das cabeças coroadas das grandes dinastias europeias, e respectivas ordens, como o princípio do equilíbrio de poderes, que mergulhou a Europa numa belle-époque apenas desfeita cem anos depois nas trincheiras da primeira guerra mundial.

Henry Kissinger, antigo secretário de estado norte-americano dos negócios estrangeiros, e especialista nestes assuntos, no seu recente livro A ordem mundial, referencia a dificuldade dos diplomatas presentes em Viena se relacionarem e articularem com os seus centros de poder nas respectivas capitais, onde segundo ele um processo de consulta/resposta com Berlim, ali pertíssimo, demorava oito dias, três semanas com Paris, e um mês com Londres.

Pois as instruções portuguesas para os seus ministros, um dos quais Palmela, vinham do Rio de Janeiro!.

O desenvolvimento dos portos brasileiros acompanha fielmente o da própria economia, e esta o dos ciclos de desenvolvimento centrados numa matéria prima para exportação. A cada ciclo, correspondeu uma cidade porto, que serviu e foi servido pela riqueza do ciclo e do produto que o justificou, acompanhando-o do apogeu ao declínio.

Quando Portugal estabelece a capital no Rio de Janeiro, o país já tinha cumprido os seus dois grandes ciclos de desenvolvimento, o do açúcar entre o século XVI e o século XVIII, e o do ouro, na segunda metade do século XVII, e cada um deles tinha tido um porto, e este suficientemente importante para albergar a capital do território. Assim, enquanto a economia do território se tinha baseado na cana do açúcar, a capital tinha permanecido no nordeste, na Bahia, para servir a exportação do produto, e quando o ouro apareceu no interior de Minas Geraes, a capital deslocou-se para a Rio de Janeiro, para estar mais perto da exportação daquela riqueza.

Iria ainda ter um comportamento semelhante, embora não chegasse para implicar a transferência da capital, com o ciclo da borracha amazónica, e os portos de Belém e Manaus.

Em 1808 na altura em que a corte se estabelece no Rio, o Brasil prepara-se para uma grande mudança, traduzida na passagem do ciclo do açúcar para o do café, não tanto por causa das características agrícolas, mas sobretudo pelo formato da exploração da produção, com a mão de obra escrava do açúcar a ser substituída pela mão de obra livre, e sobretudo emigrante, do café.

O café surge ainda no interior do Rio de Janeiro, na divisa com Minas Gerais, mas rapidamente passa a S. Paulo, devido ao seu clima propício de altitude não muito pronunciada.

O seu grande porto é Santos, e a necessidade de fazer escoar a produção cafeeira das fazendas do interior do estado, fez surgir o caminho-de-ferro, e este no seu percurso até ao porto, foi lançando pequenos ramais e apeadeiros, onde as sacas de café das fazendas das redondezas se acumulavam à espera do comboio que as conduzisse até ao litoral e ao grande porto. O desenvolvimento daqueles ramais transformou os apeadeiros em lugarejos, e estes nas prósperas cidades do interior paulista, que fazem a actual riqueza do estado.

Em grande parte a configuração económica e social do Brasil alterou-se substancialmente quando Portugal, com falta de opções, decide abrir os portos do Brasil à livre navegação, privilegiando ainda a Inglaterra com uma série de benefícios adicionais, justificados pela sobrevivência da coroa portuguesa que ela tinha garantido com o transporte desde Lisboa.

A Inglaterra começava a dar os primeiros passos num ciclo pouco virtuoso, mas altamente rentável para quem o podia promover e sustentar, e que consistia em comprar barato as matérias-primas no ultramar, transformá-las na Velha Albion, e vender os produtos transformados novamente no ultramar, e para que isto acontecesse no ultramar não deviam existir escravos mas homens livres, aptos a adquirirem aqueles produtos.

Mesmo que por caminhos paralelos, a aberração da escravatura começava a ser posta em causa com a emigração livre que chegava da Europa, onde os conflitos étnicos e religiosos, e sobretudos os salários miseráveis pagos com a revolução industrial, faziam do mundo novo da América, de norte a sul, um paraíso. Homens e mulheres à procura de futuro.

E o Brasil recebeu-os de portos abertos.



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