Ainda o Canal do Panamá, ou o mar já não é para todos

As obras marítimas são construídas para compatibilizar a terra com o mar, e sobretudo para concretizar os objectivos que existam para aquele conjunto. Grandes como a regularização de um delta, ou pequenas como a fixação de um cabeço de amarração.

Por vezes são substituídas por obras que sem serem marítimas, concorrem para o mesmo fim.

Foi o que aconteceu no Panamá, onde a necessidade de passar rapidamente do Atlântico para o Pacífico, e vice- versa, levou a que a passagem antes de ser feita em 1914 por navio, e através de um canal, tivesse sido em 1885 concretizada por via férrea.

Gabriel García Márquez, no discurso com que agradeceu à Academia Sueca o Prémio Nobel da Literatura de 1982, não se esqueceu deste episódio, e aproveitou a ocasião para exemplificar o que era o realismo fantástico.

Ainda no século passado, a missão alemã encarregada de estudar a construção de uma via-férrea interoceânica no istmo do Panamá concluiu que o projecto era viável com a condição de que os carris não fossem feitos de ferro, que era um metal escasso na região, mas que fossem feitos de ouro.

Afinal aquela passagem, fosse feita de que forma fosse, tinha alimentado a imaginação de uma boa parte da humanidade, e tinha mexido com o espaço geográfico, político e cultural, em que o escritor tinha nascido e vivido, já que um dos trabalhos inscritos no caderno de encargos da obra tinha sido a construção do Panamá. Exactamente, primeiro os norte-americanos construíram o país Panamá, e só depois o canal.

Pouco mais de um século depois o canal foi significativamente aumentado, mais precisamente alargado, mantendo praticamente intacto o maravilhoso maquinismo de brinquedo que é o sistema das eclusas, um processo que valeu à sua construção a designação de maior projecto de engenharia do século XX.

A entrada em funcionamento do renovado canal vai trazer para o comércio marítimo, ou mais precisamente para a cultura marítima, devido à sua importância, uma série de alterações, algumas das quais muito sumariamente convém reflectir.

Durante muito tempo o mar pertenceu àqueles que tinham meios, entre os quais coragem, para o navegar, e àqueles que tinham forma para defender o mar que por uma qualquer razão (ou mesmo sem ela) consideravam seu.

Semelhante prática moldou uma forma de civilização, quase tanto quanto a fixação sedentária do homem nas margens do Tigre e do Eufrates, e originou por exemplo a passagem do mundo velho para o mundo novo, quando os ibéricos cansados das limitações e condicionalismos do Mediterrâneo, onde tinham nascido à sombra de Atenas e Roma, se lançarem ao desbravamento dos oceanos.

Seguiram-se os grandes tratados, com destaque para essa peça notável de imperialismo urdida entre Lisboa, Roma e Madrid, que foi Tordesilhas, as águas territoriais e o direito marítimo, sucessivamente mais sofisticado, mas mesmo assim o mar continuou a ser o meio de transporte de pessoas e mercadorias, mais difícil de ser controlado, pela dificuldade de se lhe colocarem fronteiras.

Esta característica gerou duas sociedades. Marítimas ou abertas, e continentais ou fechadas, e na articulação do século XIX com o XX, novas potências emergentes, tanto do primeiro tipo como o Japão, como do segundo, como a Alemanha, e sobretudo os Estados Unidos. Esta emergência associada a um progresso notável da engenharia, com as novas ligas saídas das metalurgias, e com a revolução da arquitectura naval, feita da substituição da vela pelo vapor e logo depois deste pelo diesel, permitiu constatar que o contraste entre os oceanos e as massas continentais deveria ser modificado por forma a intensificar a navegabilidade planetária.

Surgem desta forma as obras marítimas emblemáticas, com realce para os grandes portos, e para os dois grandes canais: o do Suez, na segunda metade do século XIX, e o do Panamá na primeira metade do século XX. Simultaneamente o desenvolvimento das dragagens faz nascer portos onde anteriormente seria impensável.

Durante algum tempo a principal característica destas obras foi a sua universalidade. Elas não iriam colocar no mar, os mesmos constrangimentos que o arame farpado e a mudança de bitola dos carris colocavam à circulação em terra.

Cais, navios e canais, iam crescer harmoniosos, adaptáveis e compatíveis, pelo menos enquanto a política o permitisse ao comércio, não tanto por altruísmo, mas sobretudo por oportunismo, já que desta forma serviam ao negócio, e este começava a estar na mão de capitalistas internacionais, para quem os seus activos valiam mais do que as sensibilidades patrióticas.

As obras faziam-se suficientemente grandes para servir os grandes navios, e natural e igualmente os pequenos. E os maiores entre os maiores, sabiam que tinham sempre um canal disponível para os fazer chegar a um porto para abrigo.

Contudo este equilíbrio parece preparar-se para ser colocado em causa, pelo menos a julgar-se pelo facto de o novo canal do Panamá, cuja inauguração se prevê para este ano de 2016, já não permitir com as suas eclusas de 55 metros de largura a passagem aos maiores navios actualmente a navegar. E não nos estamos a referir ao excepcional Prelude com os seus 74 metros de boca, nem aos futuros porta-contentores projectados, mas mais prosaicamente aos já standards porta-contentores MSC, e que escalam por exemplo Sines.

Este aparente divórcio entre navios e obras marítimas de serviço, pode condicionar um conjunto de rotas que até aqui têm alimentado o comércio marítimo, tornando alguns navios reféns de determinados portos e canais. E simultaneamente fazer determinados portos e barras dependerem de forma relevante do acesso de alguns navios, que uma vez por algum motivo colocado em causa, pode trazer graves incómodos a estes portos, nomeadamente pela necessidade de rentabilizar os significativos investimentos entretanto realizados.

Ou ainda, tornar aquelas rotas e obras marítimas vulneráveis à instabilidade política, num mundo uni-polarizado, mas pejado de potenciais conflitos regionais, étnicos, religiosos, ou outros, onde potências do segundo escalão podem fazer valer a soberania que detêm sobre aquelas obras, como foi o caso em 1956 com a crise do Suez, onde nem a acção conjunta de ingleses, franceses e israelitas, impediu a nacionalização do canal e a criação de novas regras de passagem, a que o comércio marítimo teve que se sujeitar e adaptar.

Estamos em crer que pela sua importância estas, e outras questões, já constam das preocupações e das agendas dos principais estrategos da navegação, por forma a que algumas das maravilhosas obras marítimas actuais não corram o risco que André Malraux, ministro da cultura de De Gaulle, eterno apaixonado pela história e pelo efeito que a passagem do tempo provoca, apontou em Brasília, fascinado que estava com a cidade que foi encontrar no planalto brasileiro, e referindo-se às colunas desenhadas por Oscar Niemeyer, e às ameaças que o horizonte deserto constituía para tudo aquilo:

“ Mas que belas ruínas irão dar.”



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