O jogo bilateral é de soma positiva: damos com uma mão, recebemos com a outra; os noruegueses também.

Portugal e a Noruega, o primeiro no extremo sudoeste da Europa, o segundo na sua frente noroeste do nosso Continente, têm em comum o facto de possuírem extensas áreas marítimas sob sua soberania ou jurisdição. Divergem também: enquanto para a Noruega o mar foi desde sempre considerado um ativo estratégico a proteger e a potenciar, em Portugal, sobretudo no período pós 25 de abril, o mar viu-se relegado para segundo plano no enquadramento estratégico nacional; e podemos alegar, com óbvio fundamento, que antes disso o víamos mais como caminho a percorrer do que como fim em si mesmo. Podemos aventar motivos para isso. Tal dever-se-á, porventura e pelo menos em parte, a uma curiosa necessidade de ver estabelecida uma ruptura visível relativamente aos símbolos do ancien regime, sistema político até então vigente. Mas também pode ser lido no quadro maior de uma cedência a vizinhos de uma União que integra Estados ciosos em nos manterem relegados para um recanto a partir do qual lhes não fizéssemos frente – como também se passou com a agricultura. Outras interpretações haverá, decerto, que reduzam menos os nossos motivos e atribuam menos as responsabilidades aos outros. Verdade é que, desde o renascimento a maioria dos portugueses viu no mar pouco mais do que um caminho. Em todo o caso uma coisa é certa: sejam quais forem os motivos para o nosso alheamento de hoje, ele parece estar a esbater-se. Cabe-nos saber abrir ampla a janela. Não há português que se preze que, mal possa não compre um carro de quatro portas para os fins de semana com a família. Não há norueguês que se preze que não tenha um barco par os fins de semana – e dois carros, um deles de tração às quatro rodas para caber tudo quando sai aos Sábados, Domingos e feriados (lá ainda os há), outro para o ram-ram do dia a dia.

Contabilizemos. Qualquer que seja o ângulo a partir do qual olhamos, o certo é que é muito pouca a expressão que o conjunto das atividades marítimas continua a ter no todo da economia nacional portuguesa. Enumerando, elencando, ao mesmo tempo que comparamos. Apesar de não existirem dados rigorosos, estima-se que a economia do mar represente cerca de 2,5% do PIB nacional. Vale a pena contrapor logo aqui constatações. Na Noruega esse mesmo sector da economia representa aproximadamente 20% do PIB desse país – mesmo excluindo deste valor a piéce de résistance que muito mais que o duplicaria se contabilizado, o petróleo e o gás que os noruegueses vão buscar à bacia, quantas vezes profunda e tempestuosa, do Mar do Norte.

Estes números põem bem em evidência a diferença no que diz respeito à capacidade e à vontade política dos dois países para concretizar o potencial das suas parcelas de mar. Não saímos bem no retrato. Em larga medida esta triste situação resulta de vícios estruturais de que padecemos, sendo outros os da Noruega. Enquanto em Portugal os grandes grupos económicos ainda se encontram afastados da economia do mar – porventura aguardando, na boa tradição luso-portuguesa, que o Estado que nos comprazemos a antropomorfizar “crie” as condições necessárias para que possam investir com maior segurança –, na Noruega o setor empresarial privado é o principal dinamizador de uma economia viva e em movimento. Pelo menos se descontarmos o peso dos hidrocarbonetos, um domínio no qual se sente na Noruega alguns sintomas localizados de uma Dutch disease que cá é bem mais pandémica que essa resource curse tão especial que se manifesta no nosso aliado do norte.

Vários indícios há, graças a Deus, de que as coisas aqui estão a mudar. Hoje, Portugal começa de novo a olhar para a sua geografia tão iminentemente marítima como a dos noruegueses, e cada vez mais aparecem vozes que insistem que procuremos tirar proveito da nossa posição atlântica. Fazemo-lo com o intuito de colmatar algumas das vulnerabilidades inerentes à posição periférica que estamos conscientes ter no contexto europeu. Tal como a Noruega, sublinhe-se. Note-se, no entanto, que o não fazemos pelo interesse do mar em si mesmo, mas por exclusão de partes. É sobretudo isto o que tem de mudar. Para que o país consiga tirar proveito do mar que tem como vizinho a oeste e a sul, é fundamental que efectuemos apostas bem sustentadas na investigação e desenvolvimento científico-tecnológico, no domínio das ciências do mar e nos da sua governação. Nas enseadas e nos fiordes noruegueses desde há muito se percebeu que nas montanhas que estão por detrás e ao redor há menos do no mar em frente. Tal como nós, os noruegueses desde cedo saíram para o mar. E nunca o deixaram, ao contrário dos portugueses. O lugar estrutural dos hidrocarbonetos deles é o que a nossa expansão teve. Recordemo-la, mesmo que para outras pescas, buscas e ambições.

A complementaridade é evidente, e por isso a Noruega deve ser assumida como um parceiro importante, tendo em vista a forte tradição dos noruegueses nesta área. Paremos, escutemos, e olhemos.

Ao invés de uma Noruega que vai nisso à frente, em Portugal exibimos lacunas ao nível da inovação nas áreas da economia do mar, estando nós ainda longe da reorientação imprescindível dos centros do conhecimento e de investigação científica marinha, de modo a que estes gizem e gerem as mudanças necessárias. Eis aqui uma frente óbvia: a promoção de seminários com a participação de cientistas e investigadores dos dois países pode constituir-se como um elemento facilitador da desejável transferência de saberes e sabedorias que perdemos – e assim saibamos aprender a reorientar a capacidade alojada nas nossas universidades para a produção de riqueza. Desenganem-se os que desesperam e baixam os braços em desalento. Um só exemplo basta para o por em evidência. O apoio de projetos de investigação na área da biotecnologia marinha é um dos campos em que as possibilidades de cooperação são desejáveis dadas as perspetivas de um retorno económico assinalável e muitas vezes obtenível a curto prazo. Temos, como a Noruega tem, um “supermercado natural” à nossa frente. Atesta-o o aumento exponencial de patentes sobre recursos biogenéticos marinhos à beira mar plantados, cá verificado nos últimos anos.

E vários outras frentes de entrosamento de interesses há. Estando Portugal a desenvolver esforços assinaláveis ao nível da prospeção e pesquisa de petróleo no deep e ultradeep offshore da ZEE do continente, estes seriam outros dos sectores em que a cooperação com a Noruega promete. Mais ainda: tendo sempre presente o objetivo de promoção de um desenvolvimento que seja sustentável, o domínio das energias renováveis constitui outro campo de eventual cooperação entre os dois países. Aqui a direção das mais-valias a haver vê-se invertida: neste caso, a Noruega poderia beneficiar das condições meteo-oceanográficas favoráveis da costa portuguesa para o desenvolvimento de produtos inovadores nesta área.

Mas levantemos mais alto os olhos, baixando a cabeça. Em resultado do projecto de extensão da plataforma continental que Portugal está a desenvolver, as possibilidades de parceria no campo da mineração do mar profundo são outra área em que Portugal poderia beneficiar da capacidade residente na Noruega. Vislumbremos mais longe, como os que nos precederam souberam fazer: estando a Noruega a cooperar no desenvolvimento do projeto de extensão da plataforma continental de diversos países africanos, alguns dos quais de língua oficial portuguesa, também aqui há possibilidades de cooperação; uma cooperação em que podemos servir de facilitadores e/ou pivots. Vejamo-lo em termos dinâmicos e no menos curto prazo: uma vez terminada a fase inicial de recolha de dados os projetos neste âmbito entram numa nova fase na qual decisões políticas são fundamentais para um desenvolvimento adequado das nossas pretensões recíprocas. Neste tabuleiro maior Portugal pode constituir-se como um interlocutor privilegiado, fruto das boas relações que mantém com os países africanos de língua oficial portuguesa.

O jogo bilateral é de soma positiva: damos com uma mão, recebemos com a outra; os noruegueses também. A receita promete mundos e fundos. Antes consigamos levar isto a bom porto. Por uma vez, pensemos com paixão e tento. As gerações futuras não nos vão julgar só pelo que fizemos sozinhos. Julgar-nos-ão também pela maneira como nos tivermos sabido posicionar face a oportunidades que não aparecem todos os dias. Devemo-lo aos nossos filhos e a todos os portugueses que ainda não nasceram.



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