Afundar navios também pode ser uma forma de preservação da natureza, por mais estranhos que sejam os caminhos percorridos para aí chegar

Conheci o projecto Ocean Revival – que visou o afundamento programado de quatro navios descomissionados da Armada Portuguesa para fins turísticos no algarve – em 2010, quando o promotor o apresentou numa conferência. Primeiro estranhei-o, seguramente por não estar muito por dentro do grupo de mergulhadores que corre mundo à procura destas estruturas para delas usufruir como paisagens humanizadas submersas, mas rapidamente o entranhei, quando me inteirei dos cuidados ambientais que o norteavam e da sua potencialidade em captar para o Algarve um segmento turístico muito interessante, contrariando a sazonalidade do sector na região. Além disso, como biólogo marinho, em boa hora me apercebi que era uma oportunidade única para estudar a sucessão das comunidades biológicas que se iriam fixar nas estruturas, aproveitando a fase de preparação à superfície para tornar este processo mais fácil e mais eficaz.

Um desafio como estes, levantou naturalmente muitas dúvidas, quer das autoridades responsáveis pelas várias fases de licenciamento, quer de alguns membros da sociedade civil, tendo eu acompanhado com mais cuidado os argumentos relativos à preocupação com a defesa do meio ambiente. Não sendo o projecto Ocean Revival, um projecto de conservação da natureza, destaco a preocupação com esta área, tendo sido feito um estudo de implementação prévio e uma análise de incidências ambientais por entidades diferentes, os quais, associados a todo o processo de limpeza e preparação das estruturas, fazem que este projecto seja exemplar em todo o mundo. Por agora, prossegue um programa de monitorização da biodiversidade que por lá se vai instalando, desafio esse que tenho o privilégio de coordenar.

Como já escrevi há tempos, Será um navio obsoleto fatalmente um resíduo? Uma das máximas ambientais da reciclagem é «Reduzir, Reutilizar e só depois Reciclar». Se assim for, não será o afundamento destes navios uma reutilização com outros fins? Turísticos, sobretudo, e como consequência económicos, para uma região que pede projectos estruturantes e não sazonais como do pão para a boca. Estou em crer que sim.

Além disso, a história associada a estes navios não se perde como se perderia com o seu desmantelamento. O museu de Portimão dedica uma área ao projecto, guardando intactas algumas peças retiradas às estruturas antes do afundamento, perpetuando a sua memória e a dos seus patronos.

Mais de dois anos volvidos desde o afundamento das duas primeiras estruturas (30 de Outubro de 2012), o parque Ocean Revival continua a ganhar vidas: digo vidas de propósito. Ganha vida a actividade de mergulho recreativo no Algarve, com um número de mergulhadores em crescimento exponencial, ganha vida a economia local, com a criação de empregos não sazonais ligados à actividade e ganham vida as próprias estruturas, com milhares de gorgónias, anémonas, mexilhões e peixes que nela encontraram refúgio.

Não tenho os dados na mão para apresentar as contas, mas estou convencido de que o dinheiro que o estado não ganhou ao ter optado por ceder as estruturas à Câmara Municipal de Portimão, em lugar de as ter vendido para a sucata, já está ou estará muito próximo de ser recuperado em impostos das actividades económicas que o projecto criou. Fica o desafio para quem puder apresentar esses resultados, e que esta abordagem sirva de lição para novos desafios relativos aos novos usos do mar.

Porque afundamos navios? Porque entendemos que é nossa obrigação fazer o melhor uso possível do património que é de todos, dando novas funcionalidades a tudo aquilo que, tendo cumprido a sua primeira missão, pode continuar a ser aproveitado em novamente em prol de todos. Esteja assegurado o património natural, como foi o caso, e só teremos a ganhar com mais ideias destas. Tenhamos para tal a capacidade de ouvir quem ousa pensar mais além.



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