O risco de potenciais confrontos navais diretos, assunto que dominou o pensamento dos estrategas navais durante a Guerra Fria, reduziu-se drasticamente com o desmoronamento do Bloco Soviético, mas a esse desfecho não correspondeu a esperada melhoria da situação geral de segurança no domínio marítimo.

Por um lado, parte da rivalidade que dominou esse período, parece estar de regresso, ainda que sob contornos diferentes, e com um novo ator de peso – a China. Por outro lado, o processo de globalização, que em termos económicos se foi desenvolvendo em estreita ligação com o uso do mar – como o meio privilegiado para as trocas comerciais – facilitou um contexto em que a utilização livre e segura do mar está bem menos garantida do que estava no passado. Esta nova situação criou um risco para a estabilidade económica de que o mundo precisa para haver crescimento e progresso.

Em resultado desta alteração, o âmbito da segurança marítima, até então centrado nas vertentes tradicionais de defesa da fronteira marítima, de projeção de poder e de influência internacional, estendeu-se a diversos outros campos. Nomeadamente, o do combate a uma variedade grande de utilizações ilícitas do mar (pirataria, terrorismo, tráfico de pessoas e materiais ilegais, pesca proibida, etc.) com repercussões negativas (sociais, políticas, económicas, etc.) nas nossas sociedades. E, ainda, várias situações de instabilidade provocadas por interpretações controversas dos direitos dos estados costeiros nas respetivas Zonas Económicas Exclusivas (ZEE) e Plataformas Continentais (PC), muitas das quais têm grande probabilidade de não se desenvolverem de forma pacífica, principalmente as que tiverem ligação com a exploração de recursos energéticos.

A falta de previsibilidade desta evolução, a redução, pós Guerra Fria,  da presença naval que se verificou em especial por parte dos EUA e seus aliados e a impreparação de muitos estados costeiros, em várias regiões do mundo, para lidar com os desafios nas suas novas áreas marítimas de responsabilidade – vulnerabilidade que tarda a ser resolvida –  estão a obrigar a rever o papel das marinhas como principal garante da segurança das trocas comerciais por via marítima, de que depende quase totalmente o sucesso da globalização.

Entre vários aspetos a ter em atenção na procura de respostas a estes desafios, um que será sempre central é organizar uma fórmula de cooperação internacional que evite, ou pelo menos reduza, o impacto do que o ecologista Garrett Hardin designou por “Tragedy of the Commons”, em que mar é visto como espaço usado por todos, mas não pertencente a nenhum. Um espaço de cujos recursos e utilização todos beneficiam, mas de que nenhum é responsável, o que pode levar à destruição das suas potencialidades.

Mais genericamente, em termos de segurança, vive-se uma situação com poucos pontos comuns com o passado. Ao contrário do que então acontecia, vemo-nos obrigados a pensar mais em termos de riscos do que em ameaças e ter em conta que estas tornaram-se mais difusas, ambíguas e difíceis de antecipar.

A diferença é importante. A estratégia passou, assim, a ser definida, não só apenas pelas mudanças na natureza do contexto de segurança, mas também e em grande parte, pelas necessidades de proteção dos interesses económicos que haja que preservar no domínio marítimo, num tipo de relacionamento do poder naval com o funcionamento da economia que se tornou muito mais estreito e interligado.

Nestas circunstâncias, o papel e importância dos estados costeiros continuará a valorizar-se assumindo um relevo de que andaram arredados no período da confrontação bipolar. Os que não assumirem, deliberadamente ou por incapacidade, a condição de potência costeira,[1] não se mostrando à altura dos novos desafios, verão terceiros chamar a si as respetivas responsabilidades e, concomitantemente, usufruir os correspondentes benefícios, perdendo a soberania que deveriam preservar. Eventuais défices de preparação (científica, técnica, empresarial, securitária, etc.) para tirar partido das potencialidades geradas pelo alargamento dos espaços marítimos sob soberania e jurisdição nacional precisam de ser encarados com antecipação na procura de soluções práticas, eventualmente parcerias, onde necessário. Temos que ter em atenção que, no exterior, os investimentos em investigação, que estão a ser feitos mesmo por países com reduzida área marítima de exploração atribuída, não deixarão, certamente, de ser utilizados onde quer que haja uma oportunidade, mesmo quando não devidamente suportada pelo direito internacional.


[1] Ver artigo publicado neste mesmo jornal em 15 de junho.

(Extrato adaptado do capítulo 2 – “O poder naval no século XXI” – do livro “As marinhas na defesa dos interesses nacionais. O caso português”, edição da Comissão Cultural da Marinha)



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