Enquanto os poetas dizem o mar que nos fala, na interlocução do homem com o mar este torna-se um espelho que amplifica quer a nossa sensibilidade, quer as nossas tragédias mais fundas. Considerando a mole imensa do mar o homem é disposto descentradamente, seja por via da sua contemplação elemental e paisagística que nos dispersa e extasia, seja na produção estética dos nossos sofrimentos e tragédias. Pois o mar tem um pulsar e uma enormidade transcendente à dimensão humana. Acolhe ecos pessoais: salgado, amargo, queixoso, irado, bailarina. Mas não só, outros aspetos também como sepulcral, abismal, sombra perene, intemporal. É também lugar de maravilhoso, brilho, númen, que referem planos de existência tocando e transbordando a condição humana.

A voz e modo do mar tendem a apresentar-se poeticamente em dualidade, nos extremos do sentimento, no êxtase estético ou na dor sentimental ou moral (mas passando pela náusea da necessidade e pelo constante sofrimento – imagem de nossas ânsias). É sobretudo sob o aspeto do sofrimento constante que aqui interpretamos a voz do mar concentrando-nos por ora em Teixeira de Pascoaes.

A voz do mar representa, no seu bramir e marulhar, o continuado sofrimento humano, e o seu derivado lamento:

 

Homem, eu bem conheço o eterno sofrimento!

Em nuvens, sobe ao céu meu constante lamento…

Teixeira de Pascoaes (Assírio & Alvim, 1998-1904)

 

Ou representando a dor e amargura que acompanha esse sofrimento nos dramas humanos:

 

Quem conhece, como eu, a tua grande dor?

Lágrimas de tristeza e lágrimas d’amor.

Nas minhas ondas sinto o vosso sal amargo!

Teixeira de Pascoaes (Assírio & Alvim, 1998-1904)

 

Todavia, além das desgraças humanas, das paixões salgadas e amargas, das tristezas que pontuam o trilho da vida humana, também existem, mais fundas, a tragédia e o mistério da vida e da morte – o humano naufrágio:

 

(…) há sepulcros também neste meu peito largo,

Insondável… Eu tenho a ciência do Mistério

Que há só no livro sepulcral dum cemitério ! (…)

Teixeira de Pascoaes (Assírio & Alvim, 1998-1904)

 

Para Pascoaes, essa tenção na voz do mar é reapresentado pela figura de Prometeu, que, como o homem, é agrilhoado constantemente ao sofrimento e à tragédia,

 

Ninguém como eu conhece o sofrimento humano.

Eu, o mártir sem nome, o ensanguentado Oceano,

Um outro Prometeu…

Teixeira de Pascoaes (Assírio & Alvim, 1998-1904)

 

Contudo, condenado e revoltado contra seus limites, como na tragédia de Ésquilo – Prometeu –, o mar lembra o homem que agrilhoado concebe perspetivas ulteriores à sua condição, procurando ultrapassá-la, e assim vive a expetativa quase desesperada da libertação, uma expetativa quiçá saudosa do futuro. Pelas palavras de António Botto essa  voz acompanha os mais doces, verdadeiros e misteriosos enleios humanos:

 

(…) Voz do mar, mysteriosa;
Voz do amôr e da verdade!
– Ó voz moribunda e dôce
Da minha grande Saudade!
(…)

António Botto (Presença, 19991941)

 

Mas partilhando essa privação em vida, essa escassez de plenitude, da qual sempre nos procuramos desprender por ilusão ou por promessa, as sonoridades e movimentos do mar permitem semelhanças humanas, com o choro e riso, alegria e tristeza, as limitações do homem, guardando contudo a sua tragédia mortal:

 

Eu hontem passei o dia
Ouvindo o que o mar dizia.
Chorámos, rimos, cantámos.
Fallou-me do seu destino,
Do seu fado…
Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Poz-se a cantar
Um canto molhádo e lindo.
O seu halito perfuma,
E o seu perfume faz mal!
Deserto de aguas sem fim.
Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?…
(…)

António Botto (Presença, 19991941)
Representa o mar poeticamente a mágoa, a rebeldia, a fúria e a ânsia, o desejo ardente e seu desespero, contido pelas duras fragas, e nisto constituindo para o homem imagem de seus modos limitados, de seu fado, desventura e término:

 

Já que o sol pouco a pouco se desmaia
E meu mal cada vez mais se desvela,
Enquanto a pena, a ânsia, a mágoa vela,
Quero aqui estar sozinho nesta praia.

Que bravo o mar se vê! Como se ensaia
Na fúria e contra os ares se rebela!
Como se enrola! Como se encapela!
Parece quer sair da sua raia.

Mas também que inflexível, que constante
Aquela penha está à força dura
De tanto assalto e horror perseverante!

Ó empolado mar, penha segura,
Sois a imagem mais própria e semelhante
De meu fado e da minha desventura.

Francisco de Pina de Melo (Of. Joseph Antunes da Sylva, 1727)

 

Na poesia de Alexandre Herculano revela-se sobretudo a acentuada dualidade do mar, entre o sonho simples e puro ou o terror que suscitam as águas marítimas. Uma dualidade que nos surpreende assustando-nos, pois ainda agora era o mar manso e resplandecente, e logo depois é furioso e intemperado. Junto ao mar folga o poeta e medita numa paz de sonhos bendizendo seu estado:

 É tão suave ess’hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a Lua
Das ondas a ardentia,

Se em alcantis marinhos,
Nas rochas assentado,
O trovador medita
Em sonhos enleado!

O mar azul se encrespa
Coa vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.

E tudo em roda cala
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso
Quebrando em furna algosa.

Ali folga o poeta
Nos desvarios seus,
E nessa paz que o cerca
Bendiz a mão de Deus. (…)

Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)

 

Mas, de seguida, já a núvem que nos céus negra flutua cresce, e o vento varre a fraga nua com hórrido clamor, e os vagalhões nas arribas expiram furor. Ao poeta cobre-lhe o véu de tristeza, calou-se em seu hino à natureza e por seu sentimento voga em negruras o pensamento,

 (…) despregou seu grito
A alcíone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no ocidente:

E sobe, e cresce, e imensa
Nos céus negra flutua,
E o vento das procelas
Já varre a fraga nua.

Turba-se o vasto oceano,
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas
Expira o vão furor,

E do poeta a fronte
Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio,
Seu hino à natureza.

Pela alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcíone ao gemido,
Ao sibilar do vento.


Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)

 

Mas não há motivo a queixume pelas procelas, nem pelo roubo de miríades de estrelas que as núvens densas apagam, nem pelo estourar dos bramidos poderosos. Diz o mar:

«Cantor, esse queixume
Da núncia das procelas,
E as nuvens, que te roubam
Miríades de estrelas,

E o frémito dos euros [ventos de leste],
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga,

Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Enquanto do éter puro
Descia o Sol radioso.

 Tipo da vida do homêm,
É do universo a vida:
Depois do afã repouso,
Depois da paz a lida.

Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)

 

Procurando a analogia com o humano, para depois permitir-se, pela semelhança insinuada, correlacionar o seu ser desmedido ser ao homem, adianta ainda mais a voz do mar:


Se ergueste a Deus um hino
Em dias de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,

Seu nome não maldigas
Quando se turba o mar (…)

a causa
Disso o universo ignora,
E mudo está. O nume,
Como o universo, adora!»
(…)
Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)

 

Mas não é da intenção humana vogar entre os elementos, nem conceder o ser perante o horror ou adorar a natureza em seus portentos ou idílica mansidão. Por isto blasfema a voz que intenta que o homem se incline a essas formas. Responde o poeta ao mar, sustentando a dignidade humana:


(…) torva blasfémia
Não manchará seu canto!
Brama a procela embora;
Pese sobre ele o espanto;

Que de sua harpa os hinos
Derramará contente
Aos pés de Deus, qual óleo
Do nardo recendente.

Alexandre Herculano (Europa-América, 1986-1838)

 

Não está, pois, nesses excessos propostos pelo mar, o modo em que se proporciona a medida humana. Além e apesar de tão ríspidas dualidades e por tão diversos pareceres, sob o peso do espanto procura o homem encontrar sua medida e sua pertença, todavia, sem a grandiosa representação marítima, mas por nossa vontade, sensibilidade e inteligência, potências capazes de nos realizar autónomos dos elementos resplandecentes ou em fúria, e autónomos das enormidades materiais ou morais.

Miguel Torga também propicia-nos uma exposição desta dramática dualidade do mar, entre a dimensão do fechado e do aberto, mas que nos distingue de sua natureza anfibológica, a ambiguidade desesperada de um mar encerrado nos seus limites. Por um lado, referindo os naúfragos, todos, estão estes de sombra tecidos e em sombra soterrados no coração ciumento de um mar fechado que os encerra, representando o bojo da morte, por outro lado mostra um mar que pode ser aberto e descoberto «Com bússulas e gritos de gajeiro!», como a vida, se subtraída às dualidades dos acessos de fúria e desespero e aos momentâneos idílios, mas conhecendo o operativo mar, esse modo «(…) salgado, lírico, coberto/ De lágrima, iodo e nevoeiro!». Ouçamos o poeta:

 

Soterrados em verde, negro e vago,

Nenhum sol os aquece.

Habitantes do lago

Do esquecimento, só a sombra os tece…

 

Ela que és tu, anónimo oceano,

Coração ciumento e namorado!

Ela que és tu, arfar viril e plano,

Largo como um braço descuidado!

 

Tu, mar fechado, aberto e descoberto

Com bússulas e gritos de gajeiro!

Tu, mar salgado, lírico, coberto

De lágrima, iodo e nevoeiro!

 

Miguel Torga (Tip. Gráf. de Coimbra, 1978-1946)



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