Noutro número das Farpas lembrámos, a respeito das colónias, este grande melhoramento – vendê-las! Ocorre-nos outro ainda maior a respeito da Índia – dá-la!
Os muitos assinantes, compradores e leitores de As Farpas, não deixaram de ficar perplexos, e magoados, quando leram o número de Setembro de 1871 da revista, e aquele texto assinado por José Maria Eça de Queirós.
As Farpas foram um projeto conjunto de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão com uma participação muito diferente de ambos. As Farpas de Eça são escritas essencialmente durante aquele ano, e correspondem à fase iconoclasta, quase terrorista, de Eça, com um humor desenfreado, que o grande escritor iria controlar no futuro, para delícia dos leitores apaixonados do mundo inteiro.
Ramalho prolonga as Farpas até 1882, e depois prolonga-as de forma irregular por alguns anos mais, com um conteúdo e um propósito muito diferente das do pobre homem da Póvoa do Varzim. São doutorais, didáticas, quase doutrinais. Ensinam a sulfatar um pomar, a conjugar a gravata com as peúgas, e descrevem a paisagem da Flandres.
A colaboração de Eça de Queirós em As Farpas, foi recolhida num volume autónomo da obra do escritor, intitulado Uma Campanha Alegre, sucessivamente editado até aos nossos dias. E claro que podemos ler aqui a malfadada Farpa de Setembro de 1871.
Na segunda metade do século XIX, a população portuguesa estava profundamente dividida; uma grande parte não queria saber das colónias, para coisa alguma. Mas da outra parte, os civis eram republicanos e os militares eram monárquicos.
A divisão assentava também muito na crença de que a salvação da Pátria seria feita por uma de duas vias, assim Portugal se virasse para a Europa ou para as colónias.
A primeira via é fortemente suportada pelos meios intelectuais, nomeadamente da denominada geração de setenta, e a segunda pelos militares, nomeadamente os denominados africanistas.
José Maria Eça de Queirós estava perfeitamente engajado na geração de setenta, cujo mentor talvez tenha sido Antero de Quental.
Os africanistas, tinham como guia e modelo, Joaquim Mouzinho de Albuquerque.
Sabemos perfeitamente o que é que aconteceu aos dois movimentos e às duas personagens.
Com o intervalo de alguns anos, Antero, em 1891, meteu uma bala na cabeça num banco de jardim em Ponta Delgada, no Campo de S.Francisco, numa rua pacata onde por cima do banco se podia ler a palavra Esperança, vinda do Convento de Nossa Senhora da Esperança, que ficava perto. E Mouzinho fez o mesmo, pouco depois, em 1902, dentro de um coupé, na Estrada das Laranjeiras.
Mas a Índia resistiu a tudo isto.
A nossa Índia. A nossa Índia foi a causa e o efeito das descobertas e da expansão ultramarina. Foi para chegarmos lá pelo caminho marítimo, que fomos desbravando mares locais, dobrando cabos e descobrindo terras. Inclusivamente o Brasil.
A leitura da história da chegada à Índia por mar, e do programa Apollo, que iria levar o primeiro homem à Lua, revela uma similitude impressionante entre as duas epopeias, afastadas de quinhentos anos, assente sobretudo na programação de etapas dotadas de objetivos, e no cumprimento gradual destes.
O avanço sucessivo, no grande mar, primeiro no Atlântico e depois no Indico, rumo à Índia, e na grande noite sideral rumo à Lua, fez-se de missões sucessivas, cada uma delas cada vez mais longe, ou com objetivos mais ambiciosos, com datas certas de realização, até poder ser marcada a data da concretização do objetivo final.
Quando Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança, em 1488, nada impedia já a chegada à Índia. Mas o grande marinheiro para além do motim que teve que enfrentar já com o cabo dobrado, ao que tudo indica tinha instruções para regressar. Tinha cumprido extraordinariamente a sua missão, e tinha estado mais perto de chegar à Índia por mar do que algum outro europeu alguma vez, mas não era aquela a altura, nem seria ele a fazê-lo.
Quando tudo foi cumprido conforme programado, coube ao marinheiro Neil Armstrong, pisar a Lua no dia vinte de Julho de mil novecentos e sessenta e nove, como tinha cabido ao marinheiro Vasco da Gama chegar a Calecute, no dia vinte de Maio de mil quatrocentos e noventa e oito.
Portugal ia ficar na Índia até 1961, numa altura em que uma deficiente política colonial defendida pelo governo português da altura, levou à anexação dos nossos territórios por parte da União Indiana.
Algum tempo antes, em 1947, o Sub-Continente indiano tinha sido descolonizado por parte dos ingleses. Tinha começado por ali o grande movimento da descolonização que caracterizou o século XX (os outros grandes marcos do século foram o cinema e a televisão, a revolução de Outubro na Rússia, a psicanálise e a informática), que levou dezenas de novas bandeiras a serem hasteadas nos mastros do edifício das Nações Unidas, e concluído por Portugal em 1975.
A descolonização tinha que começar pela Ásia, no rescaldo da segunda guerra mundial, porque foi aí precisamente que começou a derrota do ocidente cristão, ou do homem branco, às mãos dos povos locais. Com a queda vergonhosa (nas palavras do próprio Winston Churchill) da soberania britânica em Singapura para o domínio dos japoneses.
A partir daquele momento sabia-se que os colonizadores, para além de não terem razão, tinham deixado de ter força.
A Inglaterra percecionou muitíssimo bem o mundo novo que ia nascer na segunda metade do século, e tratou de acelerar a descolonização do seu vasto império, enquanto podia controlar o processo, e enquanto o podia fazer sem conflitos militares. A França e Portugal optaram por outra política, e colheram os dissabores da mesma.
Em oito (oito!) meses, a juntar ao muito entretanto já feito, do dia 1 de Janeiro a 14 de Agosto de 1947, sob a chefia do Primeiro Ministro Clement Attlee, em Londres, e do último Vice-Rei da Índia, Lorde Louis Mountbatten, no terreno, o governo inglês descolonizou não um país imenso, como estava inicialmente pensado, mas dois, a Índia e o Paquistão, para grande tristeza do Mahatma Gandhi que nunca concordou com a separação e foi assassinado por causa dela, única forma de amenizar o ódio instalado há séculos entre hindus e muçulmanos.
No dia catorze, em Nova Deli, ao toque da meia noite, quando os homens estiverem a dormir, a Índia acordará para a vida e para a liberdade, nas palavras do discurso do grande artífice do processo, o primeiro ministro indiano Jawaharlal Nehru.
Horas antes, Mountbatten em nome do seu primo, o Rei Jorge VI, o último Imperador da Índia (ambos, os Mountbatem e os Windsor, tinham sido obrigados anos antes a adotarem estes apelidos por troca com os seus ancestrais nomes germânicos), tinha dado em Carachi, e a Mohammed Ali Jinnah, a independência ao Paquistão.
Portugal assistiu a isto tudo através das imagens dos noticiários cinematográficos, que antecediam a projeção dos filmes nas salas elegantes de Lisboa, e achou que tudo se passava na face oculta da Lua, e nada disto lhe dizia respeito.
A nossa presença de cinco séculos, foi feita num formato singular, que Portugal não voltou a repetir na sua arquitetura colonial e ultramarina, e que consistiu na fixação exclusiva no litoral, sem o propósito de penetração para o interior do território.
Uma série de fatores, entre os quais avultou a forte oposição das forças locais a qualquer nossa aventura de aumentar para o interior a área dos territórios, coisa que não aconteceu por exemplo no Brasil, em Angola e Moçambique, fez com que o grande território da nossa Índia fosse o mar, e não obstante o esplendor que Goa chegou a alcançar nos séculos XVI e XVII.
De uma forma patriótica, responsável e inteligente, os sucessivos governos contemporâneos portugueses, com a extraordinária ação da Fundação Calouste Gulbenkian, têm vindo a estabelecer e reforçar os laços com a Índia, permitindo que não se hipotequem com desavenças episódicas todo um passado em comum, alicerçado ainda hoje no estatuto privilegiado, sobretudo cultural e religioso, que os descendentes dos portugueses gozam no seio do multiculturalismo da União Indiana.
Era muito interessante que este estado de coisas, se estendesse às trocas comerciais entre os dois países, se possível através de uma boa estrutura portuária a construir nos nossos antigos territórios de Goa, Damão e Diu, numa parceria entre os dois países, e servindo o intercâmbio entre ambos.
O relacionamento amoroso e afetivo que nos une à Índia, para grande contentamento, voltou a incluir o nosso maior escritor, porque quando anos mais tarde, Eça de Queirós, sempre apoquentado por questões monetárias aceita o convite para uma reedição das suas As Farpas, agrupadas agora em Uma Campanha Alegre, confessa por carta de 24 de Outubro de 1890, de Paris, ao amigo e parceiro Ramalho Ortigão:
São uma coleção de pilhérias envelhecidas que não valem o papel em que estão impressas. Estou hoje tão longe delas, e do estado de espírito que as inspirou – que já quase as não compreendo, e portanto, de modo algum as defendo.
Afinal, a Índia não era para oferecer.