Portugal – Brasil, um mar fadado ao sucesso(r)?

“Mais duro e complicado é que eu lhe dê a minha opinião sobre o seu Brasil… e V. menos céptico que Pilatos, exige a verdade, a nua Verdade, sem chauvinismos e sem enfeites… Onde a tenho eu, a Verdade? (…) Só lhe posso comunicar uma impressão de homem que passou e olhou. E a minha impressão é que os brasileiros, desde o Imperador ao trabalhador, andam a desfazer e, portanto, a estragar o Brasil…”

Assim escreveu Eça de Queirós, em sua Carta do Brasil (1888), ele estava em Paris, e, se ele se escondeu no heterônimo coletivo Fradique Mendes, talvez por ser o assunto muito cabeludo, por que eu não poderia começar, me defendendo antecipadamente também, ecoando as suas palavras? Dito isto, eu cravo, o Brasil continua estragado, talvez fadado ao seu sucessor, o Brasil de amanhã, uma vez dito o país do futuro, neste caso tal futuro parece nunca chegar. À deriva, se distanciando cada vez mais de Portugal.

No que tange a Economia do Mar, se é que haja algo que o mar jamais tangencie, tenho a impressão de que cavamos um buraco oceânico entre as nossas culturas, entre o descobridor e o colonizado (índio, caboclo, escravo e degredado), entre o povo independente e o imperador europeu, lusitano. É até possível que, em alguns momentos, falemos a mesma língua sem entender patavina o que um e outro quer dizer.

Do meio do Atlântico, mais precisamente onde as gêmeas correntes marítimas de Santa Helena quase se tocam, numa faixa estreita de águas internacionais fronteiriças às ditas ZEE (Zonas Económica Exclusiva) dos dois países irmãos de sangue, eu contemplo os horizontes, ora aonde o sol nasce, ora aonde o sol se põe, aliás aproveito para lembrar do primeiro romance de Ernest Hemingway de quem sou diletante estudioso. Hemingway, membro do clube da Geração Perdida, fundado por Gertrude Stein, Ezra Pound, Pablo Picasso e F. Fitzgerald, entre outros notáveis que ambicionavam mudar o mundo mas nada faziam de concreto, utilizou dois personagens representando aquela geração, colocou um título em cima e escreveu (1926) O Sol Nasce Sempre, assim dito em Portugal, O Sol Também se Levanta, traduzido no Brasil do original The Sun Also Rises. E aquela geração perdida estava infectada de ironia e por um vazio diante da vida, cujos valores morais, destruídos pela primeira guerra, e talvez por uma demanda reprimida, luxúria pouca era bobagem, valores que poderiam muito bem ser comparados com os de hoje. Ou seja, nada teria mudado. E por que então haveria de mudar entre o Brasil e Portugal, se o mundo todo parece ter embarcado naquele trem com destino incerto?

Identidade Marítima

A comparação é boa. Brasil e Portugal parecem ocupar vagões desse trem paulatinamente colocados para trás a medida que a viagem avança.  E continuam apartados, parecendo um casal tímido. Do Brasil, se tem a impressão de que tudo é melhor em Portugal, mas se ouve tanta reclamação de portugueses com o que passa do Algarve ao Porto; um desavisado e precipitado pode pensar que os portugueses não gostam de portugueses. Enquanto ouço em Portugal que o Brasil ainda é visto como uma terra promissora, inesgotável, mas garanto, Eça escreveria a mesma carta hoje, incluiria palavrões e eu repetiria tudo em letras garrafais. Na minha santa ingenuidade prefiro acreditar que, assim como falta ao brasileiro a “mentalidade marítima”, até hoje de costas para o mar, empurrado que foi (pelos portugueses e ingleses) para o interior, ao português carece resgatar a sua “identidade marítima”; trata-se de um tesouro de Portugal, ninguém pode lhe privar desse tesouro a não ser o próprio português. É mesmo um bem instalado na sua alma que deveria refletir nos olhos, e nos atos do dia a dia.

A notícia boa é que não há um buraco entre o Brasil e Portugal. Há mesmo um mar de oportunidades; sem medo de abusar de um trocadilho barato. É claro, é preciso imaginar que os políticos venais e os lobistas imediatistas não existam. Fazendo de conta que isso seja possível, este observador faz um convite: aceitar que atingimos a menarca da era fractal dos processos estocásticos. Tudo é miúdo e complexo, e pode provocar uma ignição aleatória, por exemplo, a partir de um evento aparentemente isolado (dos “memes” aos “hashtags”, das opiniões de grupos minoritários a questões ditas “raciais” ou “religiosas”, que frequentemente não são no íntimo nem uma nem outra, ou de “gênero” que hoje em dia podem ser listados às centenas, para nosso delírio). E, se isso é provável em alguma área, por um silogismo simplório, poderá impactar o todo, mais cedo ou mais tarde.

Sem perder de vista que estamos falando de alto mar, adicione-se aí o conceito de “Responsabilidade Solidária”, na acepção jurídica do termo; por exemplo, numa pendenga litigiosa de questionável avaria grossa onde entre quatro mil contentores há pelo menos cinco partes envolvidas judicialmente e em vários países ao mesmo tempo, sem falar da agressão ao próprio mar? Somemos o conceito de “Ambiente Total” (posto que a definição de “meio” ambiente faliu) desde o usufruto das riquezas inumanas da natureza à ecologia do ser. Ou vamos escolher o reducionismo de pensar o mar isolado de tudo, mar por si só e ponto? A propósito, não são as águas do mar a maior parte da superfície do planeta Terra? Pior ainda, vamos enfiar a cabeça no chão e pensar cada segmento de mercado, cada setor produtivo, cada fatia social, cada país, isoladamente? No caso particular de Portugal, está prestes a possuir mais água de mar do que terra, com a consolidação da sua plataforma continental.

Pausa para um mergulho em pleno mar: num corte transversal curto e seco, até meados do século XX, os fisiocratas viam na terra e nos elementos da natureza a fonte dos valores dos bens, e os clássicos (de Adam Smith a Marx) defendiam que o valor era criado com o trabalho. Então surgiu Schumpeter, não por acaso em plena consolidação do império de Rockfeller, que chegou a refinar 90% de todo o petróleo mundial, pela Standard Oil. Até aqui, os neoclássicos defendiam que o valor se cristalizava nos preços, que por sua vez eram identificados precisamente nas curvas de oferta e demanda, tendendo a se auto equilibrarem. Assim, o valor migra do processo produtivo (nos clássicos), para o mercado (nos neoclássicos). Nada nunca foi por acaso, o mundo passou a girar cada vez mais rápido e Schumpeter vem com a teoria do fluxo circular (ciclos econômicos). E a valorização em função da concorrência, não a concorrência de preços, mas de novas mercadorias, técnicas, fontes de suprimento, excelência. Ele penetra na indústria para constatar que a “inovação” pode criar “valor” e insere outro plano na discussão: o da socialização do progresso técnico, da valorização do processo produtivo no seio das empresas. A cadeia de “valor” é dissecada com amplitude no âmbito do transporte marítimo aqui mesmo no Jornal da Economia do Mar por Jorge D´Almeida .

Enquanto civilização, passamos por duas Guerras Mundiais, depois embarcamos na segunda fase da industrialização, em seguida na antessala da globalização, nos espalhamos pelo mundo como nunca na história, e, sem termos assimilado o que é pensar “global” e agir “local”, emergimos atabalhoadamente na era da conexão e transferência de dados digitais ambicionando clicar numa tela e nunca mais trabalhar na vida. Ou, vá lá, fazer o que se gosta. Nem isso.

Se pudéssemos aferir qual foi o maior estrondo, ou o esguicho histórico que jorrou mais alto no prelúdio da época do “chão de fábrica” (de Ford, Taylor e Fayol), talvez tenha sido o palavrão “standardization”, atrelado ou motor da proliferação das agências internacionais, ninho de processos decisórios. Por isso, acho engraçado que ainda estejamos enredados nos chamados “marcos regulatórios”. Aviso aos navegantes: o brasileiro começou a utilizar a palavra “compliance” somente na semana passada, com meio século de atraso, até então não se preocupava em “compliance” com nada, tampouco “padronizar” qualquer coisa.  Por falar nisso, em Pindorama, há até hoje um equívoco subjacente entre “educação” e “formação”, e o modelo de ensino é baseado em alguns modelos europeus, mas na prática as escolas de todos os níveis são verdadeiras padarias – biscoitinhos nos ensinos básicos, de engenheiros à advogados, no ensino superior saem fornadas de cacetinhos a toda hora –, sendo que, ao concluir a faculdade, o indivíduo é jogado no mercado de trabalho mais ainda despreparado porque as empresas copiam com voracidade canina o estilo americano, sem nunca implementá-lo de verdade. Um carnaval sem pé nem cabeça.

Lembra do Shumpeter? Era um teórico austríaco e faliu como banqueiro e como executivo de estado. Sua virtude foi apenas pensar à frente. Na sua época não existiam os computadores para acessar todas as variantes que suas teorias demandavam. Hoje estamos dependendo das metodologias dos fractais (da computação à nanotecnologia, das bolsas de valores às coqueluches de fitness), temos monumentais recursos de cálculo e análise, mas não sabemos utilizá-los na tomada de decisões. Ah, sim, existem softwares e mancebos, digo, profissionais especializados em gestão de informação e analistas de métricas. Promissor.

Enquanto estamos confortavelmente na poltrona comercializando “bytes” e fazendo um pedido de “copinho de café” num aplicativo para entrega à nossa porta (declaro que sou antiquado, não abandono o gosto por preparar eu mesmo o meu expresso), há uma movimentação planetária de carga e de gente oportunizando esses novos hábitos de consumo e estilos de vida. Sem falar que, a indústria do turismo, de que o mar é o maior destino (ou via) entre todos os apelos de qualquer menu turístico, é maior do que a soma de várias indústrias, incluindo a civil, automobilística e do petróleo. Isto posto, a maior mobilidade logística em termos de volume de carga por unidade de transporte ainda é pelos mares a ponto da indústria naval ligada por uma ponte multifuncional à toda a cadeia logística ser indício de aquecimento da economia ou não tanto quanto, ou mais do que o setor da construção civil. O problema é que o setor logístico raciocina como “um braço” que quer andar mais do que “as pernas”, e muitas vezes quer andar sozinho. Não pode, não deve. Reparemos que no passado uma área portuária era lugar frequentado pela sociedade, para ver a chegada de um lote de livros de Dickens, por exemplo, ou as novidades de Paris, de Londres, e etc. Hoje um porto é área proibida para terráqueos. As marinas tendem a se transformar para uma elite, assim como os “Yacht Clubs” permeáveis a poucos penetras dessa corte empolada. E cada vez mais nascem restrições para o uso, manejo e usufruto do mar, ou de qualquer corpo líquido, navegável.

Voltando a situar a relação da Terra de Santa Cruz com a Lusitânia, como aceitar que, mesmo falando a mesma língua e com DNA semelhante, a balança comercial entre Brasil e Portugal ainda se equilibre abaixo de 1% do total importado/exportado dos dois países para outros mercados? Dados atuais. Se Portugal tem uma área terrestre pequena em relação ao Brasil, este, mesmo sendo continental, tem em Portugal a porta para a Europa, para a África, para as Índias, China, Australásia; alô Vasco da Gama! É tão óbvio. As diferenças de moedas são apenas um pequeno detalhe, deveriam ser só isso.

A pergunta que não quer calar é: como quebrar a inércia do discurso e transformá-lo em prática, leia-se fazer funcionar de fato os belos projetos emblemáticos alardeados por ambos os governos, e “players”, de Brasil e Portugal? No Brasil, dizem, a esperança é a última que morre; em Portugal é um pouco mais fácil, basta cada um resgatar a sua identidade marítima.

Afinal, estamos fadados ao sucesso ou esse sucesso estará sempre à disposição das gerações sucessoras? Neste caso, deveríamos nos considerar mais uma geração perdida? Ela mesma uma expressão arcaica, solta lá no passado.



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