À memória de Gabo, que morreu durante a realização deste trabalho

Cem anos depois da construção do Canal do Panamá, o presente trabalho pretende contribuir para recuperar a memória de uma das mais extraordinárias obras do século vinte.

Uma obra de engenharia notável, antecedida e sucedida por estratégias politicas que oscilaram entre a subtileza e a arruaça, velhas como a herança colonial espanhola e recentes como a doutrina Monroe, suportada por sofisticados processos de financiamento, e tornada viável por uma prática de saúde pública, onde ciência e procedimentos de higiene se alternaram para permitir a vida e o trabalho na selva equatorial.

E cem anos depois, o canal encontra-se em profundas alterações, com a sua (re)inauguração a boiar entre custos e prazos excessivos, e a ameaça de outro canal na Nicarágua.

A epopeia da abertura do canal nunca teve o grande escritor à sua altura. E a do alargamento, que é significativamente de menores proporções, é provável que também não venha a ter.

Contudo em livros, artigos, entradas de enciclopédias, e documentação dispersa, podem ser encontradas inúmeras verdades e erros sobre o assunto.

Na realidade um capítulo da história, por recente que esta seja, que vai à formação geológica do mundo, passeia pelas avenidas elegantes de Paris, labuta na selva equatorial, coteja as atas do congresso norte-americano, lida com a administração colonial espanhola, analisa os relatórios dos grandes bancos da altura, tateia por entre os boletins médicos de imunologia e regista milhares de páginas de jornais escritas em francês e inglês, possui os ingredientes necessários para perder progressivamente rigor.

É particularmente interessante notar, contudo, que o rigor aumenta e diminui à medida que os assuntos se aproximam e afastam da engenharia. Quando a informação chega ao processo construtivo, aí as peças desenhadas, as memórias descritivas, os orçamentos, as quantidades de trabalho a mais e a menos, os simples cálculos avulsos, e sobretudo as cadernetas de bolso, de folhas quadriculadas e capeadas a couro, manchadas do suor dos seus proprietários, da chuva e da terra, algumas com insetos secos, tudo cheio de números e croquis, aí a informação adquire o rigor da pintura de Piet Mondrian.

Foi consultada muita desta informação, identificadas algumas contradições, enfrentada a dificuldade de alinhavar custos, já de si por vezes imprecisos, e expressos em dólares e francos, e por vezes em franco ouro.

Uma vez que o projeto decorre ao longo de duas fases distintas, uma expressa em moeda francesa e outra em norte-americana, entendeu-se ser útil uniformizar, sempre que interessante e possível, os valores monetários numa única moeda, mesmo que sacrificando algum rigor, e neste caso a opção recaiu nos dólares, porque o maior volume monetário do projeto, e a maior quantidade de informação a ele associado, se encontra nesta moeda, característica que vem até à atualidade.

Interessou-me de sobremaneira tentar explicar as razões dos acontecimentos, e sobretudo o que é que as suas particularidades ficaram a dever à conjuntura histórica.

Para isso a história vai serpentear entre a grande história da segunda metade do século XIX e os primeiros anos do século XX. Sem este procedimento torna-se difícil entender as cenas e os bastidores da abertura do canal.

É tempo de colonialismo, que uma vez firme em África e no Oriente, próximo e longínquo, começa a ensaiar os seus passos na América Latina.

Os portos são abertos ao estrangeiro por esse mesmo estrangeiro, como aconteceu no Japão e no Brasil, e o comércio livre é tornado obrigatório pelas esquadras das potências. Colonialismo nos seus variadíssimos formatos, de legações, colónias, protetorados, missões, tutelas, etc, etc, e até canais.

Ou seja este trabalho não vai ter a pretensão de registar os milhões de metros cúbicos escavados e bombeados, toneladas de betão e aço, e séries de nomes, datas e números. Somente os indispensáveis.

Para este tipo de informações existem artigos muito interessantes, nomeadamente para quem quiser perceber como é que funciona o canal, o seu maquinismo, enche tanto, despeja tanto. E aconselho vivamente os excelentes vídeos e animações que gravitam na NET, com destaque para o sítio oficial do Canal.

Da mesma forma, a cronologia dos acontecimentos vai voltar atrás e desviar-se para os lados, sempre que isto for útil ao ritmo da narrativa.

Enfim, apenas o rigor necessário para não deixar o trabalho descarrilar para um género ficcional, porque na verdade alguns dos acontecimentos passados em Paris, nos corredores de Washington e na selva equatorial americana, deixariam céticos alguns dos mais imaginativos romancistas.

Finalmente, e utilizando as palavras de um dos personagens desta história, o grande (enorme) Eça de Queirós, e os materiais da própria obra, interessou sempre que nos carris da realidade circulasse o comboio da imaginação.

 

Entre Lisboa, o Rio de Janeiro, S.Paulo e Cascais.

Quel Panama!, era utilizado em França, nos últimos dias do século XIX, para simbolizar qualquer contrariedade ou imbróglio.

Significava o descontentamento e desconfiança do povo francês, o grande acionista da companhia da abertura do canal do Panamá, um projeto iniciado em 1880, e que flanando sobre os boulevards parisienses não conseguia rasgar a selva equatorial da América Central, vindo a interromper os trabalhos em 1889. São reiniciados com uma nova companhia em finais de 1894, mas ficam praticamente sem atividade até aos primeiros dias de 1904.

O desespero e o prejuízo dos promotores e subscritores do projeto, agudizaram-se em 1894 com a morte do seu responsável, Ferdinand Lesseps, que anos antes tinha construído com sucesso o Canal do Suez.

Os americanos precisavam bastante de um canal daqueles, naquela zona, por razões ao mesmo tempo de soberania e expansionismo, porque convém lembrar que tinham chegado há pouco tempo à costa do Pacífico, mais preocupados com a presença de europeus numa zona que começavam a considerar como o seu quintal, do que com o insucesso do empreendimento, adquirem a nova companhia francesa em Fevereiro de 1904, e decidem continuá-lo nesse mesmo ano, porque sabiam onde é que ele tinha falhado: na recusa da gestão planeada, sobretudo da economia, no projeto de engenharia e no descaso das condições de salubridade no local.

O circo transfere-se para a América, e depois de profundas alterações políticas regionais, os trabalhos reiniciam-se no Panamá com um formato substancialmente diferente, e sintomaticamente, com a entrega das chaves do hospital local, em 4 de Maio de 1904.

É um projeto americano, feito para os americanos, no sentido em que aberto e colocado ao serviço da navegação mundial, serve significativamente os interesses americanos. E cem anos depois o Novo Canal volta a ser um projeto americano, uma vez que vai ser o seu comércio marítimo a usufruir maioritariamente do funcionamento da obra.

O projeto francês foi um empreendimento capitalista, especulativo, construído por empreiteiros internacionais, com o aval das armas da República. O projeto americano, foi politico, de soberania e defesa do imperialismo, subtraído à iniciativa privada, e confiado ao estado na sua maior pureza, o exército.

Entre o primeiro dia de Janeiro de 1880, quando a obra se iniciou sob a iniciativa dos franceses, e o dia quinze de Agosto de 1914, quando a obra foi concluída pelos norte-americanos, trabalharam no canal cerca de 80 000 pessoas, foram perdidas cerca de 30 000 vidas, um pouco mais de dois terços no projeto francês, um pouco menos de um terço no norte-americano, e gastos cerca de 640 milhões de dólares, dos quais 288 no primeiro e 352 no segundo.

E quando finalmente o troar das explosões dos rebentamentos de terra cessou para deixar passar o primeiro navio de granéis, duas semanas antes tinha começado longe dali outro troar, nas planícies entrincheiradas da Europa, para deixar passar a morte, também a granel.

(Continua …)

 



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