O sons, as imagens e as emoções provocadas pela tempestade marítima são constantes na transversalidade da poesia através das épocas. A sonoridade da tempestade, o rugido, o bramar, o ranger, o estrondo da trovoada, o crepitar e o traçado dos relâmpagos, as imagens, as torres de nuvens espessas, as montanhas e serras de ondas avassaladoras, a negrura noturna, o vento furioso, caraterizam invariavelmente a descrição poética da tenebrosa tempestade no mar. De modo geral a tempestade marítima é uma batalha entre os elementos do ar, da água e da luz, que parece intentar destruir o próprio mundo:
(…) Agora dobre as nuvens os subiam,
As ondas de Netuno furibundo;
Agora a ver parece que desciam
As íntimas entranhas do Profundo.
Noto, Austro, Bóreas, Aquilo queriam
Arruinar a máquina do mundo (…)
Luís Vaz de Camões (Instituto Camões, 2000-1572)
ou:
(…) Como em fera batalha, os Elementos
A vingarem-se huns de outros se resolvem,
Que agoas contra agoas, ventos contra ventos,
O mar com o Ceo, o Ceo com o mar involvem.
Com nuvẽs, & relampagos violentos
As areas do fundo se revolvem (…)
Brás Garcia Mascarenhas (Fund. Calouste Gulbenkian, 1996-1699)
ou ainda
(…) Levanta lá no céu furiosas ondas;
Austro bramando corre ali com fúria,(…)
Rompe-se por mil partes o céu, e arde
Em ligeiro, apressado, vivo fogo.
Um rugido espantoso vai correndo
Desde o Antárctico Pólo ao seu oposto.
Arremessam-se lanças pelos ares
De congelada pedra em água envolta;
Com espantoso ímpeto, e rasgadas
As densas negras nuvens raios cospem (…)
Bernardo Gomes de Brito, Naufrágio de Sepúlveda, Canto VII, 1735-1736
Neste combate das forças impessoais encontra-se inevitavelmente o homem envolvido em medo e foge toda a natureza viva sob o poder destruidor dos elementos embravecidos:
As Alcióneas aves triste canto
Junto da costa brava levantaram,
Lembrando-se do seu passado pranto,
Que as furiosas águas lhe causaram.
Os delfins enamorados entretanto
Lá nas covas marítimas entraram,
Fugindo à tempestade e ventos duros,
Que nem no fundo os deixa estar seguros.
Luís Vaz de Camões (Instituto Camões, 2000-1572)
Trata-se de um cenário terrível, transcendente às forças humanas. Passar nessa paisagem revolta em fúria é abeirar-se da morte e brevemente dá-la como certeza. A fragilidade do humano perante a morte torna-se evidente. O seu soçobrar ou a sua sobrevivência são suas questões permanentes durante a tempestade. Os elementos surgem desalinhados daquilo que é o próprio e possível do viver humano. E o seu saber, a sua perícia, não é garantia de salvação. Na tempestade marítima «nas águas tempestuosas e letais (…) perdem, engolem e matam» (J.Cândido Martins) e apenas há abrigo na suma fragilidade do navio envolto em forças que o transcendem e na arte da navegação, mas só enquanto assiste tal possibilidade sempre pronta a desfazer-se pela guerra elemental da tempestade.
O vento endoidecido, a chuva violenta, o mar encapelado, o fulgor estrondoso dos relâmpagos, suas sonoridades, em que tudo é surpreendentemente grandioso e avassalador, constituem um extremo do possível, vive-se uma excepção da existência, mais além do que a natureza tem de ser para que o homem seja possível. E, no mar, o abrigo perante os elementos é muito mais frágil, propiciando o espanto e o terror perante a realidade de que a sobrevida humana de si mesma pouco dependa – como se pode viver num cenário além da força humana? Quando
(…) os ventos que lutavam
Como touros indómitos bramando,
Mais e mais a tormenta acrescentavam (…)
Relâmpados medonhos não cessavam,
Feros trovões, que vêm representando
Cair o céu dos eixos sobre a terra,
Consigo os elementos terem guerra.(…)
Luís Vaz de Camões (Instituto Camões, 2000-1572)
ao homem cabe seguir sua arte e ciência, a navegação, porém, à vista das Parcas que tecem talvez o final abrupto da tecedura de nossos humanos dias. Eis quatro breves descrições de uma desordenada natureza antagonista da possibilidade da vida humana:
Sibila o vento: os torreões de nuvens
Pesam nos densos ares:
Ruge ao largo a procela, e encurva as ondas
Pela extensão dos mares:
A imensa vaga ao longe vem correndo
Em seu terror envolta;
E, dentre as sombras, rápidas centelhas
A tempestade solta.(…)
Alexandre Herculano (Livraria Bertrand, 1934-1832)
Ou, vinda de uma época mais distante:
(…) Eis manso e manso as nuvens se entumecem,
Eis o líquido pêso
Rompe os enormes carregados bôjos, (…)
Rebentam furacões, flamejam raios,
O estrondoso trovão no céu rebrama,
(…) a procela [tormenta] horríssona recresce,
Tingem sombras do inferno os véus da noite
Que o relâmpago retalha:
Braveja o mar, aos astros se remontam
Serras e serras da fervente espuma;
Carrancudos tufões arrebatados
Dobrando a força, a raiva, lutam, berram
E revolvem do pélago [abismo] as entranhas; (…)
Manuel Maria Barbosa du Bocage (Mocho, 1979-1813/4ªed)
Com maior distanciação temporal também apresentamos esta versão da tempestade:
Cobre-se o céu de grossas negras nuvens,
Os ventos mais e mais cada hora crescem,
Já se escurece o céu, já com soberba
Inchadas grossas ondas se levantam.
A nau começa já passar trabalho,
Já começa gemer, e em tal afronta
O apito soa, brada o mestre, acodem
Com presteza varões no mar expertos.
Põe-se o fero Vulturno junto ao cabo,
Levanta lá no céu furiosas ondas;
Austro bramando corre ali com fúria,
Dando um balanço à nau que quase a rende,
Vem com grande furor Bóreas raivoso,
Comete por davante, o passo impide,
Encontra as grandes velas, e, por força,
Ao mastro as pega e a nau atrás empuxa:
Rompe-se por mil partes o céu, e arde
Em ligeiro, apressado, vivo fogo.
Um rugido espantoso vai correndo
Desde o Antárctico Pólo ao seu oposto.
Arremessam-se lanças pelos ares
De congelada pedra em água envolta;
Com espantoso ímpeto, e rasgadas
As densas negras nuvens raios cospem:
De um golpe as velas vêm todas abaixo.
Jerónimo Corte-Real (Typografia Rollandiana,1783-1574)
São constantes as fórmulas da descrição! Sinteticamente, é um desordenado inferno que se representa na tempestade (Brás Garcia Mascarenhas, 1699), um caos, uma desordem incontida que ultrapassa o poder de escolha humano, eventualmente sobrepondo-se à arte de navegar:
Eis o mestre, que olhando os ares anda,
O apito toca: acordam, despertando,
Os marinheiros dũa e doutra banda,
E, porque o vento vinha refrescando,
Os traquetes das gáveas tomar manda.
– «Alerta (disse) estai, que o vento crece
Daquela nuvem negra que aparece!»
Não eram os traquetes bem tomados,
Quando dá a grande e súbita procela.
– «Amaina (disse o mestre a grandes brados),
Amaina (disse), amaina a grande vela!»
Não esperam os ventos indinados
Que amainassem, mas, juntos dando nela,
Em pedaços a fazem cum ruído
Que o Mundo pareceu ser destruído!
Luís Vaz de Camões (Instituto Camões, 2000-1572)
Podemos verificar a pregnância das noções que a tempestade marítima nos provoca, primeiro, a semelhança intemporal nas descrições, a tempestade é um combate de gigantes, entre elementos naturais: forças desumanas, segundo, o olhar que a tempestade marítima devolve sobre nós acerca de nossa fragilidade em meio tão agressivo, terceiro, as analogias que propicia relativamente à nossa vivência em subjectividade (como o mar nos embravecemos, por exemplo, ultrapassando a ordem que o homem tem de trilhar devido à sua inteligência e necessidade de profícua sociabilidade).
Se permanece bem caracterizada a fragilidade humana – e nisto a nossa dependência última do que nos é transcendente -, se permanece também entre os terrores a necessidade de segurar o medo que nessas condições desponta, querendo comandar a razão – se algum espaço para ela há – será então esta a sua mais forte garantia, mas se, contudo, para ela não há espaço nem arte que valha, contudo, então apenas a esperança poderá resistir:
(…) Fragil taboinha, que o bater das ondas
Póde num so momento
Fazer em mil pedaços!
Ai de mim! Trinta vezes no horizonte
O pae das luzes despontou radioso,
E co’a tocha brilhante
A meus cançados olhos
Nada mais amostrou que o quadro imenso
De soledade infinda, – os ceus e os máres! (…)
Almeida Garrett (Sustenance e Stretch, 1829)
Ainda no seguimento do disposto por Almeida Garrett relativamente à solidão humana na sua fragilidade, de onde brota a esperança sobre todas as dificuldades, a tempestade no mar ajuda também a reconhecer outras batalhas travadas na subjectividade humana, interiormente. Esta analogia das tempestades com a subjectividade humana foram também tratadas por Francisco Pina de Mello e Fernando Rodrigues Lobo ‘Soropita’:
No mar em que de novo amor me guia,
O mais seguro porto e dar a costa;
Aonde todos se perdem, ai esta posta
Minha salvação, ai me salvaria.
So fe me há-de salvar nesta porfia
Do vento, que contrario vem de aposta;
E pois sua mor perda e dar a costa
Comigo, eu com costa me queria.
Que vai ja o querer, aonde a ventura
Criou tão desigual merecimento?
Valha-me pura fe, vontade pura!
Valha-me navegar meu pensamento
Com tal estrela, cuja formosura
Abranda o duro mar de meu tormento.
Fernão Rodrigues Lobo ‘Soropita’ (Campo das Letras, 2007)
e em Francisco Pina de Mello:
Que bravo o mar se ve! Como se ensaia
Na furia e contra os ares se rebela!
Como se enrola! Como se encapela!
Parece quer sair da sua raia.
Mas tambem que inflexivel, que constante
Aquela penha esta a forca dura
De tanto assalto e horror perseverante!
O empolado mar, penha segura,
Sois a imagem mais propria e semelhante
De meu fado e da minha desventura.
Francisco Pina de Mello (Off. de Joseph Antunes da Sylva, 1727, 2ed)
Já em António Ferreira é considerada como uma demasia os arrojos humanos pelos oceanos, numa fala que é semelhante à do Velho do Restelo, a sensatez e o acometer feitos estão na balança, ganhando a primeira:
(…) meu irmão, metade
da minha alma (…) [que] tornes vivo, e são
do fogo, e tempestade
a que se aventurou c’o esprito ousado.
Vença à dura fortuna a boa tenção.
Quem cometeu primeiro
ao bravo mar num fraco pau a vida
de duro enzinho, ou tresdobrado ferro
tinha o peito, ou ligeiro
juízo, ou sua alma lh’era aborrecida.
Dino de morte cruel no seu mesmo erro.
Esprito furioso
que não temeu o pego alto revolvido
(entregue aos ventos, posto todo em sorte)
do sempre tempestuoso
Áfrico, nem os vaus cegos, e o temido
Cila infamado já com tanta morte!
A que mal houve medo
quem os monstros no mar, que vão nadando,
com secos olhos viu? Que o céu cuberto
de triste noite, e quedo
sem defensão, c’o corpo só esperando
está a morte cruel, que tem tão perto?
Se Deus assi apartou
com suma providência o mar da terra,
que a nós, os homens, deu por natureza,
como houve homem que ousou
abrir por mar caminho mais a guerra
qu’a paz, e a morte mais, roubo e crueza?
Que cousas não cometes,
ousado esprito humano, em mar, e em fogo
contra ti só diligente, e ingenioso?
Que já te não prometes,
des qu’o medo perdeste à morte, e em jogo
tens o que de si foi sempre espantoso?
Um o céu cometeu;
outro o ar vão experimentou com penas
não dadas a homem; outro o mar reparte
que por força rompeu.
Senhor, que tudo vês, que tudo ordenas,
pera Ti só chegarmos dá-nos arte.
António Ferreira, «A ûa nau d’armada em que ia seu irmão Garcia Fróis» Poemas Lusitanos, 1598
Todavia, não é apenas formado de ousadia temerária tais empreendimentos marítimos, pois as duras experiências e a morte iminente podem transmutar os terrores na revelação de um valor imortal para o homem, enquanto este se realiza no trabalho em meio das dificuldades, mostrando firmeza no Amor que dedica à sua função, ao seu trabalho, apesar das contrariedades com fatais perfis. Camões proporciona nas suas Rimas, pela fala do Capitão Themioscles, o ganho de uma afinação imortal para o homem que permanece na sua função ante sua iminente morte – «vendo a morte diante de mim» -, enquanto o seu objectivo ainda está longe, como se dissesse: feliz o homem que a morte o surpreende trabalhando. Só nestas extremas condições é apurado o Amor: «Ali Amor mostrando-se possante / e que por nenhum modo não fugia, / – mas quanto mais trabalho, mais constante – ». Consideremos o excerto do poema que expõe mais completamente esta ideia:
(…) As cordas, co ruído, assoviavam;
os marinheiros, já desesperados,
com gritos para o Céu o ar coalhavam.
Os raios por Vulcano fabricados
vibrava o fero e áspero Tonante,
tremendo os Pólos ambos, de assombrados!
Ali Amor mostrando-se possante
e que por nenhum modo não fugia,
– mas quanto mais trabalho, mais constante – ,
vendo a morte diante de mim, dizia:
«Se algûa hora, Senhora, vos lembrasse,
nada do que passei me lembraria».
Enfim, nunca houve cousa que mudasse
o firme Amor do intrínseco daquele
em cujo peito ûa vez de siso entrasse.
Ûa cousa, Senhor, por certo asssele:
que nunca Amor se afina nem se apura,
enquanto está presente a causa dele.(…)
LVCamões, «O poeta Simónides, falando», Rimas,