Primeira parte, um canal nos boulevards de Paris

O nosso cônsul em Paris

 

José Maria Eça de Queirós, o nosso cônsul em Paris na altura, pouco ou nada nos informa sobre Quel Panama! a interjeição que em França, no final do século XIX era sinónimo de qualquer incómodo, e sobretudo de qualquer coisa menos clara. Quel Panama, isto, Quel Panama, aquilo!.

E no entanto Eça de Queirós, que curiosamente também não escreveu sobre a pintura impressionista francesa, que ele teve que acompanhar quase quotidianamente, alguns anos antes, em 17 de Novembro de 1869, tinha sido um dos convidados a assistir à inauguração do Canal do Suez, acompanhado pelo conde de Resende, mais tarde seu cunhado, obra de Ferdinand Lesseps, o mesmo que agora estava às voltas com o Canal do Panamá.

Eça descreveu a inauguração do canal numa reportagem notável para o Diário de Notícias, e daquela viagem deixou-nos escritos maravilhosos (O Egipto é um país simples, luminoso e claro ou Jerusalém é uma vila turca, com vielas andrajosas, acaçapada entre muralhas cor de lodo, e fedendo ao sol sob o badalar de sinos tristes), e trouxe os apontamentos que mais tarde, em 1887, iria utilizar na elaboração dessa obra prima da literatura mundial que é a A Relíquia.

 

Nascido para separar a Terra

Lesseps, nascido em 1805, era diplomata de carreira, tendo servido como vice-cônsul em Lisboa, entre 1825 e 1827, e detentor de conhecimentos de engenharia que nunca ninguém conseguiu precisar exactamente até onde é que iam, o que contudo, lhe tinha permitido no Suez congregar as boas vontades dos entusiastas do projeto e simultaneamente ultrapassar as reservas da Grã-Bretanha, que via no canal uma ameaça, dado que tornava a sua Índia mais acessível às potências da altura.

Agora, com o Panamá, Lesseps tinha conseguido mobilizar os grandes financeiros para levantar as enormes somas de capital necessário ao empreendimento, e para obter em 1878 a concessão da construção do canal.

E havia ainda o seu passado familiar, ligado a exploradores que ao serviço de França tinham navegado nas imediações da América Central, e compreendido a importância estratégica de um canal que rasgasse a terra, estabelecendo o contacto entre o Atlântico e o Pacífico.

Ferdinand Lesseps, partiu para a aventura do Panamá ainda com os ouvidos cheios da areia do Suez, e talvez isto explique o facto de apenas se ter ouvido a si próprio, ou quando muito àqueles que pensavam como ele.

O resto era a área da Aida, que Giusepe Verdi tinha composto dois anos depois da inauguração do Canal do Suez, e que lhe evocava constantemente a vitória triunfal sobre o deserto, uma coisa que antes dele, muito antes, apenas Moisés tinha conseguido.

No caso do Suez, havia contudo a perturbá-lo uma história que circulava pelas ruas, e pelos corredores da justiça, de que o projeto de abertura do canal pertencia ao seu colega Alois Negrelli. E começava a surgir a imagem de que o seu grande trabalho ali tinha sido mais politico e diplomático, a bajular as autoridades egípcias, e a angariar fundos para o empreendimento. Na realidade quando as imensas somas de dinheiro se esgotaram, o projeto passou a viver essencialmente do dinheiro e da vontade dos paxás, de perpetuarem na terra uma obra que se comparasse às pirâmides dos seus antepassados faraós.

Mas agora Lesseps conseguiu ultrapassar todos estes obstáculos, e em 5 de Julho de 1879 constitui a Compagnie Universelle du Canal Interocéanique de Panama, juntamente com 800 000 franceses, notável para a época, dos quais 15 000 donas de casa, notabilíssimo para a época, e no primeiro dia do ano seguinte arrancam as obras no Panamá.

Contudo, também seria interessante notar que o projeto arranca com menos de dez por cento dos cerca de 400 milhões de francos estimados como necessários.

E com um erro que haveria de ser fatal. A abertura do canal ao nível do mar.

 

Deus percebia pouco de comércio marítimo

Quem olhasse naqueles dias para o globo terrestre, ficava seguro de que Deus não tinha tido motivos para descansar ao sétimo dia com aquela nesgazinha de terra a unir as duas Américas. Ou então, que acabava por perceber pouco de comércio marítimo.

A ideia de acabar a obra do Criador é peregrina. Em 1534 o imperador Carlos V mandou estudá-la como forma de colocar as recentes riquezas americanas mais perto da alfandega de Sevilha. Mais tarde seria Alexander Von Humboldt, logo no início do século XIX, fruto de uma extensa e célebre viagem pela região, a propor a abertura de um canal nas suas imediações. E mais tarde ainda, o próprio Simón Bolívar, o pai da independência de toda aquela região, ordenou o estudo de um canal, talvez de forma, a que ele próprio pudesse sair do seu labirinto, mas posteriormente abandonado devido aos custos.

Durante muito tempo acreditou-se que os dois continentes tinham ficado unidos há três milhões e meio de anos, mas recentes descobertas, feitas precisamente nas obras de alargamento do canal, elevaram aquele período para dez milhões de anos.

Seja como for, formadas as três Américas, a do Norte ficou habitada pelos grandes mamíferos, ursos, bisontes, alces. Bastante diferente da do Sul, onde ficaram as capivaras, as onças e os lamas.

A Central, a do meio, ficou a terra (ou melhor o céu) dos pássaros. Aos bandos, aos cantos e às cores.

As mesmas cores que podem ser encontradas nas frutas espalhadas pelas bancas dos mercados, e nos peixes das águas tépidas do Caribe.

E passou a ser a terra de gente muito diversa, assim sejam os povos melancólicos, sorumbáticos e taciturnos, dos planaltos centrais, ou a humanidade exuberante, afável e histriónica do litoral.

Mais do que a raça, se índios, brancos, negros, crioulos, ou a língua falada, se o português ou o castelhano, é aquela distribuição da população por vários territórios a partir do nível do mar que define o ethos dos povos da América Central e do Sul.

Isto pode ser constatado por exemplo no Brasil, nas semelhanças e diferenças entre os introspetivos mineiros e paulistas, e os extrovertidos cariocas e baianos.


No lugar certo, à hora certa

Sobretudo, o que tinha favorecido a posição francesa no assunto tinha sido a disputa geopolítica relativa à América Central entre ingleses e americanos, com nenhum deles a ver com bons olhos o fortalecimento da posição do outro.

Os ingleses, é bom não esquecer, tinham na região uma grande influência, quase ao nível da que tinham no médio oriente, no antigo crescente fértil, no sub continente indiano, ou Sul de África. Tinha começado com o protagonismo adquirido com o transporte da corte portuguesa para o Brasil, e a subsequente abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, até aí um negócio exclusivo nosso. E tinha prosseguido no Brasil e no restante continente, mais na fachada atlântica, com a exploração mineira, e construção de portos e caminhos de ferro, naquele país, no México e na Argentina. Um resquício desse poder chegou quase até aos nossos dias, expresso no minúsculo mas importante território da Guiana inglesa, e mesmo à atualidade, no território ainda mais minúsculo e ainda mais importante que são as Malvinas.

Ingleses e norte-americanos, também rapidamente passaram de opositores a aliados, preferindo partilhar entre si o prazer da influência, velada ou explicita, e no mesmo ano do início da construção da ferrovia do Panamá, 1850, assinaram um acordo que obrigava ambos a consultas bilaterais prévias aquando da construção de obras na região, com destaque significativamente para ferrovias e canais.

Então, como era típico das grandes negociações diplomáticas e empresariais da altura, decidiu-se entregar a abertura do canal do Panamá a um terceiro, sem qualquer ligação ao assunto, neste caso a França.

Era um formato de negociação que traduzia aquilo que em politica era conhecido como o equilíbrio de poderes, fórmula concebida e implementada pelo Príncipe Metternich no Congresso de Viena, realizado entre Maio de 1814 e Junho de 1815, no rescaldo do incêndio que Napoleão Bonaparte tinha ateado e propagado à Europa com a república, ou o império dos liberais, e com o qual a diplomacia vienense pretendia restaurar e fortalecer as casas reais europeias e os valores conservadores. Isto seria feito de diversas formas, mas sobretudo com o equilíbrio dos poderes, segundo o qual as potências, e não apenas, comprometiam-se a equiparar as suas forças, de forma a inibir tendências hegemónicas. As potências de melhor ou pior forma cumpriram, mas fizeram-no por cima, rearmando-se todas, e de maneira a nunca terem um poder bélico inferior ao dos seus vizinhos, originando que numa altura em que já não sabiam o que fazer a tanto armamento, decidiram gastá-lo em 14/18, na primeira guerra mundial.

Esta fórmula de desfazer os empates e os impasses, seria usada por exemplo na Conferência de Bruxelas em 1876, que reuniu para discutir o acesso ao Congo, ao rio e à região com o mesmo nome, e onde face à intransigência dos pretendentes, um dos quais Portugal, aquele que mais sólidas razões apresentava, mas que nem sequer tinha sido convidado para a reunião, precisamente pela força daquelas razões, é decidido entregar todo o território em disputa a um particular, Leopold II, rei da Bélgica. E é com base em procedimentos semelhantes que Calouste Gulbenkian, vai adquirir a sua influência e fortuna, sentando-se à mesa das negociações petrolíferas para com os seus cinco por cento resolver as sucessivas e intrincadas composições acionistas, de forma a contentar os potentados que iam a jogo.

Tratava-se agora em 1880 de repetir os principais processos que tinham conduzido ao sucesso do Suez, e ao nível politico, de ultrapassar uma vez mais as restrições britânicas, ainda com influência local, e sobretudo dos Estados Unidos, que gradualmente vinham a emergir como potência, e que consideravam ter uma palavra a dizer em assuntos tão próximos de casa.

A Inglaterra fundamentava naturalmente a Britannia Rulles, na extensão do imperialismo às rotas marítimas. E na altura em que um em cada três navios que navegavam à volta do mundo ostentava o pavilhão de sua majestade, a remoção dos obstáculos naturais da frente dos navios constituía uma ameaça a este estado de coisas, uma vez que podia incentivar os menos dotados a aventurarem-se nos mares.

Já a abertura do Canal do Suez tinha obrigado Londres a fortalecer a sua estratégia no Médio Oriente, agora centrada no Cairo, porque perder o controlo do assunto era vulnerabilizar o acesso de estranhos à Índia.

Enfim, na Europa existiam outras prioridades, e por isso deixar que o assunto do Canal do Panamá regressasse ao domínio da geologia, esperando que esta acabasse por concluir dentro de milhões de anos a sua obra, não era de todo desinteressante.

Como curiosidade fica a nota de que quem participou também no Congresso de Bruxelas de 1876, foi Ferdinand de Lesseps, enquanto presidente do comité francês da Associação Internacional que permitiu a Leopold II ficar com o Congo em seu nome pessoal, mais tarde (1908) transferido para a soberania belga.

Outro sinal dos tempos é o facto de um país minúsculo, com pouco mais de trinta mil quilómetros quadrados de área, fundado nem sequer cem anos antes, vir a tomar posse de um território com quase dois milhões e meio de quilómetros quadrados.

A Bélgica ficava a dever a sua independência e criação, entre outras coisas, a outra figura politica e diplomática daquele período. O Estado tampão.

Consistia essencialmente num pequeno país, implantado propositadamente entre duas potências, para dissipar e atenuar as suas divergências expressas ao longo da fronteira comum. Por exemplo a Bélgica, entre a França e aquilo que viria a ser em breve a Alemanha. Na América do Sul, a criação do Uruguai, entre o Brasil e a Argentina.

Quanto ao Congo, belga e francês, usou-se um processo que consistia num aventureiro proeminente, misto de santo e negreiro, no terreno, sem ligações explícitas a governos, e numa campanha bem urdida na imprensa internacional.

No caso de Leopold e dos belgas, tinha sido o galês Henry Stanley, jornalista ao serviço de um jornal de Nova Iorque, e em busca de uma recompensa, que se tinha embrenhado na África central à procura do missionário e explorador escocês Livingstone, há muito tempo sem dar notícias, encontrando-se os dois homens nas proximidades do Lago Tanganica, dando origem ao famoso episódio do “Dr. Livingstone, I presume?!? “ de Stanley, quando os dois únicos brancos, rodeados de África por todos os lados, apertaram as mãos.

Relativamente aos franceses, Lesseps enviou o explorador italo-francês conde Pierre Savorgnan Brazza, com a missão de reclamar uma parte do Congo para a França.

Foi necessário encaixar os dois países na mesma zona e no mesmo rio, que felizmente possuía como todos os outros, duas margens.

Para o nome das cidades também não foi necessário muita imaginação. Na margem direita ficou Brazzaville e na esquerda Leopoldville.

O empreiteiro do porto de Lisboa

Para a realização dos trabalhos, a Companhia contrata o empreiteiro belga Couvreux & Hersent, que já tinha dado provas no Suez, e recentemente tinha construído o porto de Antuérpia.

Mas todos os problemas de que o projeto enferma vão recair no empreiteiro e no seu rendimento, e por isso no último dia do ano de 1882, aquele abandona por sua iniciativa os trabalhos, deixando-os praticamente por começar, sendo substituído por um aglomerado de empreiteiros de menores dimensões, o que em nada contribuiu para melhorar a situação. A pulverização da empreitada pelos pequenos empreiteiros trouxe para o terreno as suas pequenas (apesar de numerosas) máquinas, e os muitos dirigentes. Em cinco anos a obra conheceu seis directores gerais.

Hilddenert Hersent, veria mais tarde, em 20 de Março de 1887, ser-lhe adjudicado as obras do Porto de Lisboa.


Um canal nos boulevards de Paris

Ferdinand Lesssps levou para a selva equatorial o esplendor barroco que ela merecia. Por exemplo, as obras iniciaram-se por dois cerimoniais, em vez do tradicional um.

Primeiro, no primeiro dia do ano de 1880,a sua filha Ferdinande a bordo de um navio estacionado nas proximidades da região, com uma picaretada, não na realidade da terra do Panamá, mas numa terra que enchia uma caixa de champanhe. E dez dias mais tarde a mesma menina ia fazer detonar uma pega de fogo simbólica, naquele que seria o purgatório francês na selva: O corte Culebra. E isto numa obra que verdadeiramente só começou daí a um ano, e no corte Culebra, dois anos depois.

Um ano antes das inaugurações festivas, e um depois de ter adquirido a concessão do canal, Lesseps sem nunca ter posto os pés no Panamá, convoca para Paris, em 1879, um estrondoso congresso onde se reúne uma assembleia de cerca de 140 pretensos sábios sobre o assunto, mas onde apenas pouco mais de dez por cento eram engenheiros. E apesar de um deles se chamar Gustave Eiffel. Esse mesmo, o da Torre Eiffel.

No entanto deste congresso saíram decisões fundamentais, que por não terem sido as mais apropriadas acabaram por debilitar o curso do projeto. A pior de todas foi sem dúvida a abertura do canal ao nível do mar, e que teve desde o princípio o patrocínio irredutível de Lesseps.

Contudo, sabe-se pelas atas do congresso que foram colocadas em cima da mesa soluções quase idênticas às depois utilizadas pelos americanos, e que vigoram praticamente até à atualidade. Represar o Chagres, tornar Gatún o maior lago artificial do mundo, e fazer a passagem interoceânica por eclusas.

A nível dos custos e dos prazos foram igualmente tomadas decisões pouco acertadas. O orçamento inicial de 215 milhões de dólares, ficou no final, e depois de sucessivas revisões da autoria de Lesseps, reduzido a 120 milhões, acontecendo o mesmo ao cronograma, que por sua iniciativa, passou dos oito anos iniciais para seis.

E os 40 milhões de metros cúbicos previstos escavar, rapidamente foram triplicados.

O projeto da Compagnie consistia essencialmente em rasgar durante 6 a 8 anos, com um custo de 600 milhões de francos, um canal de cerca de 73 Km, ao longo da ferrovia que já ligava as cidades de Colón no Atlântico e Cidade do Panamá no Pacífico, através do vale do rio Chagres, escavando cerca de 120 milhões de metros cúbicos de terra, forçando a passagem por entre a Cordilheira Central, por altura da localidade de Culebra, onde o maciço atingia uma altura de 95 metros.

O Corte Culebra seria sempre alguma coisa a ultrapassar, fosse qual fosse a arquitectura do canal; ao nível do mar ou por eclusas.

Trata-se de uma extensa faixa com cerca de 12 quilómetros, confinada entre Bas Obispo e Pedro Miguel, onde foi necessário criar uma passagem.

Os franceses ao apostaram num canal de reduzida largura, por economia e por desconhecimento do que seria a previsão de tráfego, e as futuras necessidades, apostaram igualmente numa passagem estreita pelo monte Culebra, para reduzir a cubicagem desmontada. Mas isto implicou uma inclinação de taludes ingreme, que fazia rolar e depositar-se no fundo do canal por efeito das chuvas torrenciais, quase tanto material quanto o desmontado.

A este respeito, os norte-americanos iriam melhorar os perfis do corte, mas nunca resolver cabal e definitivamente a questão. Menos de três meses depois de ser inaugurado, o canal encerrou para trabalhos de desobstrução, que foram particularmente intensos no ano seguinte. E atualmente ainda é necessário dragar com regularidade, para desassorear os fundos dos materiais depositados pela atividade diluviana.

Nos seus grandes números, o canal francês iria ter uma geometria, uma profundidade e uma largura significativamente diferente da actual.

Seria utilizada essencialmente mão de obra local, ou o mais possível das proximidades, por Paris acreditar tratar-se de gente aclimatizada às duras condições de salubridade.

Do Caribe próximo veio a grande força de trabalho dos franceses. E quando os franceses deixam o canal e o projeto, deixam também um contingente enorme destes trabalhadores abandonados no território, que tiveram de ser repatriados à custa dos seus governos de origem, deixando um rasto de desconfiança que haveria mais tarde de prejudicar a estratégia norte-americana de recrutamento de mão de obra.

Mais grave do que isto, terão sidos os cerca de 20 000 mortos (ou 22 000) enterrados pelos franceses, no período calculado entre 1881 e 1889.

Mas não só das Índias Orientais veio gente para o Panamá. Até de França.

 Um deles foi Paul Gauguin, que no encalço da sua verdadeira vocação e da forma de a materializar, e igualmente dos trópicos, foi trabalhar para o canal, na expectativa de comprar um terreno barato e viver à base de peixe, água e fruta. Mas não aguentou as condições, e ruma à Martinica. Mais tarde depois de outras viagens e estadias, para sua grande felicidade, e principalmente nossa, ruma aos mares do Sul, primeiro Taiti, e finalmente Ilhas Marquesas onde veio a morrer.


O canal não avança na selva e afunda-se nos boulevards

A grande engenharia da Politécnica de Paris, talvez não se tenha apercebido na totalidade das particularidades em presença no novo canal, e repetiu nas terras mais que pantanosas, lacustres, da selva as conceções, fórmulas e cálculos que tinham sido bem sucedidos nos areais do deserto. E principalmente não prestou a devida atenção aos custos e tempo necessários para escavar um canal com cerca de 80 quilómetros através da espinha dorsal do continente, entre as planícies costeiras aluviais e as montanhas vulcânicas, que facilmente ultrapassam os 100 metros medidos desde o nível do mar.

Quando em 1885 finalmente a equipa de projetistas decide adotar a arquitectura das eclusas, já o projeto se tinha esvaído num dispêndio de recursos muito para além do previsto, o que somado aos milhares de mortos entre os trabalhadores, provocado pelas duríssimas condições de salubridade locais, começava a anunciar um desastre, cuja continuação não fez se não transformá-lo em monumental, ou seja à altura do projeto.

A primeira eclusa entra em linha de fabrico em 1887, e em 1888 o projeto começa a moldar-se para a sua inclusão. Mas é manifestamente tarde.

Os principais termos de referência e procedimentos falharam, e consigo começou a falhar o financiamento, que agora era canalizado cada vez mais para repor as perdas, em vez dos projetados metros de avanço.

Ao Panamá começaram a chegar toda a série de estranhos aprovisionamentos, resultado de desconhecimento, incompetência e oportunismo, enquanto o combate sanitário é feito com base naquilo que se acredita serem os miasmas libertos pela movimentação das terras lodosas.

Os orçamentos feitos por baixo, para não assustar os investidores, são sucessivamente revistos e corrigidos, com afastamentos gritantes em relação aos iniciais. As grandes casas bancárias unem-se em conglomerados para fazer frente a esta sangria de capitais.

Não muitos anos mais tarde George Goethals, o último diretor geral da obra do canal, teria afirmado que não existia dinheiro suficiente no mundo para custear a abertura do canal ao nível do mar.

Depois são as economias públicas que são convidadas a participar sob a miragem de elevados retornos, ou para defender interesses estratégicos, o que aliás tinha acontecido aquando do Suez. Vive-se a Primavera radiosa da belle-époque, e a burguesia digere os lucros que ganhou com a revolução industrial, com os dividendos doutros grandes empreendimentos, como as aberturas dos transportes urbanos, as empresas de água, gaz e eletricidade, e com as companhias coloniais de sucesso. Mas também este aforro não chega para a aventura do canal tropical.

Lesseps lança mão a tudo o que pode para angariar fundos. Até a uma lotaria gigante de títulos e bónus, que chega a realizar-se em 1888, mas até essa é um fiasco, e pior, mais uma vez alvo de suspeita de fraude.

Seguem-se os governos, que igualmente se empenham em dotar o projeto de liquidez e de credibilidade. Neste cenário, as coisas também não seriam simples, porque vivem-se já igualmente os constrangimentos políticos de uma Europa que começava a limpar armas para a carnificina que iria assolar o território daí a poucos anos.

Nos primeiros dias de 1887 não restavam dúvidas a ninguém, exceto a Lesseps, que o projeto tinha que passar a contemplar eclusas, e em Janeiro do ano seguinte, já com Gustave Eiffel à frente do empreendimento, o projeto é profundamente alterado com a inclusão de 10 eclusas. Que passariam a 8 quase dez anos depois.

Mas o dinheiro só chegou para a primeira. Parava ali o canal, para dar lugar a um penoso, constrangedor e ruinoso processo judicial.

É que entretanto, em Fevereiro de 1886 Ferdinand Lesseps vai pela última vez ao Panamá. Viu seguramente uma coisa mas continuou a comunicar outra.

Mesmo assim, aquilo que teve que contar era demasiado preocupante.

Mais uma vez era a frente do Culebra a unidade útil para quantificar o estado do projeto. Estavam escavados bastantes metros cúbicos a menos do que o previsto.

Foram revistos os cálculos de engenharia e financeiros. Aos primeiros sobrava trabalho por fazer, e aos segundos faltava dinheiro para isso.

E agora, começava a faltar ao projeto, para além de obra feita e de dinheiro, o outro grande componente de uma empreitada. Tempo.

Assim o Canal do Panamá afunda-se literalmente em papel. Projetos mal concebidos, planeamentos confusos, orçamentos errados, títulos gradualmente desvalorizados.

O projeto francês de abertura do canal viveu frequentemente da espetacularidade, que talvez fosse necessária para angariar investidores, ao contrário do projeto norte-americano que viu na reserva a melhor forma de preservar o seu resultado da curiosidade alheia, sempre disponível a intervir e a perturbar.

 

Na antecâmara do Affaire Dreyfus

O processo judicial que se iniciou em 1888, levou em Janeiro de 1889 à dissolução da Compagnie Universelle du Canal Interocéanique de Panama, e em 4 de Fevereiro à sua liquidação, deixando mais de 85 000 subscritores na ruina. Sem companhia, sem obra e sem capital, mesmo assim o projeto ainda se arrasta até meados de Maio desse ano.

A imprensa, que Lesseps numa atitude visionária tinha sempre tratado com bastante atenção, ao ponto de fundar um magazine totalmente dedicado ao projeto, informando sobre as particularidades da engenharia e do financiamento, a par de outras minudências, primeiro abandona-o, e depois volta-se contra ele e contra os seus promotores e protagonistas.

Mas também a opinião pública se volta contra a imprensa, acusando-a abertamente de estar de forma desonesta ao serviço da especulação, controlada e paga por Lesseps e outros grandes investidores, escamoteando a verdade que chegava da selva sempre que esta era, como acontecia frequentemente, adversa.

Em Paris, a Terceira República tremeu nos seus alicerces com o abalo dos rebentamentos por fazer na América Equatorial. Ministros, deputados, banqueiros, agiotas, e até gente honesta, são arrolados entre os bancos do tribunal, as páginas dos jornais, e o vaudeville.

Clemenceau, o Tigre que iria conduzir a França à vitória na primeira guerra mundial, perde a eleição presidencial devido ao seu relacionamento próximo com um dos financiadores judeus do programa, e anos depois Hannah Arendt não hesita em considerar que a onda de anti-semitismo que se vai propagar à sociedade gaulesa daí a pouco tempo, a propósito da suposta venda de segredos militares aos alemães por parte do capitão de origem judaica Alfred Dreyfus, começa na identificação da falência fraudulenta do canal à mão dos seus financiadores judeus.

O ocaso do projeto despoletou uma onda de anti-semitismo, quando se conheceu a extensão do envolvimento de grandes financeiros judeus no empreendimento, sobretudo na sua parte especulativa. O episódio da falência do projeto veio trazer à superfície o confronto até ai surdo de duas grandes correntes francesas: a república e os cidadãos, contra a monarquia e a igreja.

E nomeadamente em torno de uma instituição que fortaleceria significativamente o lado para onde caísse. O exército.

Assim, não é de estranhar que o lado conservador aproveitasse a oportunidade para associar a podridão dos costumes com os assassinos confessos de Jesus Cristo, e pouco tempo depois atingir o seu objetivo, ao envolver um oficial do exército, Alfred Dreyfus, no crime de venda de segredos militares aos alemães.

Apesar de não passar de uma falsidade e calúnia, oriunda, sugestivamente do generalato, o “Affaire Dreyfus”, dividiu a sociedade francesa, com o lado conservador a ser apoiado pelo jornal Le Matin de Maurice Bunau-Varilla, e que iria encontrar pela frente um adversário superior, nada mais que Emile Zola, com o seu “J’Accuse” publicado no L’Aurore de Clemenceau, e que iria desmontar a mentira instalada. O irmão de Maurice, Philippe Bunau-Varilla, ainda vai desempenhar um papel muito importante nesta história.

 

 Quel Panama !

A falência dos ricos e a miséria dos pobres, exige o corte de cabeças. Ferdinad Lesseps, o filho, e seu braço direito, Charles, e um conjunto de notáveis, onde sobressaía o nome de Gustave Eiffel, são condenados em Fevereiro de 1893 a cinco anos de cadeia cada um, e a pesadas multas em dinheiro, sendo que neste particular uma das exceções é precisamente Lesseps.

O estado de saúde de Ferdinand, sobretudo mental, permitiu a sua soltura poucos meses mais tarde, e pouco depois dos restantes, após a reapreciação das suas reais implicações no assunto. Contudo Charles, que teve que fugir para Londres por falta de dinheiro para as multas, ainda seria alvo de segundo julgamento.

A obra apenas iria voltar a arrancar em Dezembro de 1894, a cargo da Compagnie Nouvelle du Canal Interocéanique, a segunda companhia do canal, fundada em Outubro desse ano.

Ferdinand Lesseps, que há bastante tempo vivia num limbo de loucura e senilidade, que lhe permitiu escapar à pena de cinco anos de cadeia a que foi condenado, morre nessa precisa altura, a sete de Dezembro, aos oitenta e nove anos. A Compagnie Nouvelle já não tinha nada a ver com ele, para além das dívidas que tinha herdado.

Mas arranca com apenas 700 trabalhadores, sendo que no terreno, o maior contingente de trabalhadores seria alcançado em 1896 com pouco mais do que 3500 trabalhadores. E por tudo isto, ferida de morte. Mas mesmo assim, agora que já quase não servia para nada, o projeto voltou a ser revisto. As estimativas de cubicagem de escavação, que nos estudos preliminares eram de 45 milhões de metros cúbicos, e que passaram para 75 milhões no início da obra, acabaram no projeto francês em 120 milhões de metros cúbicos. E em 1898 surge uma nova arquitetura com oito eclusas.

Entre as duas companhias, a primitiva e a nova, os franceses terão escavado 60 milhões de m3 de material (uma publicação fala no incrível número de 59 747 638 m3) dos quais, quase 14,5 do corte Culebra, o que permitiu baixar a altura deste de 64 metros, medidos ao nível do mar, para 59 metros.

Os americanos iam fazê-la baixar ainda mais, mas com uma considerável diferença na área da seção escavada.

 

Os americanos em Paris

Entretanto os franceses começam a tentar arranjar comprador para o seu património, instigados por três coisas: porque em 1903, terminavam os seus direitos de concessão, porque os investidores precisavam urgentemente de atenuar os seus prejuízos, e pela ameaça que começava a constituir o projeto de abertura do canal na Nicarágua.

Esta última foi decisiva, inclusivamente na fixação do montante do negócio, uma vez que os americanos fizeram constar que 40 milhões de dólares, era quanto lhes ia custar o projeto na Nicarágua, a par de outras vantagens comparativas, significando que era esta a verba que estavam dispostos a pagar pelo projeto do Panamá.

A corda na garganta dos acionistas franceses fez-se sentir, e o preço do seu património baixou drasticamente dos 109 milhões inicialmente calculados e pedidos, para aquela mesma verba.

A França tinha gasto mais de 285 milhões de dólares, na construção de cerca de 30 quilómetros de canal. Menos de metade.

Quando em 1899 começou na região a Guerra dos mil dias, onde o Coronel Aureliano Buendía pode muito bem ter combatido, o Projeto do Canal do Panamá tinha finalmente uma bela razão para acabar.

Até porque pouco tempo depois os americanos apareceram em Paris.

 

Fim da primeira parte

(Continua)

 

 

 



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