Pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, o Japão vai ter um porta-aviões, contrariando uma proibição constitucional e alguma opinião pública mais pacifista mais favorável à aplicação dos recursos noutras prioridades
Shinzo Abe

A ascenção da China no contexto económico e geo-político mundial, com reflexo no aumento da sua capacidade militar naval (e não só), é o principal motivo para o anunciado regresso dos porta-aviões às forças de defesa nacional do Japão, reconhecem vários analistas citados ontem pelo Diário de Notícias. Mais do que as diatribes da Coreia do Norte, entretanto suavizadas, ou a proximidade russa, é a tendência expansionista de Pequim que preocupa Tóquio.

A conversão de porta-helicópteros em porta-aviões, que o Japão não possui desde o fim da II Guerra Mundial (1939-1945) por opção própria, e a abdicação do Imperador Akihito, de 85 anos, em Abril do próximo ano assinalam o fim de um ciclo na história japonesa, profundamente marcado pelo militarismo e com efeitos que ainda hoje se sentem na sociedade japonesa.

De grande potência naval na primeira metade do século XX, o Japão passou a vítima das primeiras bombas atómicas da história, de que resultaria uma Constituição assumidamente pacifista que perdura desde 1947 até hoje e tem impedido o país de declarar guerra e ter forças armadas que não sejam para defesa exclusiva do território nacional.

Desde que regressou ao cargo de Primeiro-Ministro do Japão, em 2012, contudo, Shinzo Abe assumiu que o país deve ocupar uma posição relevante no xadrez internacional e tem defendido a revisão da Constituição de modo a compatibilizá-la com esse propósito. Agora, uma versão revista do Programa Nacional de Defesa, apresentada este mês, e um orçamento já aprovado para 2019 com uma previsão de despesa na defesa nacional de 47 mil milhões de dólares (41,2 mil milhões de euros), deixam antever que o anúncio de ter um porta-aviões é para cumprir.

Segundo o que tem vindo a público, prepara-se a adaptação do porta-helicópteros Izumo DDH-183 para reforçar a capacidade de defesa aérea do país no Pacífico. Trata-se de um navio de 248 metros, 27 mil toneladas e com capacidade para 14 helicópteros, incorporado na Marinha nipónica em 2015 e com uma estrutura que já então deixava adivinhar a possibilidade de instalar aviões de descolagem e aterragem vertical, como os caças furtivos F-35B, a comprar aos Estados Unidos, conforme anunciado. Diz a Nikkei Asian Review que Tóquio decidiu adquirir 42 destas unidades e planeia adquirir mais 100, por quase 9 mil milhões de dólares (cerca de 8 mil milhões de euros).

Analistas referem que a adaptação deve começar em 2020 e que os primeiros aviões deverão chegar em 2023. Se adaptado com o porta-helicópteros Kaga, também com 248 metros, 27 mil toneladas e capaz de transportar até 14 helicópteros, isso dará ao Japão uma capacidade semelhante à que o Reino Unido aplicou no combate pela defesa das Ilhas Falkland, em 1982, contra a Argentina, no Atlântico Sul. Para tornar a medida compatível com a Constituição, terá sido adiantado que o porta-aviões não será um navio de ataque.

Como referem os analistas citados pelo Diário de Notícias, é a China que o Japão teme. A par de um desenvolvimento económico inegável, a China procura uma capacidade militar conforme ao seu novo estatuto. E nesse contexto, a capacidade naval assume grande importância, pois permite projectar a força militar em diferentes locais de importância geo-estratégica muitas vezes distantes da terra-mãe. Exemplos desse esforço: a compra e modernização do porta-aviões Liaoning (o primeiro da China), a construção de um segundo porta-aviões (sem nome, de tipo 001A) e de um terceiro em fase final.

Por outro lado, a construção de bases militares em ilhas artificiais no Mar do Sul da China, o estabelecimento de uma zona de identificação de defesa aérea abrangendo as ilhas Senkaku e alegadas incursões frequentes de aviões e navios militares em espaço áereo e marítimo sob jurisdição japonesa, por parte da China, apenas reforçam a preocupação de Tóquio, apesar da aparente boa relação comercial entre os dois países.

O principal obstáculo a este rearmamento japonês, todavia, é interno. A possibilidade de uma revisão constitucional para uma matriz mais belicista e a despesa necessária a uma nova orientação estratégica militar – que poderia ser aplicada noutros sectores – têm sido criticadas com duas linhas de argumentação. Por um lado, a opção constitucional seguida desde 1947 permitiu prosperidade ao Japão e tem sido moralmente aceite pela população. Por outro, uma corrida ao armamento em casa pode provocar uma reacção da China no mesmo sentido, reforçando os receios japoneses.



Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

«Foi Portugal que deu ao Mar a dimensão que tem hoje.»
António E. Cançado
«Num sentimento de febre de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa
Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
Vergílio Ferreira
Só a alma sabe falar com o mar
Fiama Hasse Pais Brandão
Há mar e mar, há ir e voltar ... e é exactamente no voltar que está o génio.
Paráfrase a Alexandre O’Neill