Tenho dois exemplares de Tintin no Congo, de duas edições diferentes, na minha estante.

Um reproduz em fac-símile, a edição de 1937, e numa das vinhetas de uma prancha, vê-se o Tintin numa sala de aulas, a ensinar aos seus jovens alunos congoleses, enquanto aponta para o quadro de ardósia:

Mes chers amis, je vais vous parler aujourd’hui de votre patrie: la Belgique!…

Mas na outra edição, de 1996, o que Tintin ensina é uma conta de somar de dois mais dois, que aparece escrita no mesmo quadro de ardósia:

Quem é que sabe quantos são dois e dois?

O que separa essencialmente aquelas duas edições, é o facto de o Congo ter adquirido a sua independência da Bélgica, em trinta de Junho de 1960.

Entre sensivelmente a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, a Europa promoveu, assistiu e experimentou, sucessivamente a colonização e descolonização, sobretudo de África.

Estes dois movimentos vão ter uma importância enorme nas grandes rotas do transporte de passageiros e de mercadorias, e na configuração e geometria dos portos europeus.

Não existe por aquele tempo praticamente nenhum porto europeu, que não tenha sofrido a influencia daquela oscilação bipolar histórica. Quase todos os portos europeus vão evoluir ao sabor da exclusividade que as potências coloniais usufruiam no relacionamento com os seus territórios ultramarinos.

Foi através dos portos europeus que foi exercido o ciclo mais perverso da exploração colonial, que consistiu na exportação de matérias primas das colónias para a sua transformação em produtos acabados na metrópole, e posterior exportação, para consumo novamente nas colónias.

Os ingleses fizeram isto, quando obrigaram a Índia a comprar os tecidos feitos em Manchester com o algodão indiano. Sem a hipótese de alternativas.  O  algodão era  vendido a preços irrisórios aos teares da metrópole, e os  tecidos  eram comprados a preços exorbitantes a estes mesmos teares.

Todas os impérios coloniais jogaram este jogo, feito à medida das potencialidades das colónias e da capacidade tecnológica transformadora das metrópoles.

Isto significou construir os cais, coloniais e metropolitanos, à exata medida daquele ciclo, e ao serviço de um regime de exclusividade no que se refere ao comércio internacional, quase sempre oferecido de monopólio a um grande agente económico nacional metropolitano.

Foi com enorme maestria que a Europa, perdidas as colónias soube alinhar-se com o novo modelo de comércio mundial, saído da segunda guerra mundial, simultaneamente causa e efeito da descolonização maciça empreendida, ambos, comércio mundial e descolonização, feitos em conformidade com a doutrina registada na Carta do Atlântico.

A nova Europa, adotou o formato racional e generoso de uma comunidade centrada num eixo entre Paris e Bona (e depois Berlim), e no comércio do aço e do carvão, os símbolos maiores do salto civilizacional e económico que o continente tinha dado com a revolução industrial, e onde os  membros da nova unidade surgida, tinham que viver exclusivamente de si próprios, sem a dependência de territórios ultramarinos.

Num tempo não muito distante, livre das actuais restrições de circulação devidas a questões de segurança, em que se podia passear livremente num porto, por entre os seus cais, arruamentos e armazéns, era delicioso observar os vestígios da velha ordem europeia expressos em nomes exóticos  como Xangai, Mombaça, Bombaim, Montevideu, Honolulu, Dakar, Jakarta, Moçâmedes ou Java, em armazéns, de onde ainda se desprendia o aroma de café, bananas, caril, açucar, juta, azeite dendê, chá ou cacau.

Portugal foi um dos países onde mais, e mais tardiamente, se pôde desfrutar  deste estado de coisas. Onde uma companhia de navegação chamada colonial, levava pessoas e mercadorias do Minho a Timor, não podendo contudo escalar os portos dos países, sobretudo africanos, que não subscreviam a nossa política internacional.

No rescaldo da reorganização mundial saída da segunda guerra mundial, de Ialta e Potsdam para a Europa, e da Carta do Atlântico para o resto do mundo, a Europa passou a viver exclusivamente das suas ancestrais fronteiras.

Mas não se fechou. Antes pelo contrário, abandonado o protecionismo colonial, impôs-se o custo verdadeiro, ou pelo menos de mercado, dos fretes  marítimos e dos serviços portuários.

E foram precisamente portos que ainda recentemente lidavam e beneficiavam do estatuto colonial, como Roterdão, Hamburgo, Antuérpia, ou Le Havre, que se tornaram nos grandes colossos da actividade portuária mundial, até serem recentemente destronados pelo efeito de escala dos portos do oriente longínquo.

Tardiamente chegado ao seio da comunidade europeia, Portugal também empreendeu uma reforma portuária significativa e substantiva, assente em infraestruturas e processos, e mais importante, em comportamentos, traduzido actualmente no desempenho dos seus portos, como Leixões, Lisboa, Setúbal e Sines, e de dispositivos como a janela única portuária, e a factura única portuária.

Num período de grande turbulência mundial, que se estende até ao comércio  marítimo, marcado pelo confronto da necessidade simultânea de livre circulação e de medidas de segurança, e sobretudo pelo actual estado de abertura de uma potência que sempre viveu fechada, como a China, e da ameaça de fecho de outra potência que sempre viveu aberta, como os Estados Unidos, os europeus devem unir-se em torno dos seus valores e instituições.

E neste tempo de tentações de salvações messiânicas, baseadas na desagregação da ideia e da construção europeia, devemos ter sempre presente  a sabedoria de Jacinto, o Príncipe da Grã-Ventura, de A Cidade e as Serras, quando informa ao Bom Zé Fernandes.

– É muito grave, deixar a Europa !



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