Quem, como eu, for um apaixonado pela obra de Charles Dickens, consegue ao fim de algum tempo perceber quando é que a narrativa dos seus romances se aproxima do final de um capítulo, início de outro.
Isto acontece porque Dickens escreveu a maior parte dos seus romances em fascículos, para serem publicados desta forma, em folhetins que prendiam a atenção dos leitores do primeiro ao último capítulo.
Posteriormente a obra era integralmente publicada em livro, e as suas sucessivas edições, sobretudo nos países de língua inglesa, associadas aos folhetins, fizeram do escritor muito merecidamente um homem bastante rico, mas nunca o suficiente para pagar a imensa dívida que até hoje a humanidade tem com ele.
Os Cadernos de Pickwick (um dos variadíssimos nomes para a obra originalmente intitulada Posthumous Papers of the Pickwick Club) editados em Inglaterra a partir de 1836, pela Chapman and Hall, deram origem a uma onda de Pickwickismo, primeiro em Inglaterra e depois no mundo.
Uma grande parte da obra do escritor seria editada em folhetins, pela revista semanal House Hold Words.
Escritos e publicados, os fascículos eram disputados à dentada quando saíam das casas editoras, e os poucos que sobravam eram enviados de navio para Nova Iorque.
Aqui, havia quem começasse a acompanhar a jornada dos navios pelos boletins que as agências de navegação publicavam em placares, à espera da sua tão ansiada atracação, e sobretudo da chegada dos fascículos às livrarias.
E consoante a maestria do escritor tecesse o rumo da estória, assim havia leitores que mergulhavam em profunda tristeza por solidariedade com as agruras dos seus personagens, ou por contrário ficavam radiantes, eufóricos e recompensados pelos desenlaces felizes, e as benesses recebidas por esses ou outros personagens, em diferentes circunstâncias.
Mas fosse qual fosse o sentimento adquirido pela leitura, o momento de conclusão da estória, o seu capítulo final, era uma autêntica tragédia nacional, apenas mitigada pela esperança, por vezes alimentada pelos boatos que atravessavam o Atlântico no bojo dos navios, em maior número ainda do que os ratos, de que o escritor já se encontrava a escrever outra estória.
O caso mais notável aconteceu com a A loja de Antiguidades (The Old Curiosity Shop) começado a publicar em 1841 no Master Humphrey’s Clock, que relata a vida de Nell Trent e do seu avô, um dos raros personagens do universo de Dickens sem nome, e que levou a uma evasão do cais de Nova Iorque aquando da chegada do navio que transportava o último episódio.
Existem registos da época, que relatam que havia quem perguntasse desesperado para os marinheiros “se a pequena Nell estava viva”, na esperança de que eles já conhecessem o final da estória.
Não aconteceu algo muito diferente com o nosso grande Eça de Queirós, quando na aproximação ao final do século XIX, escreveu e publicou em fascículos algumas das suas extraordinárias obras, antes das mesmas conhecerem a sua versão em livro.
Prosas Bárbaras, publicadas em 1866 na Gazeta de Portugal, O Mistério da Estrada de Sintra, em 1870, em folhetins em forma de carta, saídos no Diário de Notícias, e A Ilustre Casa de Ramires, em 1897, na Revista Moderna, eram aguardados com enorme ansiedade no Brasil, conforme testemunhos da época.
E tudo isto chegou à atualidade muito bem documentado, para nosso grande deleite.
O mesmo não aconteceu contudo com Homero, e com as suas duas obras a Ilíade e a Odisseia, a ponto de se colocar em causa a sua existência (aliás, como Shakespeare), ou apenas a autoria daquelas obras, as quais provavelmente são fruto de um imaginário coletivo, o resultado de uma compilação de contributos anónimos e avulsos.
Seja de que forma for, são as obras matriciais da literatura grega, ou simplesmente da literatura, como gostamos de dizer num gesto simultaneamente de sobranceria europeia, e de desprezo pelas outras culturas.
O que também é muito importante é que é uma obra de mar, e foi pelo mar que ela deve ter chegado à Península Itálica, por forma a ser lida pelos poetas romanos, e transformada na cultura grego-romana, aquilo que nós gostamos de apelidar de cultura europeia.
Daqui, esta cultura espalhou-se pela Europa meridional, provavelmente através das estradas que partiam de Roma para todo o império. E também de barco, chegando a Cartago, disseminando-se por África, e no seio das legiões, até à Judeia, para formar o segmento definitivo, originando a cultura judaico-cristã, que nós sem ponta de pudor chamamos cultura universal, abarcando nesta designação já as Américas.
Mas mais importante que tudo, é que, e novamente por mar, aportou à Grécia, onde tinha começado. A literatura feita de mar chegava ao mar que tinha cantado, como mais tarde haveria um livro chamado Os Lusíadas de chegar à Índia.
Os poetas e prosadores gregos do século XX, leram as obras dos clássicos latinos, e os leitores de todo o mundo, interessados nisso, leêm a atual produção cultural grega.
É a esta miscigenação, contínua e permanente, esta cadeia que liga influenciador e influenciado, dilatada ou curta, no tempo e no espaço, por vezes mesmo contemporânea, com influências recíprocas, é esta mistura, que atribuímos a designação de crioula, misturada. A arte crioula.
Esta é característica de todas as formas de arte, e não apenas da literatura.
A distância mínima a que o dedo do primeiro homem fica do dedo de Deus, no teto da Capela Sistina, foi apreendida nas distâncias harmoniosas contidas na manada pintada no teto das grutas calcárias de Lascaux.
E os dois tetos, passaram para os das igrejas barrocas que podem ser vistas nas cidades coloniais das Minas Geraes, e daqui para o teto de vidro da Catedral de Brasília.
Sabemos que Picasso talvez não tivesse pintado Les demoiselles D’Avignon se não tivesse visto a exposição de estatuária de arte negra nos museus parisienses, nem Van Gogh os seus girassóis, se não tivesse observado os postais japoneses que encantaram a sua geração em Paris.
Na música, o canto dos negros transportados à força de África para as Américas, originou o jazz, que Maurice Ravel depois incorporou às suas obras.
Ainda nas artes plásticas, é notável que Fundação Miró, em Barcelona, tenha programado para a Primavera e Verão de 2017 uma exposição intitulada Os sumérios e o paradigma moderno, onde será mostrado de que forma é que a civilização suméria, entre o IV e o terceiro milénio a.C., influenciou notáveis artistas do século XX, como Michel Giacometi, Joan Miró ou Henry Moore.
A mistura e miscigenação, contínua e permanente da arte (cuja definição felizmente não consta deste trabalho), ao longo do tempo, chamamos então arte crioula.
Ou aquilo que mais nos interessa agora, a literatura crioula.
A característica primordial da literatura crioula é a viagem. E a segunda a qualidade.
Sem a viagem, as obras literárias ficavam agarradas ao chão onde tinham sido produzidas, fenecendo pouco depois da morte dos seus contemporâneos, sobretudo em sociedades que se fechavam sobre si mesmo, impedindo a entrada e saída de contactos e experiências.
Esta viagem era feita das mais diversas formas, ao sabor da evolução dos próprios meios de transporte, de cidade para cidade, de país para país.
Mas os grandes saltos espaciais, aqueles que ditaram os grandes sobressaltos civilizacionais, universais, foram feitos por barco.
Foi por barco que a literatura grega chegou a Itália, e foi de barco que a literatura greco-romana chegou a todo o Mediterrâneo. E foi sobretudo de barco que a literatura judaico-cristã transpôs o Atlântico e chegou às Américas.
Se ao longo da bordadura do grande lago, e também em África, ainda podem ter sido utilizadas estradas e caminhos, no caso do outro lado do oceano imenso, apenas os navios permitiram a chegada de Tolstoi, Shakespeare, Flaubert, ou Camões. E claro, Homero.
Realizada a grande viagem marítima, voltavam a ser os caminhos, os rios, as estradas, a transportar os livros, fazendo que eles fossem aparecer no alto dos Andes, nas grandes florestas de sequoias, nas profundezas das planícies asiáticas, nas savanas africanas e nas terras alagadas da Amazónia.
A qualidade ditava a prontidão em que a viagem era efetuada. Os livros acabavam por viajar quase todos, mas os medíocres iam parar às estantes perdidas das livrarias, ou pior, às bibliotecas das academias, enquanto os bons circulavam de mão em mão, até ao esfarelamento ou quase desintegração, mas nessa altura já estavam a viajar no imaginário dos povos, e já tinham produzido frutos.
Foi a literatura crioula que permitiu transformar o Siglo de Oro espanhol dos séculos XVI e XVII, no boom da literatura sul americana da segunda metade do século XX. Partindo de Madrid, chegado a Lima ou Cartagena das Índias, e regresso, agora não tanto a Madrid, mas mais a Barcelona, tudo em quatro séculos.
O caso da literatura russa é verdadeiramente extraordinário.
A literatura russa do século XIX, teve que ser arrancada da sua terra a ferros. Ou seja de comboio, em cima de carris.
Alcançado Paris, o romance russo era traduzida para francês, e ficava apto a seguir viagem para todo o mundo. Aqui chegado, bastava ser traduzido do francês para as línguas do mundo, do abexim ao sânscrito.
E para o português, claro. Foi graças a este processo que o meu exemplar de Ana Karenine, belissimamente encadernado a carneiro e ouro, repousa agora na minha estante em Lisboa, depois do José Saramago o ter traduzido do francês, e de o meu pai o ter adquirido em África.
A grande literatura francesa do século XIX chegou às Américas no rasto da Revolução Francesa, o que constituiu uma injustiça quase irónica, porque podia ter dotado aquela de uma característica panfletária que a sua extraordinária qualidade não merecia. Se bem que Os Miseráveis de Vitor Hugo até ensinem a forma de armar uma barricada, e tudo.
A literatura francesa foi o fermento cultural das independências americanas, a do Brasil inclusive.
Nas Américas, as letras francesas influenciaram sucessivas gerações de intelectuais ao norte e ao sul, a oriente e a ocidente, de maneira a que no século seguinte, o grande romance do século XX fosse americano; na primeira metade do período, norte-americano, e na segunda, sul-americano.
E não ia acabar por aqui a influência mútua por sobre o Atlântico, porque quando aquelas duas formas de romance quiseram ter o reconhecimento que mereciam, foi indispensável que Paris o fizesse.
Nenhum grande escritor americano era reconhecido desta maneira, inclusive na sua terra natal, sem o aval da crítica parisiense.
Esta crítica, num chauvinismo narcísico, deliciava-se em reconhecer na ficção americana o seu romance do século XIX.
Mas os franceses iriam provar o seu próprio veneno, quando um jovem chamado Nguyen Sinh Cung, antigo cozinheiro a bordo de um navio francês, e depois garçom e jardineiro em França, regressou à sua Indochina natal, impregnado de cultura gaulesa, adoptou o nome de Ho Chi Minh (aquele que ilumina), promoveu a independência da região dos franceses, e construiu um trilho moral, depois materializado e batizado com o seu nome, na guerra do Vietname, agora contra os norte-americanos, que acabou por reunificar o país.
Todo este vendaval de referências, este vai e vem de influências, foi feito à revelia dos poderes instituídos, da política ou da academia, tendo como recursos únicos os escritores e os leitores, e contando com a ajuda das editoras e das livrarias. E claro, dos transatlânticos.
Durante longos anos não existem referências ao embarque das obras de Cervantes, Goethe, Dostoievski ou Balzac, na relação das cargas dos navios. Mas sabemos que os livros seguiram, porque de repente apareceram escritores em S.Francisco, na Cidade do México, em Bogotá, e em Belo Horizonte, a descrever o remorso a la Raskólnikov.
Por contrário, imediatamente se imagina o poder instituído e oficial a ficar incomodado com os problemas que chegavam do outro lado do mar, como se já não bastassem os seus próprios problemas.
Nos primeiros anos do século XX, facilmente um industrial paulista tinha dissabores na sua fábrica, porque os seus operários andavam a ler um livro intitulado O Capital, de um tal Karl Marx, e na sua casa, porque a esposa estava a ler Sobre a psicopatologia da vida quotidiana, de um médico austríaco chamado Segismundo Freud. E o desgraçado, não conseguia imaginar de onde é que aqueles livros tinham aparecido.
O caso do realismo fantástico sul americano, é dos mais notáveis da literatura crioula.
Quando o mundo maravilhado descobriu Cem anos de solidão, os teóricos literários apressaram-se a identificar naquela obra e naquele estilo, o cruzamento da cultura hispânica, europeia, com a efabulação do imaginário indígena local.
Foi necessário que Gabriel García Márquez explicasse que o caso era bem mais complexo, porque efetivamente ele próprio andava desesperado à procura de um estilo autêntico que o satisfizesse, numa busca em que colocava a possibilidade de abandonar a literatura, trocando-a pelo cinema, caso não conseguisse solucionar o bloqueio em que vegetava, quando no seu (e agora nosso) Caribe, lhe veio parar às mãos um exemplar de A Metamorfose de um escritor checo chamado Franz Kafka. E o segredo era apenas a possibilidade que um homem tinha em transformar-se em escaravelho.
Não tinham sido os líricos e imaginativos índios locais misturados com negros africanos, a possibilitar aquela transformação, mas um circunspecto, e àquela altura, ignorado, escritor da Europa Central, a curta distância de Berlim e Viena.
Mas a história não acaba aqui, porque os críticos e estudiosos da literatura checa contemporânea, já discerniram nas obras produzidas, vestígios nítidos do realismo fantástico.
Tolstoi, arrancado a ferro dos confins da Ásia, foi depois dos mais amados. Já vimos que chegou a África, e muito mais do que na minha estante, repousa agora no meu coração.
Chegou também a Catolé do Rocha, ao sertão da Paraíba, e pode hoje ser lido, transformado nos versos da literatura de cordel, tão fabulosa na tradição cultural do nordeste brasileiro.
Ah, e quanto à pequena Nell, cujo destino toda a gente no cais de Nova Iorque queria conhecer, sabemos hoje que desafortunadamente morreu. Passou contudo a viajar eternamente na nossa imaginação.
De barco, naturalmente.