O bem aventurado que coma um quindim de iaiá, não está apenas a usufruir de um dos momentos mais deliciosos que existem à superfície da Terra, mas igualmente a participar num extraordinário processo cultural.
Esta pequena maravilha simboliza à perfeição aquilo que foi o império ultramarino português, quase tanto, e pese embora o incómodo que isto possa causar aos patriotas mais inflexíveis, os padrões com que assinalámos o mundo que íamos descobrindo.
Do mesmo modo que a maior ou menor presença do mar no seio das nações, as classifica como marítimas ou continentais, respetivamente, assim a maneira como ambas alicerçam os seus impérios, caso os possuam, na evidência explicita ou implícita da força, indispensável à construção e conservação daqueles, produz dois tipos de impérios.
No primeiro caso estão porventura a maioria dos impérios, desde os asiáticos da antiguidade, até ao romano, ao espanhol e ao inglês. No segundo, o grego, o fenício, o holandês, e o português.
Em maior ou menor grau, cada uma das potências destas duas espécies, registou a sua epopeia imperial em marcos materiais e intangíveis, sendo que os segundos, uma vez que pertencem ao domínio das ideias, tornaram-se imperecíveis.
As brasas extintas dos impérios revelaram o melhor destes, numa cinza geradora de vida.
A cultura, grega, nas suas múltiplas manifestações como nas artes e na filosofia, é mais importantes do que a pedraria da Acrópole ou dos anfiteatros semeados nas Ilhas Egeias. Também as pontes romanas espalhadas pelos destroços do império, são apenas interessantes, quando comparadas com o latim e o direito romano, sob os quais se ergueu a civilização contemporânea. E na Índia, a importância dos caminhos de ferro, e dos comboios a circularem rigorosamente ao horário, deixados pelo Raj Britânico, ainda hoje beneficiam milhões de indianos, mas a grande herança deixada pelos ingleses foi a ideia parlamentar, que faz com a Índia seja hoje a maior democracia do mundo, e que o país tenha vivido permanentemente em regime democrático desde a sua independência.
Os espanhóis deixaram catedrais magníficas no meio do relevo andino da América do Sul, mas o seu legado maior ali, foi o Siglo de Oro, que produziu seis prémios Nobel da literatura, e o realismo fantástico.
Aconteceu algo de semelhante com os portugueses, que ofereceram ao mundo, tal e qual o conhecemos hoje, não uma Via Ápia rigorosamente calcetada e drenada, que estaria hoje à mercê de rebanhos de cabras, se as restrições europeias não tivessem tornado estes simpáticos animais mais exóticos do que os grifos, mas uma maneira de chegar por mar à Índia, e que permitiu pura e simplesmente a passagem da humanidade, a par da invenção da prensa de Gutenberg, da idade média à moderna.
Melhor ou pior, muito ou pouco, os americanos conheciam a América, os indianos conheciam a Índia, e os africanos conheciam África. Mas foram os portugueses que os colocaram a conhecerem-se todos uns aos outros.
Portugal para além de oferecer ao mundo uma das línguas mais faladas do planeta, estabeleceu um sistema de comércio marítimo baseado no mercandear entre os vários lugares onde assentou praça.
Enxameou a Europa de exótico e de luxo, trazido do oriente longínquo, mas igualmente de pequenos gestos, como essa excentricidade trazida dos trópicos, que é o banho diário, ou pelo menos frequente.
Grandiosidade e singularidade encheram os porões das naus, nas suas rotas oceânicas, e nas carreiras de vai/vem intercontinentais.
Os portugueses depois de descobrirem o Brasil no primeiro ano do século dezasseis, e já como consequência da viagem pioneira à Índia, iniciaram ali uma civilização inédita de vida nos trópicos, feita de sucessivos e cautelosos passos, em que por exemplo as igrejas passaram de altares erguidos na praia, para construções de pau a pique e adobe, depois para pedra, e finalmente a talha dourada, à medida que o território permitia o estabelecimento de um quotidiano, e sobretudo que este gerava receitas.
O Brasil é o expoente máximo desta utilização dos caminhos marítimos, fixados para a eternidade em mapas que assinalavam para além das distâncias e das coordenadas possíveis, tanto os baixios dos fundos, como os ares maléficos e os ventos benéficos, caminhos utilizados para transladar de um lado para o outro dos oceanos, e sobretudo ao longo da cintura tropical que envolve o planeta, modos de vida. Verdadeiramente. Trocando o que de bom existia a oriente pelo que de bom existia a ocidente, e sempre num movimento pendular.
Principalmente espécies vegetais, que entendemos desenvolverem-se tão bem num lado como noutro, ou melhor noutro outro, um entendimento misto de empirismo, premonição e ciência.
Esta transferência incessante de espécies sobre os oceanos, tanto foi feita num sentido, como na transposição da cana sacarina da Ilha da Madeira para a América, possibilitando o nascimento do Brasil, como no outro, patente na introdução do milho americano na alimentação dos europeus, causando uma verdadeira revolução no dia a dia das populações, sobretudo da Península Ibérica.
E uma vez mais, tanto originou enormes cargas e consequências relevantes, como na cana sacarina e no milho, como foi de proporções mais delicadas, como aconteceu com o Pau Brasil, que rapidamente perdeu a importância a que parecia destinado, mas não antes de permitir esta coisa extraordinária de o Brasil ser o único país do mundo que possui nome de árvore.
Em tempo de ecologia global, é bom que o planeta saiba quanto deve a Portugal nesta matéria.
Mas o Brasil e Portugal, não partilham apenas raízes misturadas e comuns, como por exemplo o húmus fenício, feito de comércio marítimo sereno e institucional.
Ainda hoje essa herança pode ser observada num final de tarde tranquilo, em Salvador, no cais dos saveiros, pequenas e elegantes embarcações à vela, que levam e trazem de tudo na sua navegação pelo Recôncavo da Bahia de Todos os Santos.
E se as raízes sustentam os povos no passado, e justificam e explicam as origens, o horizonte transporta-os ao futuro. As raízes pertencem à partida e o horizonte à chegada.
Portugal e o Brasil, partilham porventura o mais importante, o horizonte.
Este é feito de gestos como por exemplo o da descentralização dos portos brasileiros, iniciada recentemente, e sintomaticamente, pelos portos pernambucanos, ou o Projeto de I&D, feito numa parceria entre a universidade, neste caso o IST, e a indústria, para a criação de uma plataforma de gestão de parques de contentores inteligentes, candidata ao Portugal 2020, e destinada ao mercado europeu.
Ou ainda a promoção de procedimentos portuários comuns para os portos de língua portuguesa, apresentada na última e recente reunião da Associação dos Portos de Língua Portuguesa (APLOP).
O Brasil seguramente vai ultrapassar a turbulência da atualidade, e vai rumar em bonança e prosperidade, ao porto grandioso que lhe está destinado, e Portugal contornados certos escolhos, navegar confiante nos mares que ofereceu ao mundo.
Mas voltemos ao nosso quindim de iaiá, que não tem uma estória menos interessante.
Com o Brasil centralizado no nordeste, dos séculos XVI e XVII, fixado às margens do eixo Pernambuco e Bahia, e com um padrão de vida sempre que possível semelhante ao da Metrópole, particularmente em matéria religiosa, acabou por surgir o processo dos doces conventuais, essas delícias de acuçar, imaginação, ovos, requinte e amêndoa.
O Brasil tinha aqueles ingredientes todos, à exceção da amêndoa. Então recorreu-se ao que existia na terra, e a amêndoa foi maravilhosamente substituída pelo coco.
E assim, doravante, e para nosso grande prazer, os doces de ovos brasileiros seriam idênticos aos portugueses, com o coco em vez de amêndoa.
Simples? Nem tanto. Porque também não havia coco no Brasil, e os coqueiros tiveram que ser trazidos da Índia, onde existiam em profusão, muito provavelmente oriundos da Polinésia. Da Índia, sempre pelos portugueses, foram transpostos com sucesso para Moçambique, depois para Cabo Verde, e só então para o Brasil.
Assim um país que tem o nome de uma árvore, que hoje pouca gente conhece, acabou por ser iconicamente (re)conhecido pelos seus coqueirais a perder de vista, paisagens deslumbrantes feitas de uma árvore que veio da Ásia longínqua.
No meu entendimento, factos como estes ilustram perfeitamente o lado sensorial, sensual, prático, orgânico do nosso império ultramarino, e o humilde quindim passa a valer quase tanto como um padrão dos descobrimentos, com vantagens inequívocas para quem se dispuser a comer os dois.