Como devemos «Governar» os Oceanos? Que papel deve assumir a Europa no panorama marítimo global? E Portugal? Qual o ponto de equilíbrio entre a salvaguarda do ambiente (marinho) e os padrões de desenvolvimento em que nos baseamos? Quem deverá ter as chaves do poder sobre os oceanos: o sector privado ou o sector público? E as cidades flutuantes serão algum dia uma realidade?
Eis algumas das questões abordadas na conferência internacional dedicada ao tema «If the Oceans Rule the World, Who Will Rule the Oceans?» promovida pelo Jornal da Economia do Mar.
Nem todas as questões tiveram respostas claras. Mas dificilmente um encontro em local tão emblemático como o Oceanário de Lisboa, como foi o caso, poderia ser mais propício para que um painel composto por João Aguiar Machado, Director-Geral das políticas de assuntos marítimos e pescas da Comissão Europeia (DG MARE), João Fonseca Ribeiro, da Blue Geo Lighthouse e ex-Director-Geral de Política do Mar, Francis Vallat, Chairman da Rede Europeia de Clusters Marítimos, e Fréderic Moncany, Chairman do Cluster Marítimo Francês, devidamente «instigado»por Armando Marques Guedes, professor da Universidade Nova de Lisboa, fosse desafiado a pronunciar-se sobre a governação, a economia e a sustentabilidade dos oceanos.
Tal como o título da conferência sugeria, a governação dos oceanos foi o tema central da tertúlia. E nessa matéria, dois grandes desafios foram lançados, um à escala europeia e outro à escala mundial. O primeiro partiu dos dois responsáveis pelos clusters marítimos (europeu e francês) presentes no painel e foi a sugestão para a criação de um Conselho Europeu dos Oceanos no seio da União Europeia (UE), à semelhança do Conselho Europeu de Pescas, e teve o aliciante de ser feito na presença do próprio Director-Geral das políticas de assuntos marítimos e pescas da Comissão Europeia (CE). O último veio do ex- Director-Geral de Política do Mar de Portugal e constituiu um convite à reflexão sobre modelos alternativos de desenvolvimento com origem no mar, dos quais as cidades flutuantes parecem ser o exemplo mais saliente.
O Mar e a Europa
Sem menosprezar o trabalho da UE em prol da economia marítima e defendendo que a Europa é, “mais do que nunca, a solução e não o problema” nesta matéria, Francis Vallat, todavia, reconheceu que falta à UE uma verdadeira estratégia marítima, que envolva a economia, a segurança e o ambiente. Até porque o homem é o principal predador do mar e os desafios à Europa são muitos neste sector.
Fréderic Moncany deu exemplos desses desafios. A ascenção da China que, conforme sublinhou, tinha em Dezembro “o maior número de navios militares no Mediterrâneo desde há quatro mil anos” e “produz em cada quatro anos tantos navios militares como aqueles de que a França dispõe actualmente”, os refugiados que chegam regularmente às costas europeias, ou as negociações em curso para um novo Acordo de Implementação da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar sobre Conservação e Utilização Sustentável da Biodiversidade Marinha em Áreas Além da Jurisdição Nacional (BBNJ).
E destacou alguns tópicos que, na sua opinião, merecem uma atenção especial: o Brexit, devido à importância do Reino Unido na economia marítima internacional, a pesca, cujos limites de captura deviam passar de anuais a plurianuais, permitindo planear os investimentos no sector de outra forma, e a necessidade de criar um Conselho Europeu para o Mar, dado que o mar é um tema transversal a várias áreas da governação. Considerou a propósito que seria mais importante que esse Conselho fosse um Conselho de Ministros de alto nível, “capaz de coordenar os assuntos do mar”, do que um fórum para representar a totalidade dos Estados membros.
João Aguiar Machado acompanhou os representantes dos clusters marítimos quanto ao efeito do BBNJ, que considera uma “negociação importante”, e à necessidade de melhor governação dos oceanos, que requerem “um melhor uso dos recursos”. A propósito de um Conselho Europeu dos Oceanos, considerou que “faltam fóruns prévios a esse Conselho” e que o mar “é demasiado transversal”. “Quando se fala de mar, é um misto de ambiente, negócios estrangeiros, economia…”, referiu. E elogiou a dinâmica gerada a nível local pelos clusters marítimos, que congregam empresas e outras entidades ligadas ao mar e nos quais os portos constituem o núcleo central.
Já Fréderic Moncany recordou que por ser transversal, o mar deveria estar sujeito a uma governação com os sectores público e privado em pé de igualdade. E lembrou que, há cerca de um ano, ajudou a criar em França o Comité Marítimo Francês, que apelida de força de intervenção marítima francesa (ou task force maritime française). “Não é uma estrutura, é um método”, afirmou. Funciona directamente sob a alçada do Gabinete do Primeiro-Ministro, integra o presidente do cluster marítimo francês e reúne todos os meses os representantes dos sectores público e privado ligados ao mar, para discutir “as matérias que estão bloqueadas” e outras do seu interesse. “Acho que devemos fazer o mesmo com a Rede Europeia de Clusters Marítimos e a Comissão Europeia”, acrescentou. “Tentámos”, rematou.
Reagindo, João Aguiar Machado afirmou que para conseguir isso não bastaria existir um coordenador geral, porque, reforçou, o mar tem a ver com “energia, alterações climáticas, transportes…”, aludindo à transversalidade do tema. Neste caso, também seria necessário ter o envolvimento dos cidadãos e dos jovens. “Se começarmos com a limpeza de praias, os políticos rapidamente se empenham”, sublinhou. E lembrou a conferência «Our Ocean», que se realizou em Malta em Outubro de 2017, promovida pela UE e dedicada à sustentabilidade e segurança dos oceanos. “Foi importante ter lá mais gente do que apenas os ministros do Mar da UE”, referiu. De acordo com os organizadores do evento, durante dois dias, estiveram presentes mais de 40 ministros e outras altas figuras de mais de 100 países.
Afastado das responsabilidades oficiais mas sem desdenhar a sua experiência na Marinha e como Director-Geral de Política do Mar, João Fonseca Ribeiro reconheceu que “hoje o mar é pop”. No plano administrativo, em Portugal, entende a gestão das questões do mar “está dispersa por vários ministérios” e discorda da solução encontrada pelo Governo actual nessa matéria. Acrescentou que essa gestão devia ser mais próxima do Primeiro-Ministro, mas que é o próprio sistema instituído que resiste à mudança. “Hoje, quando as empresas querem aceder a fundos para o mar, eles provêm de 15 origens diferentes” e “o Ministério do Mar só tutela três”, referiu.
No plano estratégico, Armando Marques Guedes sugeriu que a Europa enfrenta o risco de, não duas, mas três velocidades: a dos países do norte, a dos países do sul e a dos países fundadores (Bélgica, Holanda, Luxemburgo, França, Alemanha e Itália). E alertou para a mudança de paradigma no contexto da segurança e cooperação internacional, exemplificando com o distanciamento progressivo da Turquia face aos seus aliados ocidentais e a aproximação de Marrocos. João Aguiar Machado admitiu que a Europa atravessa um momento difícil, mas que a grande divisão europeia “é entre Leste e Oeste”. “E no Leste, a economia do mar nem sequer é a sua prioridade”, rematou. No entanto, reconheceu que actualmente, a questão da governação do mar não abrange apenas a componente ambiental (sustentabilidade, gestão dos recursos marinhos), mas também a da segurança marítima. João Fonseca Ribeiro, acrescentou que a Europa deve ter uma estratégia marítima integrada.
Novos modelos de governação do mar
Na qualidade de especialista em estratégia e geopolítica, Armando Marques Guedes notou que “toda a geopolítica se aproxima do mar” e que os modelos de governação a partir do mar correspondem a uma evolução das tendências geopolíticas. “É junto ao mar que se concentra 93% a 95% do comércio mundial e com um potencial de crescimento gigantesco”, sublinhou. E não esqueceu as lições da história: a conquista de pontos focais junto ao mar durante os Descobrimentos portugueses, a sequência que lhes deram os ingleses e os holandeses, e posteriormente os Estados Unidos, ou a presença cada vez maior que a China tem hoje (por via comercial ou militar) junto a territórios costeiros um pouco por todo o mundo.
Apesar desta tendência e dos oceanos estarem a receber cada vez mais atenção, ou de representarem 70% do planeta, 50% do oxigénio que absorvemos e 25% do C02 capturado, como mencionou João Aguiar Machado, ou ainda do empenho crescente da própria UE na economia azul, existe a percepção de que a exploração espacial é alvo de mais esforços do que o mar e de que possuímos mais conhecimentos sobre a Lua ou Marte do que sobre o mar do nosso próprio planeta. Igualmente paradoxal é o modo como exploramos os recursos marinhos (a água, as espécies marinhas ou os minerais), não poucas vezes de forma insustentável.
Da audiência partiu o exemplo de outro paradoxo, de carácter territorial e aplicado a Portugal, embora porventura não apenas ao nosso país. Trata-se do facto de Portugal estar a reclamar a extensão da sua plataforma continental – e com isso uma ampliação da área marinha sob sua jurisdição – junto das Nações Unidas, enquanto, em simultâneo, perde quase todos os anos área terrestre para o mar. Todas estas realidades colocam opções sobre o lugar que queremos – o país, a Europa e o mundo – atribuir ao mar no nosso destino, e das quais decorre a escolha de modelos de governação dos oceanos.
João Fonseca Ribeiro aproveitou a ocasião para desafiar o painel de oradores e a audiência a considerar a possibilidade de modelos de governação dos oceanos com origem nos próprios oceanos. E deu o exemplo das cidades flutuantes. Questionado pela audiência sobre se acreditava na possibilidade de tais cidades poderem navegar evitando os sistemas de tempo, respondeu que sim, embora não pudesse prever quando. “A tecnologia pode vencer os medos que hoje receamos enfrentar, o problema é a mudança de paradigma, porque a tecnologia já existe”, referiu o ex-Director-Geral de Política do Mar.
Este antigo responsável pela política do mar recordou a experiência que está a ser desenvolvida no Taiti sob os auspícios do Seastanding Institute, uma organização de São Francisco sem fins lucrativos fundada em 2008, conforme consta do seu site. Para administrar a zona da experiência e construir ilhas flutuantes foi criada a empresa Blue Frontiers. Tais ilhas serão concebidas para se adaptarem à mudança do nível das águas e serem auto-suficientes em energia, água, tratamento de resíduos e águas residuais e produção de alimentos, com estruturas de madeira local, bambu, fibra de coco, metal e plásticos reciclados e jardins nos telhados. “Não será por falta de água, energia ou produção de proteínas” que um projecto destes falha, sugeriu João Fonseca Ribeiro.
Além de constituírem uma solução para os Estados que correm o risco de desaparecerem por submersão face ao aumento do nível do mar, como sucede com várias ilhas do Pacífico, por exemplo, estas cidades flutuantes poderão representar modelos alternativos de governação da sociedade. “Podem mesmo servir para reescrever as regras que governam a sociedade”, referiu João Fonseca Ribeiro, que considera que “não devemos fazer no mar o mesmo que fizemos em terra” e que “os modelos colectivos de governação em terra não são adaptáveis ao mar”. No mar, sublinha, “os modelos de governação serão mais assentes em opções dos cidadãos”.
“Ainda não sei quem governará os oceanos, até porque os modelos de governação ainda estão pouco assimilados, mas uma coisa é provável: que esse modelo de governação deve vir a envolver muito mais os cidadãos do que o Estado, vai passar pela importância do sector privado e será a partir do mar”, explica João Fonseca Ribeiro. Os modelos de governação com origem em terra “são muito mais condicionantes, tanto quanto podemos elaborar actualmente”, esclareceu o mesmo orador. E admitiu que “talvez tenhamos comunidades nos oceanos antes de as termos em Marte”. Da audiência partiu a questão de saber se os privados seriam, no futuro, os novos senhores feudais do mar. Do painel, respondeu Armando Marques Guedes, que considerou que os Estados continuarão a ser os grandes decisores no mar, não os privados. Aos privados caberá o risco, a inovação e a criatividade, referiu.
Os privados, todavia, estão muitas vezes associados à destruição do próprio mar, como no caso da exploração de petróleo e gás offshore ou no da mineração em mar profundo (o chamado deep sea mining). Sobre esta última questão, Francis Vallat admite a importância económica da exploração dos recursos marinhos (essencialmente nódulos de manganês, crostas cobaltíferas e sulfuretos metálicos), desde que essa exploração cumpra regras de sustentabilidade. Um assunto que deve merecer a atenção de Portugal, devido à existência de alguns destes recursos nas águas dos Açores, já cobiçadas por empresas internacionais.
Tal preocupação ambiental com a mineração em mar profundo justifica-se também porque, conforme admitiu a generalidade do painel, é uma actividade com elevado potencial destrutivo dos oceanos e dos recursos marinhos. “Se virmos os estragos que o Homem fez em terra, é fácil imaginar o que pode fazer no mar”, reconheceu João Aguiar Machado. Um exemplo a favor dos argumentos de João Fonseca Ribeiro sobre modelos de governação para o mar, onde 60% da área é no man’s land, ou seja, sem jurisdição, distintos dos que são seguidos para terra.
A questão das opções a fazer quanto ao mar foi ainda exemplificada com uma situação existente em Portugal por João Fonseca Ribeiro. “Os nossos portos e pesca não estão construídos devidamente para as circunstâncias actuais do mar, que com as alterações climáticas, podem agravar-se”, referiu. “Temos que saber quais os portos de pesca que queremos ter e facilmente colocamos lá a frota de pesca existente”, sublinhou, acrescentando que é uma questão de “ter um porto de pesca à porta de cada comunidade piscatória ou de termos um porto seguro para quem trabalha”.
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