De onde verdadeiramente surge a inspiração poética talvez nunca o possamos vir a determinar inteiramente mas, empírica e individualmente, no caso Português, como nos diz José Brissos-Lino, por «saber de experiência feito», que o Mar aí tem a sua quota parte de decisiva importância, isso afigura-se inegável.
Projecto Kraken

A COR DA NOITE

A cor da noite é a imensa capa rota que me veste

quando todos os pardais silenciam

o efémero reinado do deus sol

e a brisa marítima faz ouvir os ais

dos marinheiros do vento

então a essência do trigo adormece por breves horas

arrefece os seus medos negros e fantasmas adoptivos

mas as lágrimas abertas na alvorada

fazem a lavagem das almas

da serra inicial

no sempre renovado acordar

para outro capítulo de um tempo inteiro

e longo.

p. 24

DEPOIS DA CHUVA O SILÊNCIO

Depois da chuva o silêncio

brusca pincelada em tons claros na tela da montanha

na branca espera dos pássaros

por entre rumores de fios de água a afagar as pedras

cabritos juvenis saltitam de novo no vasto prado de veludo

onde os insectos retomam esforçados labores

na certeza de tecer engenhosos amanhãs

doces e promissores quanto baste. Ao longe vê-se que o mar imenso

continua por lá

ainda quieto e presente no mesmo sal de sempre

majestático Poseidon

mesmo depois da morte do tempo parado

a pairar sobre o momento em que a luz serena

anoitece os seus mistérios eternos

dentro do peito de cada homem.

p. 25

SEI DE UM NAVIO

Sei de um pequeno navio humilde

sem leme nem radar

o seu destino solitário é a largueza do mar alto

discorrendo pelos desvairados cantos do mundo

na imensidão das águas salgadas cumpre

seu destino modestamente profundo

aberto e livre

navega sem medo de ventos, adamastores

monstros marinhos ou tempestades mais ou menos violentas

como porto de abrigo a viagem e o céu como lençol

tem o sol por pão

a brisa como água

rosa-dos-ventos companheira

e a noite por amante.

Sei de um velho navio

a que alguém chamou Portugal.

p. 29

A OCIDENTE

A Ocidente moram filósofos e alquimistas

a roda, a pólvora e o sextante

trovadores, canções de amigo

desencontrados romeus e julietas

bomba atómica, penicilina

tabaco, rum, batata, milho

Jesus de Nazaré

a catedral e a revolução industrial

bruxas e aeroplanos

democracias

ciganos

mas sobretudo aquela leda noite

onde o sol faz a cama e adormece como anjo

recompondo-se das loucas canseiras do dia

desde o longínquo momento em que se ergue promissor

ousado e jovem

entregando-se nos braços da aventura

do outro lado da terra.

p. 33

A ILHA

Há sempre uma ilha à espera de cada homem

um lugar sem tempo nem marcas

onde a chuva faz crescer a consistência dos pensamentos

um lugar sitiado que amolece almas perturbadas

e abriga marinheiros exaustos

entre penhascos incertos

bosques cerrados de vida

nuvens demoradas no céu

onde o desvario dos pássaros vai alimentar de colorido

a calma do fim de todas as tardes

e os peixes se chegam e ajeitam

para ouvir então a pregação dos santos.

p. 34

OS DEUSES

Na montanha acomodam-se os deuses do Olimpo

em cumplicidades várias

numa terra de homens à beira do céu

e as nuvens descem todas as manhãs

a repousar da longa jornada desde o mar oceano

fazem um amor discreto com os picos mais altos

antes de prosseguir viagem

e depois vão despejar os seus ovos em terras do interior

em ferida aberta

a esperar o ouro potencial vindo do alto

que há de fazer germinar um tapete verde

de vida plural e plena.

p. 37

UM POUCO MAIS DE AZUL

Um pouco mais de azul

e serias o meu céu imenso

um pouco mais de verde

e serias o meu mar oceano

por ti voaria alto como a águia

nadaria alegremente

entre golfinhos felizes

mas com um pouco mais de branco

acabarás montanha nevada

inatingível

gelada e fria como o silêncio

da morte.

p. 38

A MINHA VARANDA

Não tenho gato para afagar

apenas uma varanda debruçada

sobre a rua

é nela que afago o sonho

e encho os olhos de mundo

em quadro vivo e a cores

com cheiros e sons da cidade

paleta que filtra as músicas

da tarde

da minha varanda vejo o mar

nas nuvens que passam

barcos velozes, velas brancas

desfraldadas ao vento

da minha varanda vejo a aldeia

para lá do campanário

da igreja

e a floresta

na copa das árvores

do jardim público

na minha varanda não chove

é sempre Primavera amena

e os pregões do bairro

são árias conhecidas da ópera

do povo.

p. 48

NÃO SOU UM ALBATROZ

Não sou um albatroz.

(Henry Miller, O sorriso aos pés da escada)

Não sou um albatroz

não mudo de poiso

assim

tenho raízes enroladas nas patas e âncoras

na paisagem dos olhos

tenho que voar

e regressar

ao meu chão

o mar que me chama

também me segura

na margem dos dias.

p. 67

PESSOA RIMA COM LISBOA

Pessoa rima com Lisboa

disse o poeta popular

ninguém o afasta da geométrica

calçada portuguesa

da cidade pombalina

cheirando a sardinha e a rosmaninho

nem dos candeeiros públicos

nem da ginginha

bebida nos fins de tarde

para aquecer as mágoas

quando o Tejo se acomoda

para passar a noite. Aqueles óculos

enxergam o mundo todo

inteiramente redondo

a girar sobre si mesmo

como um carrocel de feira

e Portugal a ficar para trás

a carregar a sua pesada história

nas costas fracas

sempre castigadas

por reis, guerras e repúblicas.

p. 81

José Brissos-Lino. Vestígios de Azul, s. l., Calipso, 2019



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«Foi Portugal que deu ao Mar a dimensão que tem hoje.»
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Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
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