

A COR DA NOITE
A cor da noite é a imensa capa rota que me veste
quando todos os pardais silenciam
o efémero reinado do deus sol
e a brisa marítima faz ouvir os ais
dos marinheiros do vento
então a essência do trigo adormece por breves horas
arrefece os seus medos negros e fantasmas adoptivos
mas as lágrimas abertas na alvorada
fazem a lavagem das almas
da serra inicial
no sempre renovado acordar
para outro capítulo de um tempo inteiro
e longo.
p. 24
DEPOIS DA CHUVA O SILÊNCIO
Depois da chuva o silêncio
brusca pincelada em tons claros na tela da montanha
na branca espera dos pássaros
por entre rumores de fios de água a afagar as pedras
cabritos juvenis saltitam de novo no vasto prado de veludo
onde os insectos retomam esforçados labores
na certeza de tecer engenhosos amanhãs
doces e promissores quanto baste. Ao longe vê-se que o mar imenso
continua por lá
ainda quieto e presente no mesmo sal de sempre
majestático Poseidon
mesmo depois da morte do tempo parado
a pairar sobre o momento em que a luz serena
anoitece os seus mistérios eternos
dentro do peito de cada homem.
p. 25
SEI DE UM NAVIO
Sei de um pequeno navio humilde
sem leme nem radar
o seu destino solitário é a largueza do mar alto
discorrendo pelos desvairados cantos do mundo
na imensidão das águas salgadas cumpre
seu destino modestamente profundo
aberto e livre
navega sem medo de ventos, adamastores
monstros marinhos ou tempestades mais ou menos violentas
como porto de abrigo a viagem e o céu como lençol
tem o sol por pão
a brisa como água
rosa-dos-ventos companheira
e a noite por amante.
Sei de um velho navio
a que alguém chamou Portugal.
p. 29
A OCIDENTE
A Ocidente moram filósofos e alquimistas
a roda, a pólvora e o sextante
trovadores, canções de amigo
desencontrados romeus e julietas
bomba atómica, penicilina
tabaco, rum, batata, milho
Jesus de Nazaré
a catedral e a revolução industrial
bruxas e aeroplanos
democracias
ciganos
mas sobretudo aquela leda noite
onde o sol faz a cama e adormece como anjo
recompondo-se das loucas canseiras do dia
desde o longínquo momento em que se ergue promissor
ousado e jovem
entregando-se nos braços da aventura
do outro lado da terra.
p. 33
A ILHA
Há sempre uma ilha à espera de cada homem
um lugar sem tempo nem marcas
onde a chuva faz crescer a consistência dos pensamentos
um lugar sitiado que amolece almas perturbadas
e abriga marinheiros exaustos
entre penhascos incertos
bosques cerrados de vida
nuvens demoradas no céu
onde o desvario dos pássaros vai alimentar de colorido
a calma do fim de todas as tardes
e os peixes se chegam e ajeitam
para ouvir então a pregação dos santos.
p. 34
OS DEUSES
Na montanha acomodam-se os deuses do Olimpo
em cumplicidades várias
numa terra de homens à beira do céu
e as nuvens descem todas as manhãs
a repousar da longa jornada desde o mar oceano
fazem um amor discreto com os picos mais altos
antes de prosseguir viagem
e depois vão despejar os seus ovos em terras do interior
em ferida aberta
a esperar o ouro potencial vindo do alto
que há de fazer germinar um tapete verde
de vida plural e plena.
p. 37
UM POUCO MAIS DE AZUL
Um pouco mais de azul
e serias o meu céu imenso
um pouco mais de verde
e serias o meu mar oceano
por ti voaria alto como a águia
nadaria alegremente
entre golfinhos felizes
mas com um pouco mais de branco
acabarás montanha nevada
inatingível
gelada e fria como o silêncio
da morte.
p. 38
A MINHA VARANDA
Não tenho gato para afagar
apenas uma varanda debruçada
sobre a rua
é nela que afago o sonho
e encho os olhos de mundo
em quadro vivo e a cores
com cheiros e sons da cidade
paleta que filtra as músicas
da tarde
da minha varanda vejo o mar
nas nuvens que passam
barcos velozes, velas brancas
desfraldadas ao vento
da minha varanda vejo a aldeia
para lá do campanário
da igreja
e a floresta
na copa das árvores
do jardim público
na minha varanda não chove
é sempre Primavera amena
e os pregões do bairro
são árias conhecidas da ópera
do povo.
p. 48
NÃO SOU UM ALBATROZ
Não sou um albatroz.
(Henry Miller, O sorriso aos pés da escada)
Não sou um albatroz
não mudo de poiso
assim
tenho raízes enroladas nas patas e âncoras
na paisagem dos olhos
tenho que voar
e regressar
ao meu chão
o mar que me chama
também me segura
na margem dos dias.
p. 67
PESSOA RIMA COM LISBOA
Pessoa rima com Lisboa
disse o poeta popular
ninguém o afasta da geométrica
calçada portuguesa
da cidade pombalina
cheirando a sardinha e a rosmaninho
nem dos candeeiros públicos
nem da ginginha
bebida nos fins de tarde
para aquecer as mágoas
quando o Tejo se acomoda
para passar a noite. Aqueles óculos
enxergam o mundo todo
inteiramente redondo
a girar sobre si mesmo
como um carrocel de feira
e Portugal a ficar para trás
a carregar a sua pesada história
nas costas fracas
sempre castigadas
por reis, guerras e repúblicas.
p. 81
José Brissos-Lino. Vestígios de Azul, s. l., Calipso, 2019