A relação de Portugal com o mar, face à história, localização, recursos naturais e quadro político do país, está a gerar expectativas sobre a capacidade nacional para fazer da economia azul o motor do seu desenvolvimento. Numa conferência/diálogo sobre o tema promovida pelo Jornal da Economia do Mar, em Lisboa, no âmbito da Oceans Business Week, vários especialistas lançaram pistas sobre o papel que o mar teve, tem e poderá ter no modelo económico português.
Para Tiago Pitta e Cunha, ex-consultor para o Ambiente, Ciência e Assuntos Marítimos do ex-Presidente da República Cavaco Silva e com um longo percurso associado às questões do mar, Portugal está num “momento de transição”. Depois do desmantelamento do cluster marítimo nacional, no final dos anos 70 do século passado, e de ter votado o tema do mar ao ostracismo, Portugal recuperou o tema e, desde 1997, procura enquadrá-lo na sua agenda de desenvolvimento.
“Durante mais de uma geração houve um apagão relativamente ao mar e o facto de ele ter terminado deve ser visto como um progresso”, referiu o antigo consultor presidencial. Em 1997, quando ele próprio se envolveu nas questões do mar, “o tema era considerado esotérico”, e como tal desvalorizado, “excepto pelo sector científico”. Pouco depois, “passou a algo de exótico, algo que sabemos que existe, mas num país distante”, susceptível de gerar uma simpatia condescendente.
Entretanto, “as coisas evoluíram”, a comunicação social passou a interessar-se pelo tema, e o próprio Presidente da República atribuiu uma importância determinante ao mar num discurso institucional, pronunciado nas celebrações do 25 de Abril de 2010. De exótico, o mar passou a tema incontornável da política portuguesa, a integrar os programas eleitorais e hoje não há Governo sem um Ministério dedicado ao mar.
Apesar de reconhecer a evolução, Tiago Pitta e Cunha recordou que a Lei de Bases do Ordenamento e Gestão do Espaço Marítimo tem pouco mais de um ano e que “vamos passar uma fase difícil, de capacitação para criar as condições de mercado, de desenvolvimento da economia, de riqueza e emprego”. E isso demora tempo. “Quem quiser enriquecer depressa com o mar, é melhor mudar de sector, porque isso não sucede amanhã”, alertou. Mas se o objectivo for “deixar um país melhor para as próximas gerações, então o mar vale a pena”, acrescentou.
A conjuntura nacional reforça a prudência do orador. Face à situação económica actual, “quem é que pode chegar junto de um empresário e pedir-lhe para aplicar o seu capital no mar, apenas porque nós achamos que é bom?”, questionou. E a situação política também não desperta confiança, segundo alguns. Francisco Espregueira Mendes, advogado e orador na conferência, destacou “a falta de confiança que existe para investir em Portugal, por causa da instabilidade legislativa”. Tal incerteza face às leis em vigor gera insegurança e retrai os investidores, admite o advogado.
Jorge d’Almeida, engenheiro naval com carreira dentro e fora do país no sector marítimo-portuário, e orador nesta conferência, acrescentou o facto de alguns responsáveis ligados a assuntos do mar não dominarem a matéria. Deu o exemplo da AICEP, agência responsável pela captação de investimento externo e “senhoria de uma vasta área em redor do porto de Sines”, na qual não identifica ninguém com conhecimentos na área marítima. “Não conheço nenhum e lido com eles há anos”, referiu.
O mar e a tradição
A par da estabilidade legislativa e de uma conjuntura económica favorável, juntamente com a geografia do país, há quem recorde a tradição marítima portuguesa como factor mobilizador da economia do mar. Mas essa tradição e o espírito que lhe está associado pode ser contraproducente.
Por um lado, só recentemente é que o apelo ao regresso de Portugal ao mar deixou de ser um discurso próximo do passado ultramarino para ser – ainda assim, sem unanimidade – sinónimo de desenvolvimento. Por outro, o pessimismo que caracteriza o povo português, como entende Jorge d’Almeida, resulta precisamente da herança marítima nacional. “Durante séculos, tivemos que viver com a percepção de que as pessoas que iam viver a aventura marítima não voltavam”, referiu. Ao ter gerado um pessimismo secular na população, na visão do engenheiro naval, o mar pode ter ficado para sempre associado a tudo o que corre mal no país.
Armando Marques Guedes, ex-presidente do Instituto Diplomático e professor com um percurso académico e obra na área das ciências políticas, geopolítica e direito internacional público, igualmente orador da conferência, retira algum peso à relação de Portugal com o mar. Segundo afirmou, “Portugal tem fases em que tem sido uma nação marítima”. “O que não temos é uma identidade marítima”, acrescenta, mas ela é reconhecida em quase toda a Bacia do Atlântico e na Bacia do Pacífico.
Para Armando Marques Guedes, Portugal “tem uma clara marca de uma nação que ciclicamente tem vivido virado para o mar”. E identifica três ciclos imperiais em que isso ocorreu: o que começou com Vasco da Gama e a descoberta do caminho marítimo para a Índia, rompendo a hegemonia marítima de Veneza; o ciclo brasileiro; e o africano. Acrescenta outro ciclo imperial, que admite falhado e não reconhecido – o da União Europeia.
O mesmo orador questionou uma tese, de acordo com a qual a Bacia do Atlântico está a perder importância estratégica. Admite que o Atlântico “está a ganhar importância” e recorda que a maior aliança militar da história, que é a NATO, assenta mais na relação transatlântica entre os seus membros do que em qualquer outra. E que os dois maiores blocos comerciais do mundo são a União Europeia e os Estados Unidos, ambos com fronteiras atlânticas. E ainda que “três triliões de dólares de fluxos financeiros diários passam pelo Atlântico”.
O futuro passa pela descarbonização
As alusões ao passado não fizeram esquecer o futuro que, segundo os oradores, o mar pode representar para Portugal. E, na generalidade, reconheceram a necessidade de uma “faísca” para que o mar ganhe um novo impulso nacional. Tiago Pitta e Cunha foi um pouco mais longe e sugeriu caminhos para a economia do mar.
Mencionando o exemplo da aposta da PSA no porto de Sines, que considerou uma “faísca”, quando a empresa “estava a perder a corrida internacional contra um concorrente”, Jorge d’Almeida referiu também o exemplo do armador grego Alexander Panagopoulos, que se instalou em Portugal em 2008, onde mantém uma sucursal da sua empresa Arista Shipping, dedicada à gestão comercial e técnica da frota própria e de terceiros em outsourcing.
O mesmo orador acredita que, estando a actual Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, já informada desta situação, a mesma poderá transforma-se em mais uma “faísca”, capaz de atrair investidores e capital para a economia marítima nacional, que dele carece. E admitiu que a evolução do sector depende de epifanias, como a da PSA e do armador grego. Francisco Espregueira Mendes, admitindo que “agora está na moda falar no mar, todas as semanas nasce uma ideia sobre o mar, mas falta a sua concretização”.
Nenhuma “faísca” gerará calor na economia, contudo, se não soubermos para onde caminha o mundo, considera Tiago Pitta e Cunha. E esse caminho “passa pela sustentabilidade, pelo ambiente e pelas alterações climáticas”, questões que considera “existenciais, ou seja, de sobrevivência da espécie humana”, referiu. E recordou que “não foi por acaso que o Papa dedicou uma encíclica às alterações climáticas, foi porque considera o tema uma questão existencial”.
Daqui decorre que “temos que mudar a nossa relação com o planeta e a natureza”, acrescentou. Confiante de que isso irá suceder por motivos de sobrevivência global, o orador considerou que o será pela via da descarbonização, na qual o mar desempenhará um papel fundamental. Será assim nas energias (com as renováveis), no sector alimentar (com os produtos marinhos) e no transporte marítimo (com os navios limpos). Em todas estas áreas, o mar pode responder às questões existenciais fornecendo alternativas de comportamentos, das quais resultará uma nova economia.
E aí, a Europa e Portugal “podem ter vantagens comparativas” face a outras geografias, referiu o mesmo orador. Tiago Pitta e Cunha lançou depois um apelo de futuro. Referindo-se a Portugal, admitiu que “gostava que, já que chegámos tarde ao século XIX e ao século XX, chegássemos a tempo ao século XXI, que será o tempo da sustentabilidade, do ambiente e das preocupações ambientais”.
Da audiência partiram igualmente sugestões e questões relacionadas com o papel de Portugal no aproveitamento da economia do mar. A existência de referências, designadamente desportivas, à semelhança do que sucede no futebol, foi uma das necessidades apontadas. E tal pode surgir se Portugal vier a dispor de uma equipa em futuras edições da prestigiada prova mundial de vela «Volvo Ocean Race», na qual o país está cada vez mais envolvido.
Outra sugestão lançada pela audiência foi a de reunir todas as partes relacionadas com a actividade náutica em redor de propósitos comuns que favoreçam o desenvolvimento do sector, a criação de massa crítica e a atracão de populações para uma vivência próxima dos planos de água, de que poderão resultar novas competências tecnológicas na área da náutica e do mar.
Foram igualmente afloradas as exigências da legislação nacional relativamente às embarcações de vela, por comparação às exigências existentes no Reino Unido. Na audiência foi exposto o argumento de que a flexibilidade de tais exigências, que é maior nas ilhas britânicas, teve reflexo no crescimento de receitas, designadamente para o Estado (por via fiscal), sugerindo que esse possa ser um caminho a trilhar por Portugal e com impacto positivo na economia.
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