A noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro, sendo como outra noite qualquer, não é como outra noite qualquer. É a noite de Passagem do Ano e tem significado porque o Homem é um ser de ritos e necessita de símbolos que dêem conteúdo a esses mesmos ritos.

Ainda hoje o sono é um enigma para a ciência. Porque dormimos? Para esquecer? Para permitir ao cérebro recompor-se sem interferência da dominante consciência própria ao estado de vigília?

As teses dividem-se sobre as razões da necessidade do sono mas sobre os malefícios e terríveis consequências sobre a sua privação, sobretudo quando prolongada, até por experiências realizadas, pelo contrário, tudo se afigura bem mais certo e conhecido.

Sim, dir-se-á precisarmos do sono também para esquecer, tanto, pelo menos, quanto se compreende como uma existência sem esquecimento se tornaria facilmente insuportável, assim como impossível a vida sem qualquer lembrança, uma vez nunca poder ser mais, em tal circunstância, senão mero ou mesmo o mais puro caos.

Sim, precisamos de esquecer, mas não deixamos de precisar também de lembrar, com espaço, se é legítima aqui tal expressão, para imaginar, ou seja, para tentar antever quanto poderá ou não vir a ser o futuro, porque somos, somos sempre, no tempo.

Talvez não valha a pena estarmos a citar de novo Santo Agostinho, mas se supomos saber o que foi o passado, se o futuro imaginamos saber o que poderá vir a ser, ainda mais misterioso do que tudo é o exacto instante em que somos, sobre o qual, reflectindo, sabemos estar sempre entre quanto foi e já não é, e quanto virá a ser mas ainda inteiramente não é também, o instante, afinal, que é tudo quanto temos, não existe, ou não sabemos verdadeiramente definir, ou dizer exactamente em que consista ou seja.

O mistério do tempo, o supremo mistério que sempre nos assombra e ao qual nos encontramos intrínseca e incindivelmente ligados.

E é a noite de Passagem do Ano, o Rito da Passagem do Ano, um momento próprio para reflectir sobre tudo isto, talvez porque o Homem, assim como precisa do sono, também necessita dos momentos próprios para pensar na passagem das horas, lembrando, quem sabe, igualmente as célebres e tão Portuguesas lápides jocosas medievais: «Ó tu, mortal, que me vês, reflecte bem como estou: eu já fui o que tu és, e tu serás o que eu sou».

Bem, talvez nem tanto, mas, de qualquer modo, na noite de 2017 a 2018, também nos foi dado termos o nosso momento de reflexão sobre a passagem do tempo, relativamente a Portugal, ao Mar e ao Futuro.

Reflexão algo sombria, é certo, mas não deixando de ser igualmente iluminada pela Amizade e por tudo quanto os Portugueses sempre têm de mais antigo, genuíno e verdadeiramente único.

Se falamos em Amizade, não é só porque a Amizade, a verdadeira Amizade,  sempre está além do tempo, como por termos recebido, após a publicação do Editorial em Novembro, o e-mail que decidimos reproduzir em seguida, e que constituiu, realmente, a verdadeira causa próxima de muito quanto nos foi dado reflectir e meditar na vigília de 2017 a 2018:

«Caro Gonçalo

Acabo de ler o teu Editorial e, confesso, não pude deixar de sorrir ao ver, talvez o mais metafísico dos meus amigos, embrulhado em tantos sarilhos práticos.

A ironia do destino.

Como sabes, tenho, infelizmente, tendência para ter uma visão bem menos optimista de Portugal e dos actuais Portugueses, dos que actualmente se dizem Portugueses, do que tu. E, por vezes, penso se Portugal, como diria o Orlando, Portugal pode dar-se como terminado, tanto mais quanto hoje não se vê já Portugal senão como uma nação abastardada, corrompida, a desfazer-se lentamente, sem que alguém com possibilidade de fazer seja o que for se preocupe, de facto, em fazer seja o que for a não ser tratar da sua vidinha e escapar pelos pingos da chuva.

Ainda se diz que os Portugueses são profundamente individualistas?

Dizer, diz-se, mas num momento de abastardamento, corrupção e lento definhar, mesmo as maiores e melhores qualidades tendem a degenerar também, o que significa, no caso do individualismo, sem noção já do que a verdadeira individualidade seja, a queda não apenas num tão infantil quanto insuportável egocentrismo como, ainda pior, numa tão patética quanto ignorante auto-suficiência, tão satisfeita e exultante de si quanto real e verdadeiramente incapaz de imaginar tudo quanto, afinal, completamente ignora já que simplesmente ignora.

Exagero?

Talvez um pouco, evidentemente. Afinal, não há como levar ao limite um qualquer raciocínio para melhor realçar a tese a defender. Mas havendo exagero, a tese está certa e o exagero é apenas de extensão.

Como é connosco e não com outros, dói-nos mais assistir a tão triste espectáculo porque, se pensarmos em termos Históricos, também vemos rapidamente como Portugal já atravessou, e ultrapassou, tantas e tantas outras épocas bem mais dramáticas, mesmo trágicas, a par das quais a nossa passa, abstraindo de algumas consequências eventualmente bem mais graves do que à primeira vista possa parecer, por pouco mais do que somente uma má comédia, com alguns momentos de péssima comédia, ou talvez mais exactamente até, simplesmente, com momentos de comédia de muito mau, mesmo muito mau, gosto.

Basta pensar no velho Cristóvão de Moura a comprar, literalmente, mais de meia fidalguia de Portugal para Filipe II poder vir a dizer ter herdado, comprado e, se dúvidas houvera conquistado o Direito ao Trono desta já então muito antiga e nobre Nação Marítima. E mesmo que o dito se diga apócrifo, a compra foi bem real, com as consequências que todos sabemos.

Mas, ao contrário, temos também um João Fernandes Vieira, eleito General dos Povos, a escrever já a D. João IV, quando este hesitava ainda na expulsão dos Holandeses de Pernambuco, como hesitara quando Dona Luísa lhe lembrou também mais valer ser Rainha uma hora do que Duquesa toda a vida: «Senhor, este país é Vosso por ser nosso. Vamos desobedecer às ordens de Vossa Majestade. Vamos primeiro expulsar os invasores. Depois, irei a Portugal, pedir ao Rei o perdão de minha desobediência, ou receber o castigo que por ele me quiser impor». E com um punhado de Portugueses, muitos Índios e muitos Negros, lá foi tratar da expulsão dos rapazes do Príncipe de Nassau de Terras de Vera Cruz.

Outros tempos?

Talvez. Mas, por um lado, em situações extremas, não só essa mais Portuguesa têmpora não deixará de sobressair, nos melhores casos, como, creio também, os Portugueses sempre foram algo contraditórios, o que nunca deixou de lhes conferir, de resto, tanto uma certa singularidade e como até mesmo um certo e muito especial encanto. Ou seja, onde se encontram dois Portugueses não se encontram logo também, no mínimo, quatro opiniões muito diferentes, seja sobre que assunto for?

Sim, eu próprio, como Português, não deixo de ter também as minhas contradiçõeszinhas, ou seja, apesar de todo o meu suposto realismo, não consigo deixar de ser Português, não por virtude, mas por real impossibilidade. E mesmo que pudesse, que me interessava ser fosse o que fosse senão Português, mesmo reconhecendo tudo quanto hoje  tanto nos desgosta?

Talvez por esse inata tendência mais pessimista, acompanhada, eventualmente, não por acaso, por maior inércia, sempre tanto admirei, e admiro, como sabes, a iniciativa de lançamento do Jornal ligado ao mar. No entanto, lá está, exactamente o que mais admiro, não deixe de me parecer também, o seu eventual possível pecado original. Ou seja, assim como Afonso de Albuquerque terminou a vida, já que estamos em momento de puxar às referências Históricas,  de mal com o rei por causa da Grei, e mal com a Grei por causa do Rei, temo igualmente que o Jornal possa passar, por vezes, como demasiado especulativo e conceptual para os mais práticos, assim como demasiado prático para os mais especulativos e conceptuais.

Compreendendo perfeitamente, como é evidente, tanto a razão como o intuito de como é tal qual é, a questão, no entanto, é sempre a mesma: o que querem os leitores?

Ora, nesse particular, mesmo passando por presunçoso e não estando a dizer nada em que não tenhas já pensado e até referido, se fosse de dar conselhos, aconselharia, para o futuro, a concentração na internacionalização, na realização de conferências, seminários e outras iniciativas semelhantes, como o Jornal já tem feito, de resto, assim como no desenvolvimento de do Directório, esboçado, é verdade, mas, de facto, inexistente.

As razões da internacionalização são óbvias, evidentemente, não só porque os mercados, hoje, são de facto globais, como a nossa dimensão é terrível.

Bem sei ter havido em Janeiro passado, faz já um ano, uma primeira tentativa com o número especial em inglês muito dedicado às questões da propulsão. Belo número, por sinal, mas não teve grande continuidade e isso é uma pena.

Ou seja, tu lá saberás como fazer, mas isso parece-me uma prioridade indiscutível.

Por outro lado, num mundo saturado de informação, também percebo que as pessoas tendam, aparentemente, a ler cada vez menos, a seleccionarem mais as suas leituras e a terem menos paciência, ou mesmo tempo, para se dispersarem muito. Todavia, não há coisa que um bom Português perca como seja uma boa discussãozinha, como já tínhamos visto, de resto. Ora, as conferências, seminários e equivalentes iniciativas que tens organizado têm sido perfeitas nesse sentido e julgo que é exactamente isso que deve ser também mais desenvolvido, trazendo gente nova, mesmo lá de fora, para não serem também sempre os mesmos que todos já sabem o que vão dizer, mesmo as piadas e os apartes, antes de terem aberto a boca.

Finalmente, o Directório, esboçado, realmente, mas apenas isso. Mas é importante porque é um instrumento de trabalho e faz falta, muita falta, imagino, a todos.

Na prática, o meu metafísico amigo saberá, com certeza, bem melhor do que eu, como agir. De qualquer modo, se a minha opinião pode ter algum valor, é realmente isto que me parece importante para o tempo mais imediato.

Espero que não leves a mal esta minha presunção.

Para além disso, queria dizer-te também que, seguindo o conselho do próprio Site do Jornal, acreditando profundamente no seu real contributo para uma maior e mais generalizada consciencialização da importância do mar para Portugal, não deixei de proceder ao respectivo contributo, relativamente simbólico, é certo, mas neste momento o possível, acreditando também, como bom Português, nunca sabermos inteiramente as consequências e repercussões, no caso, espera-se que boas, dos nossos actos.

Sei que compreenderás e que não irás também desistir facilmente.

Afinal, por estranho que pareça, Portugal merece, realmente, todo o nosso esforço. Por mais contraditório que pareça, mesmo reconhecendo o terrível momento que estamos a viver, mesmo reconhecendo também que só talvez em uma ou mesmo duas gerações a verdadeira regeneração seja possível, não conseguimos, de facto, desistir de Portugal.

E concordo inteiramente contigo, independentemente de tudo o mais: o Mar é decisivo para Portugal. Se perdermos essa noção, perde-se, quase diria, inevitavelmente, mesmo Portugal.

Com a Esperança que não podemos perder nunca, ou não fossemos nós Portugueses e, de um modo ou outro, mais mitigada ou mais explicitamente, não deixemos de acreditar numa qualquer forma de Providência, e um grande abraço deste teu amigo sem metafísica,

António».

Foi com o curioso teor deste inesperado e-mail em mente que passámos a vigília de 2017 a 2018, sobre a qual talvez não valha a pena muito mais acrescentar, a não ser que, fazendo nossos os conselhos deste nosso tão velho e próximo amigo, as prioridades referidas irão ser, de facto, as prioridades do Jornal da Economia do Mar para 2018, contando podermos dar a todos mais pormenores, ou mesmo um mais completo Plano, se o Destino assim nos conceder, nas próximas semanas.

Com os desejos de um Bom 2018 para todos,

O Director

Post Scriptum: Se alguém quiser ou entender dever acrescentar críticas e sugestões, teremos, evidentemente, oer maior gosto em as receber e, mais do que isso, em lê-las com a maior das atenções.



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