Cheio de luz, em tantos aspectos, Portugal também possui as suas sombras, não raramente, personificadas em sinistras figuras que abominam toda a mais mínima suspeita de vaga busca de mais claridade.

I – Da Pomposa Vacuidade

 

«Tem a Universidade como primeira e mais importante função produzir Portugueses competitivos».

Tão admirável definição ouvimo-la numa Conferência sobre o futuro de Portugal, faz já bastantes anos, a alguém então apresentado e dado como possível, ou mesmo provável, futuro Ministro da Educação.

Tal nunca veio a veio a suceder, é um facto, mas esse também não é o ponto, tanto mais quanto, vindo a sê-lo ou não, talvez não fizesse grande diferença em relação a muitos outros que o vieram a ser. O ponto é que, notado o disparate da tal afirmação, não só a mesa como toda a respectiva audiência, não pareceu dar grande importância nem ficar especialmente incomodada com o facto do dito conferencista, não obstante ser dado como possível futuro Ministro da Educação, ter demonstrado nos minutos subsequentes, não só não ter qualquer consciência do disparate proferido como provado não ter igualmente consciência mínima do significado de «Universidade», «Educação» ou, provavelmente, fosse do que fosse.

Lembrámo-nos de tão recuado episódio quando, em mais recente Conferência, alguém, dado igualmente como insigne figura do Direito do Mar, Professor na Universidade Clássica de Lisboa, começando por avançar a tese segundo a qual, no seu entender, o Direito do Mar ou, talvez mais exactamente, o Direito Internacional do Mar, sempre foi essencialmente determinado por factores e interesses de ordem económica, quando interrogado um outro elemento da mesa, após ter discorrido longamente sobre a necessidade de «diálogo» entre o Direito e a Economia, sem nunca ter referido, uma única vez que fosse, o conceito de Propriedade, se não seria exactamente por aí que a relação, ou o dito «diálogo», se deveria estabelecer, o tal Professor «de cuyo nombre no quiero acordarme», como diria Cervantes, encontrando-se igualmente na posição de moderador, logo ditou ex cathedra o fim de qualquer possível diálogo sobre a questão, invocando, em síntese, os muito inteligentes seguintes argumentos: ser o painel dedicado a questões de Direito e não de Economia; não ser, por isso mesmo, adequado estar-se a perder tempo com questões de «Filosofia» e pela, para si, liminar irrelevância da questão, relembrando-nos, inevitavelmente, o já tão antigo quanto pitoresco episódio.

Que o dito Professor seja um dos mais notáveis «Portugueses Competitivos entretanto produzidos pela Universidade», não colocamos em dúvida, longe disso, como tampouco dúvida alguma temos sobre a extraordinária proeza de ter conseguido demonstrar, com uma não menos tão extraordinária quanto singular economia de palavras, toda a enfatuada e pomposa vacuidade que, passeando pelo século, tão bem caracteriza tantos dos tão apreciados, enaltecidos e venerados «produtos competitivos» da Universidade de  hoje, como, em não raros casos, infelizmente, vem sucedendo já desde os mais recuados tempos da Reforma Pombalina, aspecto, como veremos, não sem importância também.

Respeita o conceito de «Propriedade» à Economia e não ao Direito?

Certo, a «Propriedade» é uma das categorias económicas sem as quais não haveria possibilidade de qualquer Ciência Económica, mas é o Direito que determina, naturalmente, a respectiva forma jurídica.

Não tem disso a mínima suspeita sequer o muito preclaro Professor?!…

Muito provavelmente, não, como suspeita alguma terá sequer de, destituído o Direito de toda a Filosofia, mais não restar senão mero Notariado, sem desprimor para este.

Todavia, imaginando-se o muito ilustre Professor uma espécie de Al Gazali dos tempos modernos, apostrofando também tanto «A Incoerência dos Filósofos» como toda a Filosofia, não deixando sequer de pronunciar a palavra Filosofia com aquele mesmo tom de desdém e enjoado enfado que os néscios sempre colocam em relação a tudo quanto está fora do seu alcance, crendo viver eventualmente ainda nos idos do Código Seabra e entendendo, consequentemente, a Propriedade como «disposição absoluta da coisa», conceito, para si, irrelevante e exclusivo à «melancólica ciência», logo se permite e arroga toda a autoridade para determinar, sem noção alguma da unidade do pensamento, na paz de um saber feito de uma vez para sempre, quanto importa ou não importa a Portugal e à defesa do seu Mar.

Andasse o a dita figurinha a pavonear simplesmente a sua enfatuada vacuidade pelo século e daí não viria mal ao mundo. Infelizmente, porém, não é apenas isso que sucede porquanto, representante também daquela linha de pensamento profundamente anti-Portuguesa, muito agravada e acentuada pela Reforma da Universidade imposta pela sinistra figura que foi o Primeiro-Ministro de D. José I, Sebastião José de Carvalho e Melo, tanto com o intuito de expulsar o «abominável Aristóteles» da Universidade como de substituir a velha Aristocracia por uma nova geração de Académicos, a ser formada segundo os mais iluminados preceitos nórdicos de repúdio de toda a transcendência, primado absoluto da vontade sobre todo o pensamento, abandono do paradigma biológico a favor do mais puro mecanicismo, outorgando-se, no âmbito do mais completo e desenfreado materialismo, plena autorização para submissão da natureza em benefício das mais imediatas e positivas finalidades práticas do homem, dispondo o dito Professor do respectivo alvará para corromper, com a mais nefasta liberdade, a alma de sucessivas gerações de Portugueses, não deixando, inclusive, pela faculdade a ser-lhe conferida, com todo a probabilidade, de discricionária decisão de escolha dos seus futuros pares, de contribuir activamente para a perpetuação do funesto ciclo de perversão da consciência dos Portugueses sobre si mesmos enquanto Nação Marítima, com tudo quanto de mais grave tal significa e implica.

A questão não é, evidentemente, a imediata concordância ou não com uma ou outra tese, uma vez ser uma tese exactamente o que sempre se coloca à discussão. A questão, ou mesmo problema, é a imposição dogmática de uma qualquer tese, seja ela qual for, recusando liminarmente qualquer averiguação ou discussão da mesma, sobretudo quando, mais gravemente, as teses propostas são profundamente anti-Portuguesas.

Se tudo se resumisse à tese de se entender o Direito do Mar, como o Direito Internacional em geral, ter sido sempre primordialmente determinado por interesses económicos, ainda do mal o menos.

Mesmo numa época, como a actual, tão dominada pela economia, a tese afigura-se-nos redutora e errada não apenas por circunscrever e limitar, antes mais, os primordiais interesses das nações aos interesses de carácter eminentemente económico, quando é patente nem sempre  assim suceder, mas, acima de tudo, por dar também uma vil, mesquinha e perigosa perspectiva do Direito que tem, evidentemente, muito superior finalidade do que a mera defesa de interesses económico, seja em que âmbito for.

De facto, sabendo constituir-se o Direito como a determinação das formas de relação dos homens entre si e do homem com o mundo, não deixando nunca tal determinação de corresponder a cristalizações do pensamento, bem como não deixar nunca todo o pensamento sempre também pensamento situado, tendo igualmente em atenção não corresponder o Estado senão, em sua essência, à efectivação do Direito, muito mais do que meros interesses de ordem económica, o que o corpo de Direito de uma nação verdadeiramente mais imediatamente espelha e reflecte é exactamente a singularidade do seu perfil espiritual e sua particular missão ou finalidade civilizacional.

É Portugal uma nação soberana, independente e livre?

É, ou sê-lo-á, enquanto souber pensar e determinar o seu Direito com perfeita consciência da sua singularidade, enquanto souber expressar essa mesma singularidade em formas jurídicas de acordo com o seu perfil espiritual, enquanto souber afirmar essa mesma singularidade e perfil espiritual em verdadeira missão civilizacional.

Temos hoje consciência da nação que somos?

Não, não temos, como o dito Professor, «de cuyo nombre no quiero acordarme», deixou com a mais alta eloquência, plenamente provado, mas é exactamente também por isso que a III Conferência do Jornal da Economia do Mar assume tão decisiva e crucial importância.

 

II – Da Importância da III Conferência do Jornal da Economia do Mar

Em primeiro lugar, basta uma vista de olhos pelo Programa da III Conferência do Jornal da Economia do Mar para perceber serem todos os participantes nos diversos temas, antes de mais e acima de tudo, verdadeiros Portugueses de sangue salgado e alma inteira, ou seja, personalidades em permanente busca de mais luz, «sem falsas lábias nem patéticos salamaleques».

Como verdadeiros Portugueses, não colocando o mal na natureza, como as nórdicas gentes, mas seguindo os preceitos já expressos nas Cantigas de Amigo, verdadeiro Património da Humanidade absolutamente singular e único, sem alguma vez se deixarem cair em vãs ilusões Cátaras ou nas mais terríveis quimeras de quem se imagina Dono e Senhor da Natureza, têm da mesma natureza o conceito de ser intermédio, assumindo a correspondente responsabilidade, sem confundirem nunca posse com Propriedade, como brilhantemente exposto por Orlando Vitorino na «Exaltação da Filosofia Derrotada», de trazer à existência quanto não passa em si mesmo de simples presença, como a própria natureza, ou, no caso, do Mar, conferindo-lhe o conhecimento de si que por si apenas seria impossível alcançarem, possibilitarem-lhes o cumprimento pleno das correspondentes finalidades inerentes ao seu ser, aí residindo também o mais alto conceito do que hoje se pode designar como Consciência Ecológica, Protecção do Ambiente, ou seja o que for de equivalente.

Aí reside também importância e a nossa autoridade como pioneiros na criação das Áreas Marinhas Protegidas.

Aí reside igualmente a nossa alta responsabilidade em sabermos transpor e espelhar o nosso perfil espiritual como povo singular, nas adequadas formas jurídicas, em Direito, daí decorrendo também, em grande medida, toda a mais alta missão civilizadora de Portugal na actualidade, ou seja, no caso, a de saber dar ao Mar o conhecimento que o Mar, simples presença, não tem de si, com a concomitante arte e engenho de tal saber concomitantemente transpor e espelhar no Direito Internacional.

Daí, ainda, a imperiosa necessidade de termos tanto plena consciência de nós enquanto Nação Marítima com consciência disso, uma Estratégica e a correspondente capacidade de efectivo Planeamento, sob pena de ficarmos incapazes de autónoma afirmação e, como tal, condenados talvez a uma  inexorável irrelevância política e, muito provavelmente, económica também.



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