Entrevista com Francis Vallat, presidente da Rede Europeia de Clusters Marítimos

Francis Vallat considera que um cluster marítimo europeu, nunca surgirá antes de cinco anos. Mas entende que a Rede Europeia de Clusters Marítimos, agregadora de membros com culturas muito diferentes, “já age de forma suficientemente eficaz”. Defende o papel da IMO e admite o lobbying em nome do interesse geral do sector. Rejeita ter agido em prol do interesse francês. Considera o processo decisório da UE muito complexo e reconhece a pujança do mercado asiático, por vezes assente na concorrência desleal. E critica os especuladores financeiros, que tiveram influência na crise actual do transporte marítimo.

 

O que é um cluster marítimo, o que contém e o que está excluído, no âmbito desse universo?

Podem existir todo o tipo de clusters marítimos, conforme os critérios originalmente seleccionados para criar um ou outro tipo. Por exemplo, alguns reúnem profissionais marítimos da mesma área geográfica, outros baseiam-se no tipo de actividade (por exemplo, um cluster de entidades marítimas envolvidas em inovação e investigação marítimas; ou em reparações navais e equipamentos para navios; ou noutros campos em que os profissionais marítimos querem coordenar ou harmonizar algumas das suas actividades, trabalhos, acções de lobbying, etc….). Mas um cluster marítimo nacional – pelo menos, do nosso ponto de vista – deveria reunir a maioria das actividades marítimas de um dado país, e actuar ao serviço da economia nacional, especialmente através da dinamização de iniciativas transversais (isto é, reunindo várias actividades marítimas diferentes) e ainda ser capaz de reforçar o peso da comunidade marítima correspondente.

Pode mencionar uma data específica para a formalização de um Cluster Marítimo Europeu (até agora, apenas podemos falar de uma Rede Europeia de Clusters Marítimos, sem existência legal)?

Não há data específica! De facto, demorarão alguns anos (talvez cinco ou mais) para reunir os actuais 17 clusters marítimos nacionais da European Network Maritime Clusters (ENMC) numa única, harmonizada e homogénea organização. Até à data, os clusters nacionais existentes – da Europa Oriental à Europa do Sul e/ou do Norte, são, por vezes, diferentes uns dos outros: diferenças na história, cultura, natureza (alguns são totalmente privados, outros são mais ou menos controlados pelo Estado ou parcialmente públicos e privados; diferenças também existem na maturidade, alguns são muito jovens, estão apenas a emergir, enquanto outros são experimentados, etc.). Dito isto, a ENMC já age de forma suficientemente eficaz na identificação de lutas comuns muito importantes, que lidera com o apoio de todos os seus membros. Por exemplo, após alguns anos de luta, obtivemos juntos, da Comissão, os meios humanos e financeiros necessários para identificar o que realmente representa a economia marítima europeia, quais as suas forças, as suas fraquezas, visando impulsionar a economia azul, ou seja, com o objectivo de ter uma base para quaisquer políticas transnacionais poderosas e concretas combinadas.

Qual será a agenda do próximo encontro do dia 3 de Maio, na vossa sede, no Luxemburgo, além dos temas da governação dos oceanos e das prioridades políticas e financeiras?

Bem, já mencionou duas importantes questões, nas e para as quais a ENMC já trouxe contributos relevantes, e que estão no topo da agenda! Além disso, vamos preparar as duas horas de diálogo planeadas para esse mesmo dia com o Comissário Karmenu Vella e representantes da DGMare (uma reunião na qual todos iremos discutir o lugar da economia marítima no plano Juncker, por exemplo, as prioridades que devemos reter a médio prazo a partir do ponto de vista de cada cluster nacional, o capital inicial para arrancar com projectos e a já mencionada base de dados marítima europeia de que precisamos).

Pode adiantar-nos algo sobre a governação dos oceanos e as prioridades políticas e financeiras?

A governação dos oceanos é um tema suficientemente grande para falar dele em poucas palavras. Deixe-me dizer apenas que no nosso contributo comum – apoiado unanimemente por todos os clusters membros – insistimos muito na necessidade de agir a um nível mundial, de emitir regras mundiais e, consequentemente, de reforçar a influência, o papel, o peso e os meios da Organização Marítima Internacional (IMO – International Maritime Organization). Do nosso ponto de vista, a Europa deveria caminhar sempre nessa direcção e só agir localmente em casos extremos (ou seja, quando a IMO for demasiado lenta), sempre tendo em mente o dever da União Europeia de assegurar em conjunto a sustentabilidade do desenvolvimento marítimo e a leal concorrência (ou seja, sem colocar em risco a economia marítima europeia).

Se for formalizado, um eventual Cluster Marítimo Europeu deverá funcionar com lobista junto da União Europeia ou não? É suposto defender uma opinião de acordo com a qual o cluster não deve agir como tal. Porquê? A ENMC não age já como lobista?

Deixe-me ser claro. Obviamente que fazemos lobby, mas não somos lobistas! E isto é mais do que uma nuance, e não é contraditório, de todo! Fazemos lobby ao serviço do interesse marítimo geral da Europa, não para nós próprios. E não somos pagos especificamente pela nossa acção de lobbying (quer directamente, quer indirectamente). Uma acção que preferimos qualificar de diálogo permanente, firme, aberto e construtivo com as autoridades competentes. E vale a pena dizer que na maioria dos “nossos” países, o grosso do financiamento dos clusters nacionais provém somente das contribuições anuais dos respectivos membros (embora alguns possam aceitar subsídios não vinculativos), não da venda de serviços.

Quanto às prioridades políticas e financeiras, deixe-me dizer que o nosso trabalho é sermos tão oportunos quanto possível e que as mesmas podem variar conforme as questões e os desafios que o mundo marítimo europeu enfrente, bem como conforme dos mecanismos financeiros que estiverem disponíveis no plano europeu (por exemplo, o plano Juncker). Dito isto, estamos alerta em relação a dois aspectos: um é o de que os desafios e oportunidades da Europa marítima, supondo cooperações activas e investimentos pesados, são enfrentados tão seriamente quanto possível (como o programa H2020); o outro são as regras existentes e programas de financiamento existentes da Comissão, adaptados aos vários desafios marítimos. Mas isto é muito complicado e em qualquer caso deve primeiro ser visto pelas várias federações profissionais em Bruxelas (que podemos apoiar, se e quando quiserem).

O que responde a certos críticos, segundo os quais este tipo de cluster é uma forma de o cluster marítimo francês (ou actividade, ou empresas, como lhes quiser chamar) promover a sua própria influência e os seus próprios interesses, sob a capa da Europa, em vez de perseguir o interesse geral marítimo europeu?

Nunca ouvi tal crítica até hoje e devo dizer que estou surpreendido (embora nunca possamos fazer estas coisas sem sermos criticados)! Mas a minha resposta deve ser clara e dura. Tão cobarde ataque, sobretudo porque questiona a nossa/minha ética, é chocante e de modo nenhum aceitável. Talvez tão ridículas afirmações (relativamente às quais lhe agradeço a oportunidade de responder) provenham do facto histórico de eu ter criado em 2005, com os nossos colegas holandeses, a ENMC, ou seja, simultaneamente com a criação do cluster francês. Então eu recordei que sob minha proposta e insistência o primeiro presidente eleito da ENMC (éramos cinco ou seis clusters em Outubro de 2005) foi o meu equivalente holandês, que se manteve no cargo até 2011, quando teve de o abandonar repentinamente por motivos pessoais. Nesse momento, e depois de ter inicialmente recusado várias vezes devido à minha preenchida agenda profissional, tive de aceitar – como fundador e sob contínua pressão de todos os outros clusters nacionais – a presidência do ENMC. Finalmente, resignei em 2015 do cluster francês, para poder dedicar mais tempo e energia ao ENMC. Além disso, recordo também dois aspectos importantes: desde 2011, as iniciativas que tomei, com apoio unânime de todos os países, foram todas orientadas no sentido do desenvolvimento do ENMC, exclusivamente, e já tinha anunciado intenções de sair em 2017, para que fosse posteriormente eleito livremente um sucessor por todos os membros da rede! Por fim, mas não menos importante, repito que ninguém pode duvidar de que qualquer medida que eu tenha tomado tenha sido orientada ou contribuído directamente para o interesse geral da ENMC ou o interesse marítimo em geral. Este último tem sido a luta de toda a minha vida …

Quantos membros tem actualmente o ENMC e que países estão lá representados?

Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Islândia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Polónia, Portugal, Espanha, Suécia, Reino Unido … Todos estes países têm clusters marítimos que estão actualmente representados. Sabendo que bastantes têm um nome diferente, como por exemplo a Federazione del Mare, em Itália.

Quais são as principais prioridades do sector marítimo europeu e os seus principais riscos?

Uma vez mais, precisaria de muitas páginas para responder de forma precisa e o cluster é muito menos legítimo para responder a esta questão do que as federações profissionais que reúnem os profissionais marítimos ou as próprias actividades marítimas! Mas ao nosso nível geral, devo mencionar, em primeiro lugar, a identificação neutral do que representa o sector marítimo como um todo: factos e números, por país, por actividade e que complementaridades; a alocação dos recursos disponíveis suficientes para as mais promissoras actividades a longo prazo (biotecnologias, mineração no mar profundo, novas energias, etc…) obviamente dos pontos de vista económico e ambiental; e por último, mas certamente não menos importante, a clarificação e melhoramento do há muito complexo processo de decisão da União Europeia (ou seja, em Bruxelas, onde vários directórios envolvidos no sector marítimo competem mais frequentemente entre si do que cooperam, não ajudando a alcançar as decisões mais eficientes; entretanto, muitas regras são demasiado rígidas, inadaptadas e geradoras de conclusões frequentemente inapropriadas ou negativas). Finalmente, o peso do Parlamento Europeu revela muitas vezes ser insuficiente.

O transporte marítimo atravessa um período difícil, com excesso de oferta e menos procura, em todo o mundo. Qual poderá ser a solução?

Claro que não existe uma solução miraculosa neste ciclo de mercado, sobretudo quando parte do problema reside fora da Europa, que não pode ajudar a China a recuperar a sua economia! Mas o que é certo é que parte do actual excesso de oferta de navios é, mais uma vez, parcialmente devido à irrupção de especuladores financeiros – que não são guiados pela economia – nas encomendas de navios relativas à segunda metade dos anos 2000, quando o mercado da navegação estava em crescendo. E, até hoje, eles deixaram o mercado fora de rota, enquanto os proprietários tradicionais e profissionais dificilmente conseguem encontrar os financiamentos de que precisam!

Como encara as alianças entre grandes companhias de navegação, nalguns casos, entre empresas europeias e asiáticas?

Só posso observar que algumas são incrivelmente eficientes e permitem grandes poupanças (economias de escala). Ainda assim, gostaria de recordar que – especialmente na Europa, que controla mais de 40% da frota mundial – a maioria dos principais e mais dinâmicos agentes do sector são empresas familiares, e isto é verdade em todos os segmentos da navegação. Há alguns anos, o palpite de que grandes grupos internacionais dominariam o mercado não se faria. Pelo contrário.

Do ponto de vista europeu, o mercado asiático (na aquacultura ou construção aval, por exemplo) constitui uma ameaça para os negócios dos europeus?

Obviamente que sim! Os operadores asiáticos são dinâmicos, trabalhadores incansáveis, frequentemente bem organizados e apoiados pelos seus Estados. Com frequência têm grandes meios de capital e alguns não se importam muito com questões sociais. Desnecessário será acrescentar que a concorrência desleal – se comparada com a de entidades mais responsáveis e/ou mais controladas da Europa – está com frequência ao virar da esquina. E os operadores asiáticos dedicam cada vez mais esforços a investir do que quaisquer outros em todo o mundo. Cabe-nos a nós encontrar as respostas mais práticas e adequadas. O mercado comum original já não existe, mas isso não significa que desistamos e deixemos de lutar parar sermos mais respeitados. Mas esta é uma afirmação muito generalista e pessoal, que ainda não discutimos ai nível da ENMC!



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