De frente para o mar, ou as varandas oceânicas

Creio que a história não regista o primeiríssimo encontro dos nossos fundadores com o mar.

Mas estou convicto de que foi amor à primeira vista. Aquela era a fronteira natural; o país começava e acabava ali. A outra fronteira, para o interior, seria sempre a que as circunstâncias e os nossos vizinhos permitissem.

Quando rumámos ao Algarve, para completar o território, terminar a conquista e fixar os limites meridionais, uma vez mais foi o mar a definir a raia.

E quando quisemos mais terra, foi ao mar que a fomos buscar. Terra que ainda nem sabíamos (nem ninguém) que existia.

Nos outros lados do mundo, não apenas a nossa presença se fez junto ao mar, como aconselhava e permitia a nossa permanente escassez de recursos humanos, como foi a partir dali que promovemos as incursões pelo interior, em busca de terras que se confundiam com o horizonte, e que desconhecíamos onde é que terminavam, e que fundámos territórios com configurações harmoniosas, que incorporámos à Pátria, tendo sempre o mar como cota inaugural.

Era o mar, que ordenava o território, numa proporção equilibrada entre a silhueta da costa e a massa continental.

Assim foi com o retângulo perfeito de Portugal, e o quadrado quase perfeito de Angola. Ou com a distribuição simétrica do Brasil, pelos eixos de uma cruz, desenhando no território a própria configuração do continente sul americano, sendo a área daquele metade deste.

Na América do Sul, onde mais do que em qualquer outro lado, criámos um país de raiz, palmo a palmo, para o interior e para os lados, e onde assumimos um desígnio e um projeto, isento de condicionalismos terceiros, não deixámos como herança, países sem mar, como a Bolívia ou o Paraguai, ou feitos apenas de mar, como essa fantástica ilha em linha reta que é o Chile.

Ao contrário das restantes potências imperiais e colonizadoras, na altura de transferirmos a soberania para os territórios que tinham constituído o império, entregando-lhes a condução dos seus próprios destinos, como países independentes e membros por direito próprio da comunidade de nações, nunca deixámos ninguém sem mar, ou com corredores artificiais de acesso ao mar, como acontece com tantos países desenhados apenas por convenções e conferências, como no caso do Congo.

Talvez o registo mais paradigmático desta situação tenha sido Moçambique.

O que é hoje o país Moçambique, foi durante muito tempo um território de configuração geográfica e administrativa algo difusa, mas sempre centrado no seu porto, a determinada altura denominado de Lourenço Marques, ao ponto de a extraordinária viagem de Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens entre 1884 e 1885, e entre Angola e Moçambique, ter sido registada num livro  excelente e intitulado De Angola à Contra Costa.

Por esta altura, as heroicas viagens dos nossos grandes exploradores africanos, com destaque para a de Alexandre Serpa Pinto, são causa e efeito do episódio do mapa cor de rosa, quando os territórios que ficavam precisamente entre Angola e Moçambique foram objeto do interesse comum de portugueses e britânicos, que pretendiam alicerçar ali dois empreendimentos coloniais, simultaneamente semelhantes e distintos, uma vez que nós pretendíamos uma faixa horizontal que unisse o Atlântico ao Índico, e os ingleses, um corredor exclusivo na vertical, que unisse o Cairo ao Cabo.

Sabemos que Portugal falsamente encorajado pelos alemães, acabou por não atingir os seus objetivos, e os ingleses conseguiram estabelecer-se nestes territórios, que pouco depois iriam revelar-se riquíssimos quanto a riquezas minerais, dando origem à epopeia de Cecil Rodes, digna das mil e uma noites, e ao seu país, a que muito naturalmente chamou Rodésia, hoje ainda mais naturalmente, Zimbabué.

Contudo estas riquezas, necessitavam de ser encaminhadas para os centros de transformação e venda na Europa, e a única forma económica e logisticamente viável era pelo porto de Lourenço Marques.

Os ingleses serviram-se de todos os meios, da tentativa de compra à de invasão, para se apoderaram de Delagoa Bay, como chamavam a Lourenço Marques, nome que vinha do antigo nome do porto por estar situado nas terras da baía da lagoa, e uma vez que Lourenço Marques só nos finais do século dezanove é que foi fundado, mais precisamente em 1875, tendo a capital de Moçambique sido transferida da ilha do mesmo nome para ali, apenas em 1889, e precisamente para inibir o apetite britânico.

Nunca os ingleses revelaram qualquer interesse particular por Moçambique, mas apenas pelo seu porto de Lourenço Marques, atual Maputo, que foi durante muitos anos vital para a própria África do Sul.

Angola e a sua costa atlântica, foi igualmente fulcral para alguns países surgidos das independências africanas de meados do século vinte, saídos de empreendimentos coloniais sem a grandeza de visão de Portugal, tornando-se indispensável à sobrevivência de países como a Zâmbia, que necessitava do caminho de ferro angolano para contactar com o mar.

Fruto daquele amor à primeira vista dos nossos fundadores, deixámos sempre por onde passámos, territórios, hoje nações de que muito justamente nos orgulhamos, com extensas e amenas varandas oceânicas, através das quais a frescura dos ventos fecundou os interiores mais recônditos, regularizando o clima, e mais importante que tudo, facilitando a comunhão dos seus povos com a restante humanidade.



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