Investigador do ISEG admite muitas indefinições sobre governação dos portos em Portugal
Portos portugueses

O sistema portuário nacional resulta das “indefinições que existem quanto ao modelo de governação (portuária) e às alterações profundas que são feitas ao sabor das vontades de A, B ou C, sem estarem consolidadas”, admitiu o investigador José Augusto Felício, do Centro de Estudos de Gestão do Instituto Superior de Economia e Gestão, numa conferência sobre Novos Modelos Internacionais de Governação Portuária: Autoridade Portuária 3.0/Concessão Portuária 3.0, que decorreu na passada 5ª feira, em Lisboa.

Para o especialista, “o que a governação 3.0 nos diz é que não sabemos o que andamos a fazer, que é o que tem sucedido, com algumas excepções, como o porto de Sines e o de Leixões, que são bons exemplos num mundo de casualidades”. Mas não deixou de explicar o que, no seu entendimento, é o conceito 3.0: “um conjunto de factores de qualidade que os portos devem ter para cumprirem os seus objectivos, nomeadamente, as entidades de maior responsabilidade ao nível portuário”.

 

A questão da dimensão

 

Um dos problemas que José Augusto Felício identifica na realidade portuária nacional é o da falta de massa crítica. “Se eu não tenho dimensão para competir com entidades que têm outra dimensão, eu não consigo competir”, referiu o investigador, acrescentando que “Portugal é um portinho na Europa, e estamos a falar do negócio mais importante a nível mundial, onde se travam as grandes lutas estratégicas”. Recordou também que “o problema de Obama, Merkl e do Presidente chinês é um problema marítimo”.

Amadeu Rocha, da Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo (APDL), igualmente presente, recordou que em 2015, os portos portugueses movimentaram 89 milhões de toneladas de carga, o equivalente “a um porto médio Europeu” e menos do que o porto de Algeciras, em Espanha. “Se excluirmos o carvão e os petróleos, ficamos com um movimento de 50 milhões de toneladas, o qual, se for dividido por cinco portos, dá 10 milhões de toneladas a cada, distribuídos por vários segmentos”, referiu.

Outro dos oradores, Eduardo Bandeira, da Administração dos Portos de Sines e do Algarve (APS), chamou a atenção para o que sucede em Espanha, onde os portos estão a fazer grandes investimentos, designadamente, em Algeciras e Valência, acrescentando que “em relação a Espanha, não podemos perder competitividade”. Ainda na questão da dimensão, José Augusto Felício distinguiu o porto de Sines dos restantes, para salientar que “aos 50 milhões de toneladas citados por Amadeu Rocha, temos que descontar Sines ou uma grande parte de Sines”. Para o investigador, “Sines é outra coisa e tirando Sines, todos os outros servem a economia nacional e os hinterlands”.

Da audiência veio outro contributo sobre a matéria. Tiago Santos, investigador do Instituto Superior Técnico e membro da Ordem dos Engenheiros, afirmou que “entre 2000 e 2014, se ao volume de carga total movimentada tirarmos o transhipment de contentores em Sines e a carga de cimentos exportada por algumas da maiores empresas nacionais, esfuma-se boa parte do crescimento de carga dos portos portugueses”.

 

Prazos e PPP

 

José Augusto Felício defendeu, como faz há anos, “que Portugal deve ter um sistema portuário que caracterize Portugal” e que é esse sistema que tem que competir com “Espanha, a Europa ou o que for”. Para o investigador, ”estamos a falar de modelo, de conceptualização”. E nesse ponto, defende que deve ser conferida unidade aos portos do Norte do país, onde existe uma economia própria e onde servem um hinterland, tal como os do Sul.

Mas a questão do modelo levanta, desde logo, duas importantes dúvidas. Por um lado, a de saber se os prazos das concessões previstos na lei de operação portuária ainda estão em vigor, face “à sua incompatibilidade com o Código dos Contratos Públicos, que revoga todos os diplomas que lhe são contrários”, como questionou, a partir da audiência, Andreia Ventura, presidente do Conselho de Administração do Arsenal do Alfeite. Por outro, a de saber se as concessões portuárias são ou não parcerias público-privadas (PPP), e que mereceu uma análise, particularmente, da parte de José Luís Moreira da Silva, advogado com experiência em matérias portuárias e um dos oradores do painel.

Para Andreia Ventura, também jurista, os prazos da lei de operação portuária não estão em vigor, mas admite a dúvida, “e as dúvidas são aqui um constrangimento”. Recorda ainda que “a concessão pode ser feita por um prazo alargado”, salientando a propósito a lei da água. Moreira da Silva notou que uma lei geral não revoga uma lei especial, para defender que não é claro que o Código dos Contratos Públicos revogue os prazos da lei da operação portuária.

Para o advogado, “o prazo é o que estiver fixado no contrato”, embora admita que da transposição da Directiva comunitária para o Direito interno resulte que “o prazo é o suficiente para a amortização dos investimentos”. “Pode esse prazo ser superior a 30 anos? No Direito comunitário, sim”, refere. Mas não deixa de salientar que a Lei 18/2008, que aprovou o Código dos Contratos Públicos, incorreu num “erro grave”, quando referiu que ficava revogado tudo o que lhe fosse contrário, ”mas sem dizer o quê”.

Andreia Ventura sustentou que nas concessões do Código dos Contratos Públicos não é tão claro que essas disposições sejam lei geral, pelo que não se colocaria a questão de não poderem revogar a lei especial, e defendeu que na maior parte dos casos, as codificações tendem a revogar disposições abrangidas no seu âmbito.

Ainda relativamente aos prazos, Moreira da Silva recordou que o Tribunal de Justiça da União Europeia e, sobretudo, a Autoridade da Concorrência (AdC), sustentam que, ao abrigo do princípio da livre concorrência, o mercado deve ser consultado periodicamente. Ou seja, no seu estudo sobre a actividade portuária em Portugal, a AdC defende a livre concorrência, mas também considera que os prazos devem ser revistos regularmente. “O que é um período razoável para esse efeito, são os 30 anos? Ou são os 50?”, questiona o advogado. Se deixarmos fluir a livre concorrência e fixarmos uma concessão por 50 anos, “não poderá a AdC vir depois criticar?”, pergunta, admitindo que o documento enferma de uma contradição.

Sobre as PPP, Moreira da Silva considera que não existem nos portos. “Uma PPP significa que o particular, não tendo capacidade para, por si, desenvolver um negócio, precisa de apoio público”, acrescentando que “só há PPP, na nossa legislação, se houver uma intromissão do sector público, auxiliando o privado”. Para o advogado, “numa concessão tradicional não há gastos públicos, há recebimentos privados e uma taxa para o sector público”. Já na PPP, “há gastos, há auxílio público, há participação no serviço da dívida, com activos e até com algum serviço concreto”, refere. “E aí, é natural que haja partilha de benefícios com o sector público, quando o particular excede as receitas que inicialmente estavam previstas”, refere.

Porém, “o Tribunal de Contas (TdC), na sua auditoria, entendeu que todas as concessões portuárias são PPP”, nota o advogado, admitindo que existe apenas uma PPP portuária, “que é um contrato único”, em Alcântara.

 

A natureza do modelo

 

Moreira da Silva considera que o regime actual da organização portuária já não responde à realidade nem às necessidades do mercado. Para o advogado, a Constituição da República Portuguesa, ao classificar todas as áreas adjacentes à água como domínio público, cria obstáculos à alteração do regime, que assim depende de uma Lei da Assembleia da República ou de um Decreto-Lei autorizado. “É um regime estático”, considera.

Mas antevê uma possibilidade de atribuição dos terraplenos a uma gestão privada, em moldes que permitam maior liberdade. Ao abrigo de certos regimes jurídicos já existentes em Portugal, é possível alterar o modelo. Moreira da Silva defende a existência, num porto, de um terminal de serviço público, a par de outros terminais, abertos ao sector privado, sem obrigatoriedade de serviço público (a universalidade de acesso ou um tarifário aprovado por entidades públicas), ao abrigo do regime geral da concessão dominial.

Esta opção teria a vantagem de transferir a autoridade portuária para os privados, bem como a responsabilidade, sendo que os prazos teriam de estar relacionados com a o período necessário à amortização do investimento. Mas tal implicaria acabar com a concessão de serviço público. José Augusto Felício também entende que a autoridade portuária não tem que estar necessariamente nas mãos do Estado. “O Estado tem que fazer uma regulamentação e pode fazê-lo com uma entidade privada”, refere, recordando o que se faz no porto de Roterdão, na Holanda, onde o Estado está a criar “entidades privadas de governação portuária que são a autoridade portuária”.

Mas aqui, a governação portuária cruza-se com a dimensão portuária. “Para ter modelos mais próximos do que os defendidos por Moreira da Silva e do que os de portos do Norte da Europa, preciso de ter dimensão em regime de lease e tenho que ter massa crítica”, referiu Amadeu Rocha. Este responsável entende que o modelo de governação dos portos portugueses têm duas forças: uma, de maior autonomia da gestão, na parte operacional, e que deve ser uma gestão local, de proximidade; outra, ao nível do planeamento do sistema, que deve ser mais centralizadora.

Já Eduardo Bandeira, recordou que os modelos de governação portuária – que são vários, conforme também foi referido no debate – devem ter em conta “os portos de que estamos a falar”. Mas um porto nunca deverá ser um obstáculo na cadeia logística, “deve integrar a cadeia logística”, referiu o mesmo responsável. E recordou que “se absorvermos os contentores num terminal público, pouco restará para oferecer aos privados”.

Moreira da Silva, no entanto, tem “algum receio de que nas negociações que estão a ser feitas possa vir a ser adoptado um modelo no qual seja exigido um visto do TdC que, quando vier a ser exigido, tenho quase a certeza de que vai ser negado”.



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