Porto da Figueira da Foz

Os dados estatísticos do Eurostat relativos ao short sea shipping (SSS), ou transporte marítimo de curta distância, especialmente sobre a transferência do modo rodoviário para o marítimo, não são suficientes nem completamente fiáveis, de acordo com vários operadores deste segmento do transporte marítimo.

“As estatísticas não revelam a realidade do SSS na Europa, há dados que falham, nem todos os países fornecem os dados da mesma forma”, refere Isabel Moura Ramos, Directora Executiva da Agência Portuguesa de Transporte Marítimo de Curta Distância (APTMCD). Razão pela qual esta responsável encara com optimismo medidas destinadas à uniformização e detalhe das estatísticas europeias sobre a matéria.

Como os dados do Eurostat se baseiam nos dados das entidades estatísticas e, no caso de Portugal, do Instituto Nacional de Estatística (INE), o qual tem por base dados fornecidos pelas autoridades portuárias, sem referências específicas ao SSS, há dados sobre esta actividade que não são reflectidos nos números oficiais.

O que os dados oficiais não revelam, mas vários operadores do SSS reconhecem, “por causa do conhecimento que têm da realidade no terreno”, refere Isabel Moura Ramos, é que apesar do crescimento do modo de transporte rodoviário, existe uma nova tendência para a intermodalidade com o transporte marítimo de curta distância e mesmo com o modo ferroviário.

E qual é o facto que sustenta esta tese? O recurso ao contentor de 45 pés, que é uma unidade de carga intermodal, precisamente por se adaptar facilmente a vários modos de transporte. Isabel Moura Ramos, apoiada em depoimentos de operadores de SSS, confirma que este tipo de contentor é cada vez mais utilizado, “e é revelador de uma intermodalidade crescente”.

A mesma responsável referiu-nos que dados estatísticos da Associação dos Agentes de Navegação de Portugal (AGEPOR) também revelam uma procura crescente da unidade intermodal. “Em três anos, a utilização de contentores de 45 pés cresceu 42%”, refere Isabel Moura Ramos. “E a procura deste contentor significa que há uma compatibilidade maior entre a rodovia e o marítimo, o que é positivo”, refere.

No entanto, este contentor ainda não é considerado standard em termos internacionais, ao contrário do que sucede com os contentores de 20 e 40 pés. Quando assim for, “será um passo que mudará tudo, reduzirá custos e será mais uma unidade a servir todos os modos de transporte”, explica Isabel Moura Ramos.

O crescimento da intermodalidade, aliás, merece um entendimento particular de Sérgio Costa, da CLdN, uma das operadoras de SSS em Portugal. “”Deveríamos começar a falar em multimodalidade, mais do que em short sea; integração é fundamental”, refere. Para este responsável, a própria definição de SSS já não lhe parece actualizada.

Este crescimento da intermodalidade, no entanto, leva Isabel Moura Ramos a outra reflexão. Para a Directora Executiva da APTMCD, “os portos têm que ser mais facilitadores da intermodalidade” e devem ser integrados na cadeia logística. “E não falo só das autoridades portuárias”, diz. “Os corredores ferroviários têm que funcionar nos portos, tem que existir mais funcionalidade dos camiões (a carga de deep sea devia ser distinguida da de SSS), e os portos devem ver isto com os operadores, pois permitiria mais eficiência”, esclarece.

Em todo o caso, na opinião desta responsável, as gerações mais novas, no âmbito dos transportes estão mais sensíveis à intermodalidade do que as anteriores. E há construtores navais que se preparam para responder aos novos desafios do SSS, “designadamente, no campo das novas tecnologias, de navios mais ecológicos”.

 

Portugal a crescer no SSS

 

Apesar da fiabilidade discutível, os dados do Eurostat divulgados em Abril deste ano revelaram boas perspectivas para Portugal no SSS. De acordo com o Eurostat, entre 2005 e 2014, Portugal registou uma taxa de crescimento médio anual do volume de mercadoria movimentada em SSS de 1,8%. “Um resultado benéfico para Portugal”, refere Isabel Moura Ramos, admitindo todavia que os dados podem ser ainda melhores.

A mesma responsável nota que Portugal ganhou quota de mercado nos segmentos de contentores e continua com uma quota relevante nos granéis líquidos. Mas chama a atenção para outro dado do Eurostat sobre o nosso país. Aí se refere que 13% dos dados portugueses de 2009 não indicam destino nem origem da carga, o que leva o Eurostat a concluir que a quota nacional de SSS “está, provavelmente, sub-estimada”.

“Mais uma prova de que os dados do Eurostat, que têm base nos do INE, não são totalmente fiáveis” para se conhecer a realidade. Isabel Moura Ramos conclui como o Eurostat: “provavelmente, o nosso crescimento no SSS foi ainda maior”.

A regulamentação dos dados estatísticos europeus sobre o SSS, defendida pela Directora Executiva da APTMCD, tem outro efeito. Está a retardar a criação de um Observatório do SSS Portugal, tal como a introdução das estatísticas do SSS português no AGEPORStat.

“É uma medida que a AGEPOR, proprietária desse instrumento que é o AGEPORStat e ela própria membro da direcção da APTMCD, já acordou com a Associação dos Portos de Portugal (APP)”, esclarece Isabel Moura Ramos. O sistema está em teste e falta formalizar o acordo entre as duas associações.

Quando estes dois enquadramentos estiverem concluídos, reflectindo maior sensibilidade para o SSS no plano nacional e mais fiabilidade às estatísticas europeias sobre SSS, o Observatório do SSS Portugal poderá surgir. “Ou seja, o Observatório está a caminho, dependente destas situações, mas é algo com que queremos avançar”, admite Isabel Moura Ramos.

 

Rodovia e mercado único marítimo

 

A questão da intermodalidade tem sido colocada a propósito da alegada concorrência entre o transporte rodoviário e o SSS, bem como dos benefícios ambientais deste último face ao primeiro. Quanto à concorrência, os operadores de SSS desmentem. “A rodovia deve crescer connosco, com o SSS, na lógica de que serve a última milha, o porta-a-porta”, refere Isabel Moura Ramos.

Sérgio Costa considera que “o transportador rodoviário nacional e internacional será sempre” o seu principal cliente “daqui a 2/3 anos”. “Somos parceiros dos que já estão connosco desde o início e que mais rapidamente realizaram a oportunidade de ter mais soluções num ambiente cada vez mais competitivo”, refere.

O mesmo responsável entende que a frequência de serviços da empresa vai crescer “com os transportadores nacionais” e cada vez mais serão disponibilizadas “soluções com o suporte dos mesmos”. “Se virmos este caminho como uma parceria, então, achamos que o transportador rodoviário é um dos nossos parceiros fundamentais”, refere.

Marcello di Fraia, Director-geral da Grimaldi Portugal, outra operadora de SSS com serviço no nosso país, considera que “não somos concorrentes dos camiões, somos fornecedores de serviços para os transportes rodoviários”. Para este responsável, “o camião faz o porta-a-porta, vai onde nós não vamos”.

Sem considerarem os transportadores rodoviários seus concorrentes ou um obstáculo à sua actividade, os operadores de SSS, porém, acabam por ver reflectido na rodovia um dos seus problemas. É que se é verdade que já existe um mercado único terrestre, também o é que ainda não existe um mercado único marítimo.

O responsável da Grimaldi Portugal defende a abolição das fronteiras marítimas, tal como se fez para as fronteiras terrestres, no espaço comunitário. “No mar, essa barreira não morreu” e isso reflecte-se nos procedimentos alfandegários, com todas as implicações de tempo e custos associadas, ao contrário do que sucede no transporte terrestre.

Niels Kjaer-Richardt, Director de Serviços de Short Sea da Unifeeder, outra operadora de SSS com actividade em Portugal, entende algo semelhante. Para ele, o principal obstáculo ao SSS na Europa é a descentralização dos processos alfandegários e de documentação, ou seja, o facto de no SSS estas questões estarem a cargo de cada Estado e não uniformizadas.

“Isto significa que um cargueiro de SSS que desloque mercadoria de Portugal para Roterdão verá a carga perder o seu estatuto comunitário assim que deixar o porto de Lisboa”, refere. “E isso significa que se um cliente quiser alterar o modo de transporte da carga da estrada para o mar, terá de repente que declarar o seu estatuto comunitário, algo que não é necessário na rodovia”, acrescenta. “Na rodovia, o estatuto comunitário é presumido, se o transportador nada disser em contrário; no mar, é o inverso, ou seja, tudo é não comunitário até declaração em contrário”, admite.

Isabel Moura Ramos recorda que “em 2011 a UE disse que era urgente ter o espaço único europeu, mas hoje, o SSS olha para o espaço marítimo europeu e ele não existe”. “O single market europeu existe para a rodovia”, não para o SSS. A mesma responsável adiciona a esta questão a dos constrangimentos aduaneiros, “que continuam”.

 

Distorção da concorrência e outros constrangimentos

 

Outra dificuldade enfrentada pelos operadores de SSS na Europa é a distorção da concorrência. Marcello di Fraia critica o financiamento público a novas linhas de SSS. Para ele, “a única maneira de apoiar o SSS sem distorcer a concorrência é não apoiar as linhas, mas antes os utilizadores, as rodoviárias, designadamente, como sucedeu com o ecobónus (um bónus para camionistas que usem a via marítima em vez da rodoviária, independentemente da linha)”.

E explica a vantagem dessa solução. “O camionista, ao usar o transporte marítimo, poupa dinheiro, poupa tempo (aproveita o período da viagem para o necessário descanso, sem parar para o efeito), poupa no desgaste das estradas e retira emissões da atmosfera”, esclarece.

Niels Kjaer-Richardt também admite que “têm sido gastos recursos económicos de forma errada em larga escala”. Exemplifica com o programa Marco Polo, através do qual “foi concedido apoio financeiro a 11 projectos de SSS ao longo da sua vida”. “Todos, menos um, acabaram no momento em que esse apoio acabou”, refere, acrescentando que “isso mostra claramente que os Governos e as instituições públicas não devem tentar intrometer-se nas forças do mercado”. Para este responsável, “se uma linha tem potencial, então alguém deve abri-la, com ou sem apoio”.

Sérgio Costa entende que “se gastou demasiado em projectos de apoio a fundo perdido, tanto a nível comunitário, como a nível estatal, e continuam a cometer-se os mesmos erros”. Segundo diz, “continuam a apoiar-se projectos que subsidiam serviços, que não resistem quando o subsídio acaba”.

O responsável da CLdN, no entanto, considera que existe “uma mudança da visão comunitária”, que passa por financiar infra-estruturas portuárias, novas tecnologias e sistemas de integração comunitária, beneficiando em última instância o carregador/exportador”. “Esse deverá ser sempre o objectivo, pois o fundamental de todos os serviços são os clientes; os armadores são os clientes dos terminais e as infra-estruturas portuárias e os nossos clientes o nosso core business”, esclarece.

Se assim não for, na opinião de Sérgio Costa, “o cliente procura alternativas” e o “melhor exemplo da mensagem que pretendo passar é o da crise dos últimos anos em Portugal e da resposta que o nosso exportador deu, que é uma lição da qual todos devemos tirar conclusões”.

O mesmo responsável também identifica alguma falta de coragem no caso português. “Coragem para definir uma estratégia e um papel para todos os portos nacionais”, esclarece. E acrescenta que num “país em que falta dinheiro para investir e onde os portos competem entre si, não me parece o caminho certo”. “Somos um país muito pequeno e com uma escala sem dimensões para os portos ou qualquer infra-estrutura estatal competirem entre si”, considera, antes de acrescentar que “se for para competir, privatize-se”.

Outro constrangimento ao SSS é a falta de atenção à sua especificidade por parte da Organização Marítima Internacional (OMI, ou IMO, da sigla em inglês, como é mais conhecida). “A regulamentação para o shipping é feita pela IMO, e aquilo para que os players europeus alertam é para a diferença entre o SSS e o deep sea”, refere Isabel Moura Ramos.

E a responsável dá um exemplo. “O SSS sai prejudicado com a regulamentação sobre pesagem de contentores, porque vai ser aplicada a mesma regra para estes navios (de SSS), que vale para os de deep sea”, salienta. “Isto tem que ser revisto e tem que ser feito um alerta para a Comissão Europeia, porque pode prejudicar mais os navios de ro-ro e lo-lo”, acrescenta.

No caso do SSS em Portugal, há quem identifique ainda outro constrangimento: falta de massa crítica, que será difícil de combater. De acordo com fontes do sector, temos carga exportadora, mas precisamos de ser competitivos. E o crescimento estatístico do país em SSS é reflexo do crescimento do porto de Sines e da exportação. Aí, o deep sea ajuda, por causa dos serviços de feeder, que alimentam o resto da Europa. Mas, “mais hub tivéssemos, como Sines, e mais cresceríamos”, referem as mesmas fontes. Mais hub? Mas onde? Lisboa poderia ser a solução, pois tem condições para isso, referem as mesmas fontes.



Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

«Foi Portugal que deu ao Mar a dimensão que tem hoje.»
António E. Cançado
«Num sentimento de febre de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa
Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
Vergílio Ferreira
Só a alma sabe falar com o mar
Fiama Hasse Pais Brandão
Há mar e mar, há ir e voltar ... e é exactamente no voltar que está o génio.
Paráfrase a Alexandre O’Neill