Em 2016, o volume de negócios da construção naval em Portugal cresceu pelo segundo ano consecutivo “e em breve, estima-se, que ultrapasse o volume de negócios da manutenção, à semelhança do ocorrido no início da década de 2000”, afirmou Ventura de Sousa, Secretário-geral da Associação de Indústrias Navais (AIN), durante um recente seminário promovido conjuntamente pela associação e o Jornal da Economia do Mar denominado «Construção Naval – Visão em Acção», sobre a construção naval nacional.
Isto apesar de nesse ano as indústrias navais, no seu conjunto, terem registado um abrandamento da tendência para o crescimento do seu volume de negócios, em boa parte devido à redução na actividade de manutenção e reparação naval, “que se explica pelo anormal crescimento no ano anterior (antecipação de docagens para manutenção)”, conforme explicou Ventura de Sousa na sua apresentação perante o auditório da Escola Superior Náutica Infante D. Henrique (ENIDH), que acolheu o evento.
Na ocasião, o Secretário-geral da AIN recordou à audiência que entre 2014 e 2016 assistiu-se “a uma grande confiança dos empresários no futuro da actividade de construção naval” e que em 2016 “o aumento da capacidade produtiva de construção naval, medido por investimentos correntes em activos fixos, cifrou-se em 15,2 milhões de euros na construção naval e 3,8 milhões de euros na manutenção e reparação naval”, com base em dados do Sistema de Contas Integradas das Empresas do Instituto Nacional de Estatística (INE).
Ventura de Sousa referiu também que entre 2012 e 2016, os Excedentes Brutos de Exportação (todos os rendimentos gerados pelos factores produtivos na actividade económica interna, exceptuando as remunerações do trabalho), “quer na construção como na manutenção e reparação naval, registaram crescimentos de 90% e 15 %, respectivamente”, acrescentando que a indústria naval se revelou “um sector de elevada rendibilidade de exploração e muito boa remuneração dos capitais investidos”.
Colaboração com a Marinha é determinante
Para o que parece ser uma renovada confiança nas indústrias navais nacionais, tem sido importante o papel da Marinha portuguesa e a sua relação com o mercado, conforme admitiu Nuno Sarmento, do Estado-Maior da Armada, e um dos intervenientes no painel de oradores do seminário. Para ilustrar a sua afirmação lembrou as prioridades da Marinha referidas pelo novo Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), António Mendes Calado, por ocasião da sua recente tomada de posse no cargo.
A primeira prioridade da Marinha, em termos de construção naval, será então “a construção de seis navios-patrulha oceânicos, para além daqueles que estão em construção, neste momento, em Viana do Castelo”, lembrou Nuno Sarmento. Já uma segunda prioridade será um navio reabastecedor. De acordo com Nuno Sarmento, seria “uma boa oportunidade para a construção naval nacional” se recorrermos a um projecto de construção nacional em vez de uma aquisição de um navio já existente.
O mesmo responsável, porém, recordou que “em qualquer um destes projectos”, tudo depende da “solução financeira adequada para a sua implementação e nós estamos num ano de revisão da Lei de Programação Militar”, pelo que só no final desse processo haverá mais informação sobre estas questões. No entanto, a Marinha tem mais prioridades, como a modernização das fragatas e a manutenção de submarinos, conforme lembrou Nuno Sarmento.
No caso da manutenção de submarinos, o orador do Estado-Maior da Armada admitiu que, na perspectiva da Marinha, “é um projecto importante para o país”, não só no plano dos meios, mas também da capacitação nacional de realizar esse tipo de manutenção aos nossos meios e aos meios de outros países.
A este propósito, Ventura de Sousa recordou que actualmente a Thyssenkrupp Marine Systems GmbH, alemã, e o Arsenal do Alfeite (AA, S.A) desenvolvem “um trabalho conjunto, cujo objectivo central consiste em capacitar a empresa portuguesa para desenvolver trabalhos de reparação e manutenção dos submarinos Tipo 209N”, pelo que uma equipa do AA, SA, acompanha “a revisão do Tridente na Alemanha”, esperando-se que a cooperação permita que a AA, SA participe na primeira revisão intermédia do Tridente, e que a intervenção no Arpão seja efectuada em território nacional nos estaleiros da AA, SA.
Se este plano se concretizar e considerando que “em 2016 a AA,SA vendeu serviços de manutenção de cerca de 14 milhões de euros, a manutenção de submarinos em Portugal poderá mais do que duplicar o volume de negócios da AA, SA, e vai significar uma profunda transformação da indústria naval em Portugal, em particular na especialização tecnológica que a construção naval militar exige e na abertura de novos mercados que a Thyssenkrupp nos poderá proporcionar”, considerou Ventura de Sousa. Na sua apresentação, o Secretário-geral da AIN destacou ainda que as acções de manutenção do Tridente realizadas entre 2016 e 2018, têm um “valor máximo total de 23,99 milhões de euros”.
Vários outros intervenientes do painel convidado reconheceram a importância da Marinha na indústria naval nacional. Um deles, João Tasso de Sousa, do Laboratório de Sistemas e Tecnologia Subaquática (LSTS) da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), admitiu a existência de uma cooperação entre a instituição em que trabalha e a Marinha, designadamente, em matéria de meios não tripulados.
“Nesse aspecto a nossa cooperação com a marinha portuguesa tem sido crucial e devo referir com optimismo e orgulho que vejo, mesmo em relação a outras marinhas de outros países, que a cooperação que temos é de alguma forma invejada por outras pessoas de outros países”, referiu.
Outra voz no mesmo sentido foi a de Jorge Antunes, fundador e Administrador da Tecnoveritas, igualmente presente no painel. “É primordial haver apoio da marinha de guerra, eu sempre colaborei com a marinha de guerra, de peito aberto, a perder dinheiro, não interessa, mas era a oportunidade que tinha de fazer determinados trabalhos ou então não os fazia nunca em Portugal”, referiu. E acrescentou que, no seu caso, além da colaboração, a Marinha também foi importante na medida em que recomendou uma tecnologia fornecida pela sua empresa, “porque ninguém compra sem referência”.
Rui Cohen, da EDISOFT, também presente no painel, traduz outro exemplo da importância da Marinha na dinamização da indústria naval. No caso da sua empresa, foi estabelecido um consórcio com a West Sea, sub-concessionária dos estaleiros de Viana do Castelo, onde estão a ser construídos navios-patrulha oceânicos para a Marinha. Nesse contexto, a EDISOFT fornece o sistema integrado de navegação e o sistema de informação e gestão da plataforma.
Outro membro do painel, Miguel Trovão, da NavalTagus, do grupo ETE, também lembrou a relação entre a sua empresa e a Marinha. Foi a empresa que construiu os dois pontões de atracação para os novos submarinos.
A propósito desta colaboração entre a Marinha e a indústria naval, Nuno Sarmento referiu que a sua instituição “tem grande empenho em, com diversas empresas, fazer experimentação, que é uma vantagem competitiva difícil de encontrar em muitas partes do mundo”. Considerou ainda que a competitividade na indústria naval nacional deve passar muito por uma estratégia de diferenciação, mais do que pela via do baixo custo.
O papel do Alfeite e da formação
No âmbito da actividade de construção e reparação naval da Marinha, o estaleiro da AA, SA assume particular importância. Nessa matéria, Rui Ribeiro Parreira, da AA, SA, e também incluído no painel de oradores, considerou que o desafio do estaleiro, a curto prazo, é capacitá-lo “para a manutenção dos submarinos”, para o que existem equipas a realizarem formação na Alemanha. “O processo está a correr bem, temos a negociação do contrato bem encaminhada”, referiu este responsável.
Rui Ribeiro Parreira também adiantou que neste momento está a ser feita a modernização dos navios Stanflex 300 (actual classe Tejo) adquiridos à Dinamarca, “os primeiros com aquela dimensão em material compósito”. Dois já foram remodelados e “teremos mais dois até ao final do ano”, referiu este responsável.
Uma operação que significou aquisição de know-how na tecnologia de compósitos e permitiu “dar o salto” para as lanchas salva-vidas em material compósito. “Já construímos os moldes e estamos muito perto de começar o processo de infusão”, referiu, sublinhando a diferença entre trabalhar com navios de aço e navios de materiais compósitos.
O mesmo orador admitiu ainda o envelhecimento do pessoal naquele estaleiro, o que constitui um desafio, considerando fundamental a requisição de recursos humanos. Nesse aspecto, considerou também que alguma formação terá que ser prestada no próprio estaleiro e que “não é fácil entrar no mercado”.
No plano da formação, em geral e não apenas no caso dos estaleiros do Alfeite, Jorge Antunes lembrou a importância de conhecimentos de automação. “Estamos na revolução 4.0 e a marinha, seja a mercante ou a de guerra, vai ter de passar por este processo, e está a passar”. E reforçou a sua ideia sublinhando que “os estaleiros estão sedentos de gente que perceba de automação naval”, acrescentando que “não se fala disto porque os órgãos decisores têm muito pouca ligação à indústria”.
A propósito da importância da formação, Jorge Antunes revelou o caso da ENIDH, que enviou dois professores para a Finlândia visando a sua preparação para formar formadores de oficiais destinados ao navio de cruzeiros que a Mystic Cruises, do Grupo Douro Azul, está a construir nos estaleiros da West Sea, em Viana do Castelo, e que deverá ser entregue este ano. O facto relaciona-se com o facto de os oficiais em falta requererem uma formação específica, dado que o navio fará cruzeiros no Árctico.
Os veículos autónomos, outros projectos e a náutica de recreio
Em termos tecnológicos, os veículos não tripulados (também designados autónomos) foram mencionados na maioria das intervenções. Ligado à investigação, João Tasso de Sousa referiu que nesta matéria Portugal já é e poderá continuar a ser muito competitivo, admitindo, também aqui, que tem sido importante a colaboração do LSTS da FEUP com a Marinha. E reconheceu que nesta área, quer no plano de meios submarinos, de superfície ou aéreos, “há muito a fazer”, até porque duvida que “alguém saiba o que se poderá fazer daqui a 20 anos com meios não tripulados”.
João Tasso de Sousa aproveitou para lembrar que o seu laboratório, em cooperação com a Marinha e o Schmidt Ocean Institute, trabalha numa campanha que decorrerá em breve no Pacífico, durante a qual vários meios marítimos não tripulados serão operados a partir de um navio de investigação, o Falkor. Segundo referiu, nessas experiências serão realizadas, essencialmente, missões de oceanografia e mapeamento de frentes oceânicas, coordenando o movimento e as operações do navio tripulado com os meios não tripulados em tempo real.
Do mesmo modo, Jorge Antunes e Rui Cohen referiram a relevância de meios não tripulados no contexto da construção naval. O primeiro recordou mesmo que a Marinha dispõe de uma comissão própria para estudar o tema. Nuno Sarmento, num quadro de reconfiguração dos meios existentes na Marinha, admitiu que existe “muita vontade de experimentação” e que no futuro, podem vir a existir e a ser utilizados meios que permitam à instituição desempenhar as suas funções que com os meios actuais será economicamente impossível ou inviável desempenhar. “Concordo plenamente que, se calhar, alguns dos conceitos que usamos hoje serão completamente diferentes e talvez alguns meios, como as novas tecnologias e veículos autónomos, estejam a ser considerados”, referiu Nuno Sarmento.
Ainda no contexto dos projectos, embora já fora do plano dos meios autónomos, Miguel Trovão referiu dois para construção por parte da NavalTagus, em fase de orçamentação Uma embarcação multicat para a APDL e um ferry de 30 a 35 metros e comprimento, 100 por cento eléctrico, que é o mais inovador, para a zona de Aveiro. Já Rui Ribeiro Parreira, admitiu que nos estaleiros do Alfeite existem “propostas conceptuais avançadas com base na experiência adquirida com os salva-vidas”.
Igualmente no contexto dos projectos, Tomás Costa Lima, responsável da Lusoyacht, fez uma intervenção sobre o design de embarcações vocacionadas para a náutica de recreio, como o katamaran operado pela operadora turística Water X. No caso da sua empresa, esclareceu que trabalha sempre em conjunto com engenheiros navais e dedicando mais importância à funcionalidade do que à estética.
A propósito do mercado nacional da náutica de recreio, tal como referira Rui Ribeiro Parreira relativamente às lanchas, Tomás Costa Lima mencionou que actualmente está em voga a construção com materiais compósitos, “sobretudo nas embarcações com mais de 35 metros”, acrescentando que “o futuro passa por aí”. Referiu ainda que existem interessados para este tipo de embarcações em Portugal, embora seja um segmento pouco valorizado no país, designadamente, pelo Estado, que não facilita investimentos nesta área.
O mesmo responsável reconheceu que este tipo de embarcações, construídas em Portugal, “têm tido grande aceitação lá fora”, quer em termos de imagem, quer de preço. “Cada vez estamos mais bem vistos em termos de conhecimento de construção naval e da forma como usamos o mar”, prosseguiu o empresário. “Como são embarcações pensadas de raiz, são diferentes do que se constrói normalmente”, referiu. “E temos conseguido ser competitivos contra estaleiros navais europeus, nomeadamente espanhóis”, afirmou.
Esta perspectiva não anula a percepção da AIN, segundo a qual “a indústria naval tem como maior mercado de procura a manutenção e construção de navios mercantes, em particular a manutenção no caso específico de Portugal”, conforme referiu Ventura de Sousa na sua apresentação.
Obstáculos e caminhos
Durante as suas intervenções, apesar do seu optimismo, os oradores foram deixando mensagens aos poderes públicos, no sentido de removerem obstáculos ao desenvolvimento da indústria naval nacional e, nalguns casos, propuseram caminhos favoráveis ao aproveitamento do potencial nacional nesta actividade.
Tomás Costa Lima foi um deles. “Porque é que quando compramos cá temos que pagar IVA?”, ao contrário do que sucede quando compramos no estrangeiro, aludindo à aquisição de embarcações, designadamente de recreio. O empresário e designer também criticou dificuldades criadas pelas autoridades em matéria de cerificação de embarcações e que retardam a capacidade de acesso a determinados financiamentos, num segmento que implica elevados investimentos.
João Tasso de Sousa, por sua vez, questionou também os programas de financiamento, que considerou “muito mal estruturados, mal ajustados à realidade” e constituem “uma forma de as empresas perderem tempo e competitividade”. Lamentou ainda a ausência de investimento nacional em áreas estratégicas para o país, nas quais caberia a indústria de construção naval, por vezes considerada prejudicada a favor da actividade portuária, no âmbito da economia do mar.
Já Miguel Trovão lamentou a necessidade de adquirir materiais no estrangeiro quando se quer fazer construção naval em Portugal. “Uma triste realidade para quem quer fazer construção naval em Portugal: tem que comprar tudo fora”, confessou. Ou é o aço, comprado a uma empresa nacional, mas proveniente da Polónia ou de outra origem, ou a maquinaria principal, que vem da Coreia do Sul. O que o terá levado a impôr-se num dos projectos da empresa e a insistir em encomendar equipamentos a indústrias portuguesas.
O mesmo orador reconheceu, contudo, que os preços são quatro vezes superiores “se for tudo português”. Na reparação naval, a margem é de 3% ou 4% “se tudo correr bem”, referiu, sublinhando que para aumentar a sua margem, a NavalTagus recorreu à construção naval. E admitiu que existem estaleiros próprios para construção e outros vocacionados para reparação.
Jorge Antunes, por sua vez, lamentou a perda de competências na indústria naval. E exemplificou. “Hoje, não temos um único navio de transporte de gás nem um navio tanque; os políticos respondem a isto com o argumento de que estamos numa economia de mercado e que se precisarmos de um navio destes, compramos”, referiu, acrescentando, todavia que “com isto perde-se o know-how da assistência pelos estaleiros aos navios de transporte de gás e perdem-se competências no mar e em terra”.
Miguel Trovão sugeriu que uma indústria naval forte requer mais do que um apoio exclusivo à mão-de-obra. “Gostava que houvesse uma política de construção e reparação naval, que existissem duas ou três empresas em áreas críticas de construção e reparação, que pudessem ser apoiadas para que se criasse um pólo”, esclareceu. “Isso poderia contribuir para termos em Portugal uma indústria naval consistente”, concluiu.
Ventura de Sousa, voz da AIN, na sua apresentação, lembrou que “a indústria naval portuguesa está sujeita aos mesmos condicionamentos e oportunidades da indústria europeia, devendo por isso seguir o seu exemplo no que respeita à construção de navios especializados, mercê da inovação tecnológica dos produtos e processos produtivos e inovação”.
Na opinião do orador, “as oportunidades são muitas, fruto da implementação de conversões e adaptações dos navios ao cumprimento de Requisitos Regulamentares Internacionais mais rigorosos e de alterações para aumentar a sua eficiência operacional”. “Do mesmo modo, a digitalização do transporte marítimo proporcionará novas oportunidades para conversão dos navios existentes a par da incorporação em novas construções”, referiu.
Para Ventura de Sousa, “a manutenção e reparação naval de grande dimensão, que concorre no mercado mundial, exige o domínio de tecnologias de ponta”. Para responder à procura de conversão de navios e para cumprir as imposições das Convenções IMO e Directivas da Comissão Europeia, os estaleiros utilizam “tecnologia LASER, modelação 3 D, a partir da vectorização da nuvem de pontos, e posterior tratamento AUTOCAD, para levantamento dimensional dos sistemas e estruturas das partes dos navios onde vão ser instalados os novos equipamentos e sistemas (engenharia inversa), acrescentou. E lembrou o caso nacional do estaleiro Atlantic Eagle Shipbuilding, um caso de inovação de produto nesta indústria.